Leny Andrade, a bossa negra

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Cantora que desabrochou na transição do samba-canção para a bossa nova, quando ainda era adolescente, Leny Andrade (1943-2023) jamais deixou de se equilibrar entre dois lados de uma corda bamba, samba e jazz. Uma das primeiras composições gravadas por ela (aos 17 anos), “Quem Sou Eu“, já trazia a marca da modernirdade na assinatura, por Dolores Duran, rara compositora mulher no cenário de então, no ano de sua morte, 1959. Não era uma obra-prima de Dolores, e Leny, que circulava em programas radiofônicos tipo Clube do Guri desde os 9 anos, interpretava-a de modo impostado, sob pomposo arranjo orquestrado – tudo que a bossa nova viria arrasar como num tornado de sussurros, banquinho e violão.

Não estava ainda muito nítido que a batalha que se travava era entre as vozes de trovão do passado, tipo Francisco Alves ou Dalva de Oliveira, e a seda microfonada do presente e do futuro, de Doris Monteiro e João Gilberto. Leny tinha o vozeirão aprumado no peito, e por toda sua trajetória musical teve driblar os obstáculos de se querer cantora de bossa nova, portando voz aberta e um tom de pele mais escuro que o bronze dos garotos de Ipanema.

A carga pesada da discriminação velada, vigente hoje e vigente ontem, manteve num cercado à parte a bossa negra dos iniciadores Leny Andrade, Johnny Alf e Alaíde Costa. Outra representante da estirpe, Elza Soares, mais suscetível aos caprichos da indústria musical, moveu-se na corda bamba entre o jazz e o samba frequentemente pendendo para o segundo, por instinto de sobrevivência ou desejo de se comunicar com as multidões. Como só iríamos perceber nitidamente décadas depois, não era de bom tom, na avaliação do racismo “cordial” brasileiro, que artistas negros pretendessem cantar bossa nova ou qualquer estilo que não fosse o samba, sempre interpretado como instintivo e primitivo. Artistas como Johnny, Alaíde e Leny viveram e trabalharam, portanto, no desvio, na contracorrente e na resistência.

Quanto a Leny, apesar de o tema ser escamoteado pelo contrato racial, a consciência da própria condição estava presente, como ela expõe no livro Leny Andrade – Alma Mía (2012), em depoimentos colhidos por Regina Ribas: “Contribuí com o meu canto e na condição de negra, porque se tenho a pele clara, mamãe era uma mulata que lembrava a Elizeth (Cardoso), então estamos conversados: tenho o pé na África e muito me orgulho disso”. Se no século 19 a negritude literária de um Machado de Assis ou de um Lima Barreto era um incômodo para o Brasil “cordial”, no século 20 o mesmo processo marcava a música de Angela Maria, Elizeth Cardoso, Dolores Duran ou Leny Andrade, entre vários.

Auto-blindada contra esse obstáculo, em meio a atividades como cantora no mitológico Beco das Garrafas e crooner na orquestra de jazz do precursor da bossa Dick Farney, Leny Andrade estreou em LP com A Sensação (1961), já depurando timindamente os excessos orquestrais das gerações passadas, enquanto namorava a bossa apenas pelas beiradas. Os autores que gravou não pertenciam à primeira divisão da bossa, casos de Durval Ferreira (“Sambop”, “Meu Bem Foi Embora”, “Receita para Esquecer”) e Hianto de Almeida (“Não Dá Pé”), ou então integravam a precocemente envelhecida pré-bossa, como Antonio Maria (“O Amor e a Rosa”). Obviamente, as canções de A Sensação não perfuraram a bolha do tempo, e mesmo as assinadas pelo ás do violão Luiz Bonfá (“Um Amor Igual ao Seu” e “Canção Que Volta Só”) ficaram esquecidas na poeira.

