O cantor chinês Jacks Wu, autor e intérprete de Who Is This Guy?, música produzida por Raul Seixas em 1970

Nos anos iniciais da década de 1970, no período em que Raul Seixas trabalhou como produtor da gravadora CBS, no Rio de Janeiro, o artista baiano produziu canções e discos memoráveis para uma infinidade de artistas de diversos gêneros, como a musa da canção romântica, Diana, a dupla de soul music Tony & Frankye, o incatalogável Sérgio Sampaio, o ultrapopular Balthazar, o brega-rock de Odair José, entre muitos outros. E também um compacto pouco conhecido de um inesperado cantor chinês de voz aveludada chamado Jacks Wu, cuja carreira estancaria logo adiante por opção própria – Wu se mandaria para o interior da Bahia em 1972 com a baiana Núbia, o amor de sua vida, viraria professor e depois executivo, e vive até hoje lá, em Salvador, aos 76 anos.

Pois bem: o compacto que Raul gravou com Jacks Wu em 1970 (selo Epic RCA) continha duas canções: no lado A, a música Eu só Queria Ser Um Pouco Feliz; no lado B, Encontro (composta em parceria com o maestro e arranjador Fernando Adour). A faixa extra, que é inédita e segue abaixo, foi produzida por Raul Seixas e Jacks Wu e está engavetada na gravadora até hoje. Who Is This Guy? é a versão em inglês de Eu Só Queria Ser Um Pouco Feliz e tem uma pegada de soul music, lembrando ainda as levadas melódicas de Burt Bacharach e Jimmy Webb. Raul Santos Seixas morreu em 21 de agosto de 1989, há 34 anos.

Jacks Wu é um dos raros estrangeiros da MPB. Natural de Xangai, poderia ostentar o título de único artista chinês da música brasileira se não fosse o caso assombroso de Lanny Gordin, o mítico guitarrista da Tropicália, que também nasceu em Xangai com o nome de Alexander, filho de russo e polonesa. Wu junta-se agora, com essa sua redescoberta, à Legião Estrangeira na qual militaram ou ainda militam o português Roberto Leal, a paraguaia Perla, o inglês Ritchie, a italiana Deborah Blando, a diva russa Elke Maravilha, o uruguaio Taiguara e a incomensurável portuguesa Carmen Miranda.

“Conheci Raulzito na CBS do Rio de Janeiro e ficamos amigos porque ambos cantávamos também em inglês. Nos frequentamos em nossas residências e nos locais onde os músicos iam, nas noitadas do Rio, entre 1968 e 1971. Fui gravar com Raul na CBS a minha canção nas duas versões que compus, em português e em inglês, com coro da dupla Tony e Frankye e o maestro Fernando Adour“, lembra Jacks Wu, que ficou surpreso ao reencontrar a gravação de Who is this guy?. “Eu mesmo tinha esquecido esta versão; você pode inserir porque, até onde sei, só você tem esta música na versão em inglês. Tente localizar no acervo da CBS Epic. Fica a dica”, afirmou o autor da música.

“Eu e Raulzito ficamos amigos na música e na vida. Na música, porque ambos cantávamos em inglês e fazíamos jams no apartamento dele, no Vagão (bar de artistas na Avenida Nossa Senhora de Copacabana que reuniu a nata da soul music brasileira: o baiano Hyldon, o carioca Tim Maia, o paraibano Cassiano e outros) e no Solar da Fossa, onde eu e uma galera imensa morávamos, e em todo canto das noitadas”, contou Wu, que tem composições em parceria com Hyldon (Bahia com H e Hold my Hand) e Cassiano (Canção para Luana e Deus, A Natureza e a Música, que é só de Wu mas virou título de disco de Cassiano). Jacks Wu tinha 21 anos e vivia em São Paulo, em 1969, cantando na noite desde os 15 anos com uma carteira de identidade falsificada, quando foi descoberto, recrutado e levado ao Rio pelo produtor Evandro Ribeiro, chefão da CBS. Chegou a ser apontado, em reportagens na imprensa, como um dos postulantes a uma hipotética sucessão de Roberto Carlos. Nesse período, incorporou-se à nata da música jovem do período. Acompanhou Wilson Simonal no palco e foi amigo pessoal de Tim Maia, entre diversos outros.

A história de Jacks Wu, que participou de toda a revolução musical da virada dos anos 1960 para os anos 1970, bebeu com e conheceu a nata da MPB (Melodia, Menescal, Carlos Lira, Paulo Diniz, Marcos Vale, Carlos Dafé), testemunhou a ascensão de Jorge Benjor e o declínio de Wilson Simonal, dois amigos, você vai conhecer logo abaixo no FAROFAFÁ. Ouça agora Who Is This Guy?, canção de Jacks Wu produzida por Raul Seixas

