“P.S.: Eu tinha vontade de mandar tudo isso pra João Gilberto por nada”

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O compositor e escritor Luiz Galvão. Foto: Reprodução
O compositor e escritor Luiz Galvão. Foto: Reprodução

É no mínimo curioso o fato de eu estar prestes a entrar no ar, a convite de Ricarte Almeida Santos, para apresentar seu dominical Chorinhos e Chorões, na aniversariante Rádio Universidade FM, e ser alcançado pela notícia da morte de Luiz Galvão (22/10/1937-23/10/2022), na madrugada de hoje, enviada pelo amigo Jotabê Medeiros – que escreveu sobre o livro do Novo Baiano sobre o amigo João Gilberto; o primeiro livro do jornalista (“O bisbilhoteiro das galáxias – No lado b da cultura pop”, 2013) saiu pela Lazuli, que publica o poeta baiano.

Galvão estava internado na UTI do Incor desde o dia 19 de setembro. Cardiopata e diabético, o poeta, compositor e escritor havia sofrido um AVC e um infarto, tendo passado por uma cirurgia e chegando a ter infecção pulmonar, vindo a falecer aos 85 anos. A família estava realizando uma campanha para arrecadar recursos para arcar com as despesas hospitalares.

Autor de “Novos Baianos – A história do grupo que mudou a MPB” (Lazuli, 2014) e “João Gilberto, a bossa” (Lazuli, 2021), ambos mistos de autobiografia, memória e história, cerzidos pelo bom humor e todo o folclore ao redor do importantíssimo personagem para a música brasileira que ele foi – e continuará sendo.

A relação de Galvão com dois amigos foram fundamentais para os rumos da MPB, num arco que abrange diversos gêneros musicais, como a própria sonoridade dos Novos Baianos: rock, choro, frevo, samba, mambo, bossa nova etc. Falo de Tom Zé e João Gilberto. Foi o primeiro que, procurado por Galvão, apresentou-o a Moraes Moreira, apostando no sucesso da parceria – a partir daí surgiram os Novos Baianos e o resto é história. O papa bossanovista foi responsável pela mudança na trajetória do grupo, uma guinada rumo a uma brasilidade impregnada de rock’n roll.

Acabou chorare. Capa. Reprodução. Galvão é o primeiro à esquerda, de vermelho
Acabou chorare. Capa. Reprodução. Galvão é o primeiro à esquerda, de vermelho

Vindos da estreia “Ferro na boneca” (1970), disco marcadamente roqueiro, foi João Gilberto quem lhes apresentou ao Assis Valente de “Brasil pandeiro”, faixa que abre “Acabou chorare” (1972), disco do grupo invariavelmente apontado como o melhor álbum brasileiro de todos os tempos em sucessivas listas do tipo realizadas aqui e acolá pelas mais diversas publicações. É simbólico também que Galvão deixe o “Mistério do planeta” (título de uma de suas parcerias com Moraes Moreira) justamente no ano em que o antológico elepê completa 50 anos de lançado.