A exceção é o “Samba de Uma Nota Só” de Tom Jobim e Newton Mendonça, lançado no ano anterior por João Gilberto, em interpretação mais jazzística que bossa-novista. Títulos como “Sambop” e scats vocais como os de “Samba de Uma Nota Só” e “Receita para Esquecer” indicavam as jazzistas negras estadunidenses Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan como molde primordial para Leny, muito mais que as cantoras pré-bossa de voz macia (Doris Monteiro, Nora Ney, Sylvia Telles) ou as garotas de Ipanema, a essa altura ainda invisíveis e inaudíveis (a “musa” Nara Leão, mais admirada e festejada pelos joelhos bonitos que pelas qualidades artísticas, só conseguiria lançar seu primeiro LP em 1964). Na contramão, Leny afirmava ter aprendido os scats não com Ella ou Sarah, mas com Dolores.

“Mania de Esnobismo”, 1963: “Você com seu estrangeirismo está querendo passar o meu samba pra trás”

Gravado num compacto duplo de 1963, secundado pelo Tamba Trio (que se reuniu pela primeira vez para acompanhar Leny), o samba-jazz “Mania de Esnobismo” reflete a guerra civil que constrói por dentro o desenvolvimento da música moderna, num tema conflituoso explorado pelos autores Durval Ferreira e Newton Chaves, na linha das crônicas de costumes de Billy Blanco gravadas por Doris Monteiro. “Você e a mania de esnobismo/ deixa disso, rapaz/ esquece um pouco David Rose, Percy Faith, cai da pose/ deixa o Chopin em paz/ você com o seu estrangeirismo/ está querendo passar meu samba pra trás/ sambar é bom/ deixa de moda, da favela à alta roda/ samba não tem distinção/ mesmo porque samba também veste fraque, pergunte ao Tom/ deixe a pose de lado, olhe o meu requebrado/ sambar é bom”, canta Leny, letra cambaleando para um lado, interpretação vocal e arranjo deslizando para o o outro lado da corda.

No livro Alma Mía, a artista conta bastidores do encontro fundador com o Tamba Trio: “Quando estávamos no auge, auge total, o (percussionista e baterista) Helcio Milito recebeu umas três ou quatro propostas e foi atrás delas arrastando os demais músicos. Despediu-se de mim pelo telefone. Faço questão de contar essa história. (…) me despediu pelo telefone quando eu fazia a primeira voz do Tamba Trio e o conjunto era o maior sucesso. (…) Passei 48 horas chorando”.

Discos para descobrir em casa – 'A arte maior de Leny Andrade', Leny Andrade,  1964 | Blog do Mauro Ferreira | G1

Gravado ao vivo, o segundo LP, A Arte Maior de Leny Andrade (1963), segue o formato dos trios de samba-jazz dos anos 1960, com Tenório Jr. no piano, Zezinho no contrabaixo e Milton Banana na bateria. O repertório adentra a primeira divisão da bossa e dá abordagem jazzística, de vocais intrincados e manhosos, a Tom Jobim (“Samba do Avião” e “Vivo Sonhando”), Baden Powell e Vinicius de Moraes (“Consolação”), Carlos Lyra (“Influência do Jazz“), Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (“A Morte de um Deus de Sal”, Marcos Valle (“Amor de Nada”) e Eumir Deodato (“Baiãozinho”). Menos (e mais) que bossa para pequenas multidões, era jazz para as multidinhas do Beco das Garrafas.

A tensão e a beligerância que cercaram o golpe civil-militar de 1964 se refletem com nitidez no LP de estreia pela Odeon, Estamos Aí (1965), com orquestrações do jovem Eumir Deodato. Retrato incômodo da guerra civil instalada também dentro da canção popular, a faixa “A Resposta“, dos jovens e louros irmãos zona sul Marcos e Paulo Sérgio Valle, é uma reação contundente ao levante de protesto que Carlos Lyra e Nara Leão tentavam liderar em confronto com a bossa do amor, do sorriso, da flor, do cantinho e do violão: “Se alguém disser que teu samba não tem mais valor/ porque ele é feito somente de paz e de amor/ não ligue, não, que essa gente não sabe o que diz/ não pode entender quando um samba é feliz/ o samba pode ser feito de sol e de mar/ o samba bom é aquele que o povo cantar/ de fome basta a que o povo na vida já tem/ pra que lhe fazer cantar isso também?”.