O OUTRO CABELUDO QUE APARECEU NA SUA RUA ERA UM CHINÊS

Fotos: No sentido horário, Jacks Wu e o grupo Embalo R, no final dos anos 1960; Wu menino com os pais e os irmãos (ele está sem gravata); Wu quando gravou discos para a RCA e a CBS; Wu nos dias de hoje, tocando violão para as netas e as amigas em Salvador, onde vive; e Wu na Academia Ono de judô (agachado, terceiro da direita para a esquerda), com o então amigo Jorge Benjor (segundo da esquerda para a direita)

Membro da 17ª geração de uma tradicional família chinesa de Suzhou, cidade a Oeste de Xangai, na China (cujo memorial tem mais de 700 anos), Jacks Wu nasceu Wu Shih Jung. Escolheu sozinho para si o nome Jacks Wu quando tinha 9 anos, já vivia em São Paulo e ia ser batizado numa igreja católica (duas décadas antes de Jack Chan aparecer no cinema, se o leitor estiver divertidamente pensando em fazer essa analogia). O arquiteto da pirâmide de vidro do Louvre, em Paris, Yeoh Ming Pei (1917-2019), é seu tio, irmão de sua mãe. Um dos grandes amigos do seu pai foi Chang Dai-chien (1899-1983), pintor e calígrafo que definiram como o “Picasso chinês”, artista que viveu quase duas décadas em Mogi das Cruzes (SP) e presenteou a família de Wu com cinco telas.

O recomeço da família em São Paulo, após fugir da China com uma mão na frente e outra atrás, foi dureza, lembra Wu. Chegaram em 1951 a Porto Alegre e depois se locomoveram para Curitiba. Ele se recorda da mãe catando restos de feira na metrópole, uma realidade diametralmente oposta à que viveram na China, onde o pai trabalhava na Plymouth chinesa (uma subsidiária da fábrica de automóveis Chrysler), falava-se inglês em casa e seu velho gostava de ouvir big bands norte-americanas. Seu avô paterno era presidente da Light de Xangai e chegou a ser proprietário de três navios mercantes, uma fábrica de papel e de menta e uma mina de nióbio. Evidentemente, o confisco de tudo isso tornou Wu um cético em relação ao regime chinês.

“Eu tinha 3 anos quando minha família fugiu da guerra civil na China, mas minha memória guardou lembranças indeléveis daquela infância, de Xangai, do coque na nuca da ama que me carregava nas costas e da sombra de sua cabeça ocluindo parte de minha visão, das ruas de Xangai, da confusão no porto, do navio metade carga & metade passageiros em que vieram todos os integrantes daquela geração (em direção à Argentina e Costa Leste e Oeste dos Estados Unidos), da parada na Cidade do Cabo, na África do Sul, das jaulas com os animais selvagens e outros ali embarcando para entrega aos zoos, da longa travessia, da cabine única que alojava cada família, de Buenos Aires, à epoca chamada de A Pérola do Ocidente, e da nova mudança para Porto Alegre, Paraná, São Paulo”.

Crescendo no Brasil nos anos 1950 e 1960, logo Wu se tornaria mais um garoto que amava os Beatles e os… Everly Brothers. E Donny Hathaway. Morou na rua Caiowas, na Lavradio, na Alameda Lorena, na Cunha Gago. Estudou no Colégio São Luiz, entre a Paulista e a Consolação. Cantando em três boates da noite (Cave, Tonton Macoute, Playboy Club) ainda adolescente, com uma carteira de identidade falsificada, conheceu e ficou amigo de Jorge Ben (antes de ser Benjor), com quem frequentou a Academia Ono para praticar judô nos idos de 1968. A academia ficava na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, perto do Teatro Paramount, que abrigava então os festivais de música.

Jacks Wu se apresentou diversas vezes com o grupo Embalo R (tinha esse nome porque todos seus integrantes tinham um R no nome). Certa feita, Wu e alguns amigos viram que Sérgio Mendes estava arrebentando no ranking da Billboard com Mas que nada, de Jorge Ben, e, uma noite de 1968 no Playboy Club, quando Mendes foi indicado ao Grammy por The Fool on the Hill, disseram ao Babulina que ele é que devia estar lá cantando sua própria música e fazendo sucesso. Benjor respondeu que seria impossível para ele porque não sabia falar inglês.

Levado ao Rio pelo executivo João Araújo, que tinha trocado a RGE Fermata pela Som Livre, e por Alberto Saad, da Sadembra (sociedade de direitos autorais), Wu não demorou a incorporar-se à boemia local. Morou na rua Tonelero, na 5 de Julho, na Paula Freitas, na Figueiredo Magalhães e no “Chelsea Hotel” da MPB brasileira, o Solar da Fossa, com o amigo Sebastião Maia, o Tim Maia. Arrumou um emprego diurno em uma loja de discos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Fez vocais de apoio na banda de Simonal, tocou com Erlon Chaves e a banda Veneno.

“Lembro que o Lourival, o faz-tudo do Simona, morava no Solar da Fossa junto com toda a galera, por isso ele ia muito lá, sempre de carrões vermelhos e com louras. Aliás, isso despertava muito ciúme dos demais artistas moradores e frequentadores, Simonal superdescolado e no auge da carreira. Simonal foi injustiçado”, conta Wu.