Além da parceria citada, o site Discos do Brasil, da pesquisadora e colecionadora Maria Luiza Kfouri, registra outras 50 composições de Galvão: “29 beijos” (1970, parceria com Moraes Moreira), “99 vezes” (1978, com Pepeu Gomes), “A menina dança” (1972, com Moraes Moreira), “A mídia” (1997, com Pepeu Gomes e Peu Souza), “Acabou chorare” (1972, com Moraes Moreira), “Alibabá alibabou” (1978, com Didi Gomes), “Anos 70” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby do Brasil e Paulinho Boca de Cantor), “Ao poeta” (1974, com Moraes Moreira e Pepeu Gomes), “Besta é tu” (1972, com Moraes Moreira), “Buda” (1997, com Davi Moraes, Moraes Moreira e Pepeu Gomes), “Colégio de aplicação” (1990, com Moraes Moreira), “Com qualquer dois mil réis” (1973, com Moraes Moreira e Pepeu Gomes), “Cosmos e Damião” (1973, com Moraes Moreira), “Dê um rolê” (1971, com Moraes Moreira), “Ela mexe comigo” (1999, com Pepeu Gomes e Baby do Brasil), “Espelho opaco” (1997, com Moraes Moreira), “Eu sou nua” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby do Brasil), “Eu sou o caso deles” (1974, com Moraes Moreira), “Fala tamborim (Em pleno 74)” (1974, com Moraes Moreira), “Farol da Barra” (1978, com Caetano Veloso), “Felicidade no ar” (1996, com Moraes Moreira), “Ferro na boneca” (1970, com Moraes Moreira), “Flor de mandacaru” (1997, com Moraes Moreira), “Infinito circular” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby do Brasil), “Jimmy Janis it’s fire” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor), “Ladeira da praça” (1974, com Moraes Moreira), “Linguagem do alunte” (1974, com Moraes Moreira e Pepeu Gomes), “Movido à água” (1983, com Itamar Assumpção), “Na fogueira” (1978, com Pepeu Gomes), “No tcheco tcheco” (s/d, com Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor), “O mal é o que sai da boca do homem” (1980, com Pepeu Gomes e Baby Consuelo), “O tico-tico mapiou” (1978, com Pepeu Gomes), “Preta pretinha” (1972, com Moraes Moreira), “Quando você chegar” (1973, com Pepeu Gomes), “Reis da bola” (1974, com Moraes Moreira e Pepeu Gomes), “Retrato pensado” (1997, com Pepeu Gomes), “Samba do sociólogo louco” (1978, com Jorginho Gomes), “São Francisco help” (2010, com Geraldo Azevedo), “Só se não for brasileiro nessa hora” (1973, com Moraes Moreira), “Sorrir e cantar como Bahia” (1973, com Moraes Moreira), “Standy by” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor), “Straight-flush” (1978, com Pepeu Gomes), “Sugestão geral” (1978, com Moraes Moreira), “Swing em Campo Grande” (1972, com Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor), “Terra que não treme” (1997, com Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor), “Tinindo trincando” (1972, com Moraes Moreira), “Três letrinhas” (1969, com Moraes Moreira), “Um bilhete pra Didi” (1972, com Moraes Moreira), “Vagabundo não é fácil” (1973, com Moraes Moreira) e “Vendem-se sonhos” (1978, com Jorginho Gomes e Pedro Raymundo).

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Família, comunidade, time de futebol. O supergrupo Novos Baianos. Galvão é o de camisa listrada ao lado do baixista Dadi, com a camisa do Botafogo. Foto: Reprodução

Transcrevemos, a seguir, trechos de dois livros de Luiz Galvão, a ilustrar como sua personalidade incrível e plural – o título deste texto é retirado de uma carta “A Augusto e Haroldo de Campos”, publicada por ele sob o pseudônimo Joãozinho Trepidação, no encarte de “Novos Baianos F. C.”, de 1973 – se relacionava consigo mesmo, com os amigos de Novos Baianos, com João Gilberto e outros astros e ídolos da música.

APRESENTAMOS O CHORINHO BRASILEIRO PARA A JUVENTUDE

O Novos Baianos foi um grupo forte. Em 1970, ainda no seu início, Baby saiu por cerca de cinco meses para se lançar individualmente. O grupo se viu reduzido apenas a Moraes, Paulinho Boca e eu, que continuamos vivos e atacando em duas frentes. Graças a Deus, Baby voltou (sábia opção) antes de gravarmos um LP.

Em 1975, houve a saída de Moraes, que foi uma perda irreparável. Mas o grupo resistiu bravamente produzindo ainda quatro discos fantásticos. Talvez pela falta de Moraes, tivemos que desenvolver a música instrumental: foi aí que surgiu o chorinho dentro do trabalho do Novos Baianos. Da mesma forma, Moraes também fez chorinhos na sua carreira individual. Foi muito importante o trabalho de Pepeu Gomes, desenvolvendo o músico que é, trilhando as influências de Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo e Luperce Miranda, misturadas à sua garra de roqueiro; o que culminou com o histórico arranjo de “Brasileirinho”, juntando o acústico e o eletrônico. Para isso Pepeu contou com o apoio do técnico de som Salomão. Ele morava conosco para que os músicos pudessem contar com ele a qualquer momento, como também para realizar estudos e experiências até em transformações de instrumentos. Já tínhamos alcançado essa mistura do acústico com os instrumentos elétricos no tempo de Moraes, por exemplo, em “Samba da minha terra” e “Dagmar”, gravações realizadas na Continental. Outro grande trabalho foi realizado por Baby Consuelo ao reviver Ademilde Fonseca e aceitar o desafio de cantar chorinhos de Waldir Azevedo.