Era fácil adivinhar quem venceria a rinha, se a bossa se colocava do lado do sol e atribuía a treva e o negativismo à canção de protesto. “Falar de terra na areia do Arpoador/ quem pelo pobre na vida não faz-lhe favor/ falar de morro morando de frente pro mar/ não vai fazer ninguém melhorar”, desferia “A Resposta”, que fazia par-manifesto com a positividade triunfal da faixa-título “Estamos Ai“, de Durval Ferreira, Mauricio Einhorn e Regina Werneck: “Só se for agora, a bossa vai prosseguir/ todo mundo vai cantar/ nosso samba é demais/ bossa nova vai mostrar que pode arrasar/ se falar de sol, de amor, de mar e luar/ e de gente que cantando vai/ gente que só tem na alma paz e amor/ e pro mundo todo vai mostrar então que a bossa nova cresce/ que a bossa nova vence/ que a nossa bossa vale, estamos aí”.

Nas outras duas vozes que a gravaram antes de Leny (Marcos Valle e Claudette Soares), “A Resposta” pode ser interpretada como francamente reacionária – e foi mesmo, tanto que não sobreviveu bem à passagem do tempo. Mas passa algo diferente na interpretação de Leny, criada no Méier, bairro de classe média da zona norte carioca: numa voz negra, soa como uma contestação à institucionalidade branca, seja ela de direita, esquerda ou centro.

Não à toa, a faixa seguinte no LP, um pot-pourri de sambas do morro ou sobre o morro, inclui em primeiro lugar “O Morro Não Tem Vez”, de Tom e Vinicius, justamente uma daquelas canções que falavam do morro de frente para o mar. Não à toa, o mesmo Marcos Valle que compôs “A Resposta” co-assina, em Estamos Aí, a bossa de protesto “Banzo“, como de costume oscilante, durante a ditadura, entre a denúncia antirracista e a romantização da escravização de seres humanos pelos colonizadores europeus no Brasil: “Esta canção é de um negro que partiu pra voltar/ negro morreu na senzala, banzo pro negro chegou/ senhor mandou prender negro/ quando o sol esquentou/ sol quente em cima do negro/ cansado o negro tombou/ senhor de engenho malvado/ contrário a Cristo Senhor/ Cristo Senhor nos dá paz/ senhor de engenho, pavor”.

Na primeira de muitas temporadas de shows internacionais, em Buenos Aires, na Argentina, a artista cantou na boate La Noche, que pertencia a um homem chamado… Astor Piazzolla. Leny cantou as primícias da bossa nova para Astor, ele apresentou a ela seu tango modernizado, uma nova bossa argentina. No mesmo ano de Estamos Aí, estreou o show (e futuro LP ao vivo) Gemini V, somando as vozes de Leny e Pery Ribeiro (o cantor que lançou “Garota de Ipanema”, em 1963, filho dos emblemas da canção antiga Dalva de Oliveira e Herivelto Martins), o acompanhamento do Bossa Três do pianista Luiz Carlos Vinhas, e direção artística da dupla-símbolo do Beco das Garrafas, Ronaldo Bôscoli e Miele.

O disco solo mexicano de Leny Andrade, 1966

Gravado durante excursão pelo México, o segundo disco do quinteto de samba-jazz culminou com a transferência de Leny para o país durante seis anos e motivou a gravação do álbum mexicano Leny Andrade, de 1966, acompanhado pelos gaúchos do Breno Sauer Quarteto. Apesar da certidão de nascimento mexicana, é bossa-jazz do início ao fim, com a “Noite do Meu Bem” de Dolores Duran, “O Pato” de João Gilberto, o “Samba da Bênção” de Baden e Vinicius, a “Aruanda” de Carlos Lyra e pot-pourris para gringo ouvir, mas devidamente jazzificados, de sucessos dos fundadores Dorival Caymmi e Ary Barroso.

“O Gemini V tinha o nível de um Black Eyed Peas. Era uma máquina de fazer dinheiro, semelhante a um Rolling Stones, um Sergio Mendes“, conta Leny em 2010, para o livro biográfico. “Mas brasileiro fora do país acha que faz cocô de ouro e xixi de prata. Aí a casa cai e não sobra nada”, conclui, narrando mais uma implosão, agora do Gemini V.