Naquele período, pela RCA Victor, gravou primeiro o compacto, O Pedido, com produção de Ramalho Neto. “Jacks Wu é aquele boa pinta. Um boa pinta e boa praça, com suas características asiáticas”, dizia o texto da contracapa do disco. Em seguida, sob orientação de Raul Seixas, gravou pela CBS Epic o compacto Eu só Queria Ser Um Pouco Feliz. Mais adiante, a convite de João Araújo (pai do cantor Cazuza), Wu gravou trilhas para novelas da TV Globo, como O Cafona e Bandeira 2. Participou ainda de festivais, como o famoso FIC de 1971, no Maracanãzinho, quando não conseguiu classificar sua canção Sem Volta. “Ano que vem eu volto. A experiência foi o que me valeu”, declarou ao jornal O Globo em 27 de setembro de 1971.

Mas Wu estava determinado a não voltar. No ano seguinte, se mandou para a Bahia. “Já casado, fiz a bifurcação da minha vida em 1970, 1971, mas sem misturar à luta para criar uma família a minha aptidão musical. Só umas canjas. Mas sabia que a música não me abandonaria”, disse Jacks Wu, hoje pai de três filhas, avô de quatro netos, um cachorro. Entre 1973 e 1990, Jacks Wu trabalhou em uma indústria farmacêutica. Depois de sair da companhia, atuou como distribuidor e representante de produtos hospitalares. “Tive o cuidado de manter discreta minha história na música porque era pago para produzir resultados nos segmentos laborais, enquanto colaborador. Agora tudo vem a público por obra de Deus, dos amigos, dos músicos que fazem parte dela. Fico honrado e feliz por também seguir na música e deixar minhas pegadas”.

Mesmo vivendo em Salvador, Jacks Wu não teve mais contato com Raul Seixas. Acabou ficando amigo, isso sim, dos Panteras de Raulzito, de Carleba (baterista) e Thildo Gama (da primeira formação dos Panteras). “Meu repertório não autoral sempre foi R&B, soul, funk, soft rock, folk, grandes standards da música americana, etc… E com quem me identificava mais. Mesmo sendo amigo de praticamente todos os músicos, inclusive da Jovem Guarda, ficava mais no meu nicho de influências musicais”, conta o músico, que se considera um soulman.

Em Irecê, na Bahia, onde se fixou inicialmente, criou um curso técnico de administração, foi professor em escolas públicas até ir para Salvador, onde concluiu a faculdade de Administração de Empresas. “Durante um período de minha vida, até 1973, viajei inúmeras vezes por várias cidades no entorno do Velho Chico, desde Bom Jesus da Lapa, Santa Maria, Santana, Ibotirama, Barra do Rio Grande, Xique-xique, Juazeiro, Petrolina, Neópolis, até o deságue nas águas do Atlântico. Quantas lembranças… O grande São Francisco…. Os povos ribeirinhos… Os vapores que singravam o Velho Chico…. Os grandes peixes: dourados, surubins, matrinxãs, pacus, piaparas. Trechos onde não se via a outra margem. Trechos onde o marinheiro tinha que se desviar dos bancos de areia. Tendo vindo de tão longe, fiz uma grande imersão neste país continente para me redescobrir. Lembro de tudo”, conta hoje o veterano Wu.

Durante um show em Fortaleza, em 1994, Tim Maia reconheceu Jacks Wu na sua plateia e parou o show, eufórico. “O Jacks Wu aí, meu filho!”, berrou. “Jacks Wu, maior prazer, meu filho! Puta, meu, tu engordou, hein, Jacks?”, disse Tim. “Mas tu não tava na Bahia, pô? Esse aí viaja o Brasil todo. É a Núbia aí contigo?”, brincou Tim. “Canta, Jacks! Solta a franga, Núbia!”. Esse vídeo com a recepção calorosa de Tim Maia a Jacks Wu integra o material que o cantor sino-brasileiro selecionou para o documentário que produz sobre si mesmo, um longa metragem que terá 74 minutos. Meu nome é Wu – Um chinês na história da música brasileira, adianta o cantor, trará canções inéditas e uma apresentação musical do artista nos dias de hoje em estúdio. O resgate de músicas e apresentações será distribuído em plataformas digitais para que as atuais gerações possam conhecer o trabalho do chinês. Ele também planeja distribuir o documentário na televisão, para veículos como o Canal Curta, TV Brasil, Arte1, TV Cultura e outros.

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6 COMENTÁRIOS

  1. A título de curiosidade: A cantora Carmem Miranda que já foi citada como a primeira cantora brasileira??? a gravar no exterior, sendo que ela era portuguesa, na verdade a primeira cantora brasileira que gravou no exterior foi Wilma Bentivegna, com a música ‘Marcelino, pão e vinho, foi gravado em Portugal num compacto simples

  2. Sensacional, Jotabê. Eu sou grande fã do Jacks Wu desde a trilha de ‘O Cafona’ e há tempos tento descobrir mais informações sobre o cara. Finalmente! Forte abraço, Thomas.

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