Foi importante termos passado para a juventude a existência desse ritmo que corresponde ao jazz brasileiro: foi assim que Art Blakey, músico da história do jazz americano, o classificou, quando ouviu o pessoal tocar e cantar lá na casa onde morávamos, na Rua Casa do Ator, em São Paulo. Ademilde falou na televisão que estão matando o chorinho e que só existem três cantoras de chorinho no Brasil: ela, Baby e Gal Costa. É um absurdo Ademilde não conseguir gravar um disco. Como é que pode? Só no Brasil existe uma indústria de destruição de astros. Foi assim com Orlando Silva, Ângela Maria, Marlene, Emilinha, Cauby Peixoto. Na safra mais recente, o sacrificado é Luiz Melodia. Não é possível que um disco de chorinho com Ademilde, Gal Costa e Baby Consuelo não seja um sucesso aqui e no exterior. As gravadoras e os condutores da mídia preferem investir no descartável e faturar em cima da morte da arte.

O Jorginho Gomes tocando cavaquinho foi outra maneira notável de se recuperar a esse instrumento-criança. Com uma capacidade de composição originalíssima, ele criou um tipo de chorinho no estilo Waldir Azevedo que é diferente do estilo de Jacó. No Brasil, temos o xote, o baião, o coco, o xaxado, produtos de uma região e compostos para sanfona. O nosso Jorginho Gomes compôs uma música instrumental chamada “Um bilhete pra Didi” que entrará na história da música instrumental brasileira. No show do Novos Baianos, Charles Negrita criou uma dança que ele chamava “Dividido por três”. Era de um visual que levava a plateia ao êxtase. Jorginho, entre outras, criou (em parceria com Pepeu) “Alimente”, no estilo de “Um bilhete pra Didi”. Eu tinha dado esse título quando Didi Gomes ainda estava na Bahia sendo apenas uma criança musical. Jorginho foi o grande compositor de chorinhos da década de 1970.

(In: “Novos Baianos – A história do grupo que mudou a MPB”, 2014)

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VAIA DE BÊBADO NÃO VALE!

Em São Paulo, na inauguração Credicard Hall, a maior casa de espetáculos da América Latina, João Gilberto foi o artista escolhido para aquele acontecimento. Esperava-se uma grande noite. Os responsáveis pela casa tomaram quase todas as providências para que artista e público tivessem um encontro feliz. As condições, no que se referia ao visual e à audição, aparentemente somavam para isso. No entanto, a exigência do apurado ouvido de João acusou deficiências nos equipamentos de som, o que comprometia sua apresentação. Não estava em jogo a qualidade do ouvido geral da plateia, nem a falta de sensibilidade de alguns componentes do público presente — para dar a necessária importância ao trabalho do artista que se apresentava naquela oportunidade. Isso se levarmos em conta o talento, a história e o que representa o mito João Gilberto, com o todo da sua arte reconhecida no mundo inteiro, além do estudo e dedicação diários que ele se impõe horas a fio. João é tão particular que já manteve essa regularidade de preparação durante longo período sem apresentar-se publicamente em lugar nenhum. E isso não foi só uma vez. Outra coisa que ensinou aos artistas brasileiros que são obrigados a gravar um ou mais discos por ano é o seu exemplo, gravando e lançando discos com intervalos de nunca menos de três anos. Gal Costa e Marisa Monte são fiéis discípulas nesse aspecto e por isso se dão bem, preservando sua existência artística. Há quem pense que João Gilberto só faz esse tipo de exigências aqui, e que no chamado primeiro mundo ele não seria capaz de ousar tanto. Engana-se redondamente, porque, seja onde for, se suas condições físicas ou as técnicas de responsabilidade da produção do espetáculo não estiverem no nível de qualidade que preserve o respeito ao nome do artista que ele é, pode escrever que ele jamais se apresentou e não se apresentaria.