Da Argentina ao México, Leny aprimorou sua percepção de latinidade, que desde aí sempre manipulou com destreza, mesmo de modo não-explícito, ampliando seu potencial de sedução junto a públicos planeta afora. Além do samba-canção, o bolero latino-americano também compôs o DNA da cantora, pela frente mais próxima da tradição que da inovação.

De volta ao Brasil, ela reatou transitoriamente a parceria com Pery (agora sem o Bossa Três) em mais um show e LP ao vivo (Gemini Cinco Anos Depois, 1972), adaptando o Clube da Esquina de Milton Nascimento, o “Como Dois e Dois” de Caetano Veloso e o bolero “La Menitra”, do mexicano Alvaro Carrillo, a seu receituário samba-jazz.

O Lobo Na Estepe - song and lyrics by Leny Andrade | Spotify

Em contraponto, teve de enfrentar a pressão da Odeon para se enquadrar aos modos do samba tradicional, inicialmente no álbum Alvoroço (1973), onde gravou sambas não muito jazzísticos de Ivor Lancellotti e João de Aquino (“Alvoroço”), João Nogueira e Paulo César Pinheiro (“Partido Rico”) e Dora Lopes (“Visita Permanente”). Não deviam ser esses os planos de Leny Andrade, e ela não se curvou de todo. Jazzificou material diversificado dos cearenses ainda pouco conhecidos Fagner e Belchior (numa versão lancinante de “Moto 1“), do carioca Ivan Lins (“Não Tem Perdão”), dos esquineiros mineiros Milton Nascimento, Wagner Tiso e Tavito (“Bolero”). Em sua segunda década de existência, o samba-jazz se desgarrava da bossa nova original e alçava voos mais amplos.

No mesmo ano, no show e disco ao vivo Expo-Som ’73 (dividido com Márcia, Simone e Ari Vilela), Leny foi levada a gravar “Quero Ver Todo Mundo Sambar” (1974), de Edson Conceição e Aloísio Silva, autores que no ano seguinte emplacariam seu maior sucesso comercial na voz de Alcione: “Não Deixe o Samba Morrer”. Mais preocupada em transformar o samba que em não deixá-lo morrer, Leny desacelerou o samba de Edson & Aloísio para samba-canção e/ou samba-jazz, mas nem assim pareceu natural para sua voz cantar “você que é de samba/ levante, vem mostrar pra essa gente que é bamba/ sambando/ roda que vem girando/ vem machucando as cadeira da nega/ sambando”.

Em Leny Andrade (1975), veio a capitulação: trata-se um disco de samba convencional, com canções e arranjos que caberiam melhor num disco de Clara Nunes (por sinal contratada da mesma gravadora). “Leny queria fazer um disco simples e bem brasileiro. (…) E aí está. Leny cantando realmente pra valer e simples. Muito simples”, afirma no encarte o produtor executivo do LP, João de Aquino, primo de Baden Powell. O subtexto é evidente: o samba tradicional é (ou deve ser) simples (simplório), e a música de Leny é “complicada” demais.

Leny tenta pedir socorro a um Billy Blanco no final do LP (o melancólico samba-canção “Praça Mauá”), mas até uma composição do inventor Egberto Gismonti é pista falsa: “Pr’um Samba” resulta em um… samba comportado, para os padrões de Leny e do samba-jazz. Nos sambas mais à moda de Clara Nunes, como “Presentes do Mar“, de Guiga de Ogum, ouve-se a intérprete que até cinco anos atrás acalentava “Águas de Março” e “Água de Beber”, de Tom Jobim, se jogar num “saravá/ a rainha do mar mamãe Iemanjá/ saravá/ à rainha do mar presente vou levar”.

Em particular a faixa “Falsa Moral”, assinada por Berimbau e Bentana, dá um nó na cabeça de quem seguisse a trajetória de Leny, e possivelmente a dela própria também: “Ela diz que é moralista/ e que na sua lista/ pra semana inteira/ nunca tem besteira/ e se eu tiver convite/ pra não convidar/ diz que quem quiser se irrite/ mas moça de elite/ de sociedade/ não tem amizade/ com quem sobe o morro pra querer sambar/ (…) ela diz que o samba é coisa que vem do diabo/ que samba é maldade, que samba é pecado/ mas por ela o samba eu não troco não/ se é pecado sambar pecador eu sou”.

João Gilberto ainda não havia ressignificado o samba-manifesto “Pra Que Discutir com Madame” em bossa no va, e, diferentemente do que ele fará em 1986, aqui nada se encaixa direito. Aos ouvidos de hoje, parece uma violência brutal a contorção mental a que esses versos submetem uma amante do jazz e do samba como valor brasileiro universal. O título de um samba romântico incluído no LP, assinado pelo bravo Wilson Moreira, parece adequado à situação: “Quem Mandou Eu Me Entregar?”.

Não é que ela tenha se entregado, absolutamente. Esgarçada a relação com a Odeon, Leny amargou quatro anos na geladeira até lançar pela CBS (atual Sony Music) o álbum Registro, de volta ao samba-jazz, com arranjos gostosos de João Donato e regravações de temas da pré-bossa à MPB, de Lúcio Alves (num pot-pourri de samba-canção dedicado a João Gilberto), Johnny Alf (“Nós”), Silvio Cesar (“Samba Nascimento Vida e Morte”), Eumir Deodato (a autorreferente “Historinha da Bossa“), Chico Buarque (o samba “Homenagem ao Malandro”), Edu Lobo (a bela “Considerando“) e Toninho Horta (“Meu “Canário Vizinho Azul”). Registro será filho único do casamento-relâmpago com a CBS.

Desclassificada: “Embriagador”, de Fernando Leporace e Nelson Wellington, 1982

A última aventura industrial acontecerá no MPB Shell 82, uma das várias tentativas da Rede Globo em ressuscitar a era dos festivais, interpretando a linda canção “Embriagador”, com arranjo de Dori Caymmi, fragorosamente desclassificada na fase de eliminatórias. Após mais cinco anos na geladeira fonográfica, é hora de Leny Andrade se desligar para sempre das grandes gravadoras, evidência de que a pressão continuava apitando na chaleira. Dos nada menos 24 títulos que lançará entre 1984 a 2018, nenhum será bancado por uma multinacional do disco – e é justamente isso que garantirá a continuidade e a permanência de sua produção musical.

Pode-se falar do racismo estrutural brasileiro que seguiu e segue trabalhando para confinar os artistas negros às convenções do samba, mas é preciso lembrar: foram as multinacionais, empresas gigantes com sedes na Europa e nos Estados Unidos, que interditaram o caminho a artistas como Leny, que ironicamente ia recebendo aceitação crescente junto a plateias do então mal chamado Primeiro Mundo.

Na fase estadunidense, as caricaturas de Leny feitas da plateia pelo cantor Tony Bennett

A segunda vida musical de Leny Andrade não será de sucesso em massa (como aliás nunca havia sido), mas o exercício da liberdade estilística será constante – e resultará em muito jazz, muito samba-jazz, muita bossa nova, muita variedade dentro de firme unidade conceitual. Em 1983, fará o primeiro de muitos shows na casa de jazz mais importante do mundo, Blue Note, em Nova York, e passará a dividir seus dias entre o Brasil e os Estados Unidos.

Por sua garganta nessa fase passearão criações de Djavan (“Flor de Lis”, 1984, “Pedro Brasil”, 1990, “A Ilha“, 1993), Dori Caymmi (“Velho Piano”, 1984, “Cantador”, 2014) Chico Buarque (“Vai Passar”, 1985), Dona Ivone Lara (“Enredo do Meu Samba”, 1985), Gonzaguinha (“É”, 1989, “Desenredo”, com Ivan Lins, 2006), Fatima Guedes (“Pelo Cansaço”, 1989), Moacyr Luz e Aldir Blanc (“Saudades da Guanabara”, 1994, “Mandingueiro”, 2006), Claudio Cartier e Paulo César Feital (o hit pop-marginal “Saigon“, mais popular na versão de Emílio Santiago, 1989), Dizzy Gillespie (“A Night in Tunisia”, 1989), Toots Thielemans (“Bluesette”, 1991), Bororó (“Da Cor do Pecado”, 1993), Lupicinio Rodrigues (“Esses Moços“, 1994), Roberto Carlos e Erasmo Carlos (“Olha“, 1994), Herbie Hancock (“Maiden Voyage”, 1994), Stevie Wonder (“Ribbon in the Sky”, 1994), Joyce Moreno (“O Chinês e a Bicicleta“, 1998), Rosa Passos (“Abajur Lilás”, 1998), Pixinguinha e João de Barro (“Carinhoso”, 2007), Tito Madi (“Balanço Zona Sul”, 2014)…