Nelson Motta, no seu livro Noites Tropicais, conta uma história que narrei em Anos 70 Novos & Baianos e, embora ele, Nelsinho, tenha classificado como uma das lendas de João Gilberto, eu afirmo que aconteceu de verdade. João dirigia o carro numa madrugada no Rio de Janeiro e eu estava ao lado, no lugar do carona. Em razão do adiantado da hora, não encontramos vivalma durante o percurso. Após passarmos em disparada por alguns sinais fechados, sem que aparecesse algum carro no sentido contrário, de repente, diante de um sinal aberto, João foi desacelerando, diminuindo a velocidade até frear à beira da faixa de pedestres. Para surpresa minha, já que o sinal estava verde e, portanto, aberto para nós, um carro passou voando a aproximadamente duzentos por hora, avançando o sinal vermelho. Moraes Moreira também vivenciou essa situação. Eu que imaginara inexplicável a atitude do motorista, fiquei pensando o que seria de nós não fosse o anjo da nossa guarda, e perguntei: “Como é que você sabia que vinha um carro em velocidade?”. João, sorrindo, respondeu: — “Pelo som. Estou dirigindo com o ouvido”.

Nelson deixou-me à vontade para incluir outro texto do livro dele, que ilustra bem esse ponto de vista. Diz o Nelson que João foi à Itália para uma apresentação, e, ao chegar àquele país, lhe telefonou dizendo que não ia fazer o show no dia marcado porque tinha contraído um resfriado no avião, e ficara impossibilitado de fazê-lo. Nelsinho, que na época residia lá, endossou o argumento de João, baseando-se no telefonema recebido, no qual pôde perceber, pela voz do artista, que ele estava com problemas na garganta. Quando João avisou ao empresário produtor do evento, ele ficou furioso e disse que o show teria que acontecer no dia marcado, porque havia despesas efetuadas e os ingressos estavam todos vendidos e que iria imediatamente ao hotel para demovê-lo da decisão de não se apresentar. João não pestanejou, pegou as malas, deixando o hotel para alojar-se na casa de um amigo. De lá telefonou para o empresário, explicando que iria fazer dois shows ainda na Europa e na volta podia marcar que ele se apresentaria na Itália. Quando João estava se apresentando em Antibes, no sul da França, o furioso empresário estava na plateia e encantou-se tanto com a performance do cantor brasileiro que, encerrada aquela apresentação, ele foi ao camarim e, quase se ajoelhando aos pés de João, pediu-lhe desculpas pelo papelão da sua incompreensão e grosseria. Rogou ainda pelo amor de Deus que ele fizesse o show na Itália. Dias depois, João cumpriu o compromisso e foi aplaudidíssimo pelos italianos, que realmente o amam. Eu contei isso apenas para mostrar o cuidado de João com sua apresentação onde quer que esteja. Sei que não adianta muito, não, porque algumas pessoas continuarão dizendo: “Isso é preciosismo de João Gilberto”. O que tais pessoas precisam admitir é que quem tem um dom artístico e busca em si o máximo para encontrar a perfeição e mostrá-la, tem o direito de exigir condições profissionais na produção de um evento do qual vai participar.

O show no Credicard Hall, em São Paulo, era apenas para convidados. Mesmo que fosse aberto ao público, com venda de ingressos, a vaia só cabia por ignorância, falta de educação e de sensibilidade somadas à embriaguez de quem a fez e que foi identificado pelo raciocínio rápido de João ao reclamar com humor, respondendo na medida que a provocação pedia. A gafe não foi só dos que vaiaram, mas também dos organizadores que, talvez obedecendo à filosofia da casa, tenham oferecido uísque importado grátis, o que deixou os convidados grogues e, consequentemente, trouxe ao ambiente uma zoeira de bêbados, somada aos ruídos dos sapatos altos das madames, que vieram ao encontro da deficiência de retorno de som ao palco, provocando a providencial reação de João: “Vaia de bêbado não vale!”. Pouco depois, ele retirou-se do palco e só retornou a pedido de artistas.