Negar o samba-raiz não será o caso da Leny independente, como nunca foi antes. Os tributos Cartola 80 Anos (1988) e Luz Negra – Nelson Cavaquinho por Leny Andrade (1995) reverenciam, de maneira arrebatora e obviamente jazzística, o legado de dois vanguardistas do samba-canção, que o faziam quando esse gênero híbrido, filho do samba com o bolero, nem havia sido nomeado ainda. Em vínculo íntimo com o jazz, o arranjador dos dois discos é o pianista e acordeonista carioca Gilson Peranzzetta, parceiro constante de Ivan Lins e de Vitor Martins (também dono da gravadora Velas, que lançou títulos de Leny nos anos 1990).

Indie, Leny gravou discos de bossa nova (Bossa Nova, 1991, Antonio Carlos Jobim, 1995, Bossas Novas, 1998, E Quero Que a Canção… Seja Você – Leny Andrade Interpreta Ronaldo Bôscoli, 2001), de standards norte-americanos (Embraceable You, 1991), de boleros latino-americanos em espanhol (Alma Mía, 2010), de clássicos românticos de Roberto Carlos em espanhol (As Canções do Rei, 2013), de standards MPB de Ivan Lins e Vitor Martins (Iluminados, 2014), de tributo a compositores marginalizados no mainstream nacional (o fluminense Altay Veloso, em Leny Andrade Canta Altay Veloso, 2000, o pernambucano Fred Falcão em Bossa Nossa – Leny Andrade Canta Fred Falcão, 2018).

Longe do tempo em que era demitida pelos trios e conjuntos que a acompanhavam, Leny assinou vários de seus discos independentes em dupla com colaboradores musicais invariavelmente pórximos do jazz, casos de Nós (1993) e Ao Vivo (2007), com o pianista e tecladista paulistano Cesar Camargo Mariano; Coisa Fina (1994) e Lua do Arpoador (2006), com o violonista e guitarrista carioca Romero Lubambo; o pianista norte-americano Fred Hersch (Maiden Voyage, 1994), o pianista carioca Cristovão Bastos (Antonio Carlos Jobim, 1999), o guitarrista israelense Roni Ben-Hur (Alegria de Viver, 2014), Gilson Peranzzetta (Canções de Cartola e Nelson Cavaquinho, último disco lançado por Leny, de novo dando cara de jazz ao samba imemorial de Cartola e Cavaquinho, 2018).

Mesmo quando não constaram das capas, os arranjadores e diretores musicais sempre foram cruciais para uma cantora que considerava sua voz um instrumento musical, portanto um elemento da banda. Foi assim com Tenório Jr. (1963), Luiz Carlos Vinhas (1965-1967), Breno Sauer (1966), João Donato (1979), Eduardo Assad (1984), João Carlos Coutinho (1989-1991), Roberto Menescal (1998), Lúcio Nascimento (2000), Fernando Merlino (2010). Além de instrumentista, considerava-se também um pouco autora do que cantava, como explica no livro Alma Mía: “Meu grande orgulho como intérprete é esse, eu pego as músicas e autoro. Faço diferente e todo mundo chora”.

Derradeira gravação: “Por Causa de Você” (1957), de Dolores Duran, 2023

No final de 2022, poucos meses antes de morrer, Leny Andrade recobrou a consciência dissipada pela idade, interrompeu a aposentadoria e voltou ao estúdio para gravar uma última canção, acompanhada apenas pelo piano de Peranzzetta. A escolhida, nunca antes registrada em sua voz, foi “Por Causa de Você” (1957), de Tom Jobim com Dolores Duran, uma mulher negra que (como ela) não foi reconhecida como tal em sua época, uma compositora como Leny não quis ou não conseguiu ser. Dolores morreu fulminada aos 29 anos, Leny viveu 79, sempre adorando Dolores. Simbolicamente, hoje ambas têm a mesma idade.

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