Não afirmo, mas deixo para exame a minha dúvida: se aquelas pessoas que vaiaram estavam ali apenas para comes e bebes ou para exibir joias, charme e inaugurarem roupas no sonhado desfile do saguão do Credicard Hall. Inadmissível o esquecimento de detalhes fundamentais como a falta de retorno de som ao palco. Eu tenho visto de um tempo pra cá João bem complacente com a falta de sensibilidade de alguns, em razão da heterogeneidade do público, mas quando se trata de falta de retorno de som para que o artista possa se ouvir, aí nenhum artista suporta, quanto mais João. Insisto em focalizar o humor dele em “vaia de bêbado não vale”, porque se conhece o nível de alguém no dia a dia é pelo aspecto de sua reação diante dos outros. Quando tudo está calmo, é fácil agir com cordialidade. Porém, caso alguma coisa não nos agrade e às vezes nos faça sentir agredidos, aí o bicho pega, e a maioria das pessoas perde a cabeça.

Mesmo o humor usado por João não agradando aos que o provocavam com a vaia, serviu para amenizar a crítica do artista ao comportamento de parte do público. Na forma que veio, através de uma improvisação musical e não de uma fala zangada do tipo: “vocês estão bêbados!”. Quem esteve lá ou viu o tape daquele momento constatou haver um público do mesmo tamanho da turba descontente ali aplaudindo a reação do artista. E se olharmos pelo lado que conduz a arte nos meios de comunicação, podemos ver que João teve mais uma vitória, além de outras tantas, como a da sua voz e do seu violão, quando ele e o show foram manchetes e assunto nos principais jornais e também nos noticiários de televisão no dia seguinte ao polêmico acontecimento. Devido ao estardalhaço da mídia, aconteceu uma coisa de que até João Gilberto riu à beça. Li na internet, numa lista destinada aos roqueiros, a mensagem de um deles, entusiasmado com a resposta de João aos “bebuns” descontentes: “João é rock, cara!”. Isso vem a calhar com a revelação de Aderbal Duarte (citada no capítulo final) de que, na gravação da música Outra Vez, João tem umas tiradas de roqueiro.

João Gilberto é um artista único, não só pelo seu modo de cantar e tocar, mas principalmente por suas atitudes poéticas que, às vezes, são compreendidas por alguns como excentricidade do artista. Já inventaram até uma classificação de lenda e folclore anedótico a que chamam “coisas de João Gilberto”. Acontecem mesmo coisas bonitas vistas apenas por quem olha com poesia. Dou um exemplo: em alguns shows que João fez no exterior, quer tenha sido num país da Europa, quer nos Estados Unidos, costumava levar convidados que chegavam ao número de 10 pessoas, entre parentes queridos e amigos próximos. João fazia o serviço completo para seus convidados, arcando com todas as despesas do passeio oferecido. A forma egoica como as pessoas vivem hoje, quando os mais ricos se pelam de medo de ficar pobres e quase todos pensam que presente é só coisa de loja, supermercado e shopping center, João, que é surpreendente, tanto era capaz de chegar com um cacho de bananas, um mamão maduro, um doce ou um convite para um show-viagem. Um presente de João se reveste de atitudes tão raras e talvez únicas, que eu penso que possa ter ocorrido em algum tempo longínquo e vivido por antepassados nossos. É possível que o protagonista da história tenha sido o próprio João em encarnação passada. O que passa em minha cabeça é que João fazia a apresentação para pagantes e convidados, mas ir buscar aquelas jogadas mais brilhantes e a motivação para o encontro de determinados acordes e achados na voz e no cantar, surgem com a presença desses convidados felizardos. Seguindo esse raciocínio, podemos ver que sua arte é feita para atender à necessidade do próprio artista e sobra numa boa para todos nós.

(In: “João Gilberto, a bossa”, 2021)

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Ouça “Acabou chorare” (1972):

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