Livraria Bamboletras, em Porto Alegre, que ocupa o antigo templo de uma igreja protestante

É uma igreja que abriga todos os gêneros. Que coloca o conhecimento acima dos dogmas nas prateleiras. Que sugere não somente recolhimento, mas também ousadia, subversão, desregramento. Que tem sermões, mas também a psicanálise de Jung, poemas eróticos e fesceninos, antropologia e física.

Em Porto Alegre, há dois meses, num movimento contrário àquele a que estamos mais acostumados – geralmente são as igrejas evangélicas que vêm comprando cinemas, teatros e livrarias para transformá-los em templos religiosos -, a tradicional livraria Bamboletras instalou-se em uma antiga igrejinha presbiteriana desativada há uns quatro ou cinco anos na Cidade Baixa, a Igreja Nova Apostólica, surgida na Alemanha em 1863.

Velhas igrejas tornarem-se livrarias é mais comum em outros países, especialmente os europeus. Em Maastricht, na Holanda, há uma loja famosérrima abrigada numa igreja dominicana do século 13, a Boekhandel Dominicanen. Milhares de turistas vão a Maastricht somente para conhecer a gloriosa arquitetura sacra da igreja agora revestida pela perenidade dos livros.

A história de como a Bamboletras acabou se tornando a única livraria do País abrigada no prédio de uma igreja não é, na verdade, uma homilia de “Glória ao Pai”, como diria Inri Cristo, mas de contratempos. A pandemia, que estremeceu todo o setor, também bateu forte na porta do antigo endereço da livraria. Quando parecia que a vida retomaria seu fluxo normal, o livreiro (e crítico de música clássica) Milton Ribeiro, proprietário da Bamboletras, viu estupefato, em maio, a livraria ser escondida da clientela por dois gigantescos tapumes de uma obra da construtora que reformava o shopping (onde estava localizada a loja). Foi tipo colocarem um capuz na lojinha. Isso, ele confessa, chegou a lhe parecer um sinal do Apocalipse, de que o fim tinha chegado para seu negócio. “Quem não sabia que ela estava funcionando, passava ali e achava que tinha fechado”, lamentou a jornalista Fernanda Dora Luzzatto, cliente da livraria.

Abatido, Milton delegou ao filho, Bernardo, a tarefa de achar uma solução para o problema. Bernardo, andando pelas imediações, viu uma placa de “Aluga-se” na edificação da igrejinha de uma torre só e vitrais pintados em vidros de janelas de armação de ferro comum. Milton não achou a ideia do filho tão boa, a princípio. Mas, ao entrar no templo, que tinha sido deixado vazio de ornamentos pela Igreja Neo Apostólica, Bernardo voltou com uma decisão: “Você precisa entrar lá, pai! O lugar é perfeito”.

Mesmo receoso, Milton iniciou a transferência, que foi finalizada no dia 16 de julho último. A Bamboletras, que surgiu há 26 anos, como o nome indica, especializada na literatura infanto-juvenil, mas que logo expandiu seu escopo literário, gradativamente se acostuma à ideia de vivenciar o milagre da sobrevida. Evidentemente, a arquitetura do predinho não tem o interesse histórico de construções romanas da Europa de 8 séculos atrás, mas os arranjos sacros meio sincréticos (e modestos) têm seu charme. O pátio no fundo ainda não foi utilizado, mas possui potencial para abrigar eventos literários.

“Minha mãe sempre dizia que a livraria era o templo da literatura”, disse a escritora Ana Cabral Rodrigues, de Niterói, na sexta-feira, 7, ao entrar pela primeira vez na Bamboletras para lançar o seu livro De uma janela a outra (Eduff, 2022). Doutora em Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ana empilhou seus livros na mesinha que foi colocada no púlpito da antiga igreja para o lançamento, ao lado da co-autora, a ilustradora Flavia de Sousa Araújo.

A vida da livraria na igreja trouxe mudanças. E piadas. Brincam com a coincidência de nome do proprietário com Milton Ribeiro, o pastor que foi ministro da Educação até março e montou um balcão de negócios no governo – algo que não é exatamente elogioso. Chamam o livreiro de pastor, jocosamente. O livreiro, bem humorado, já avisa em sua conta no Twitter: “O melhor Milton Ribeiro do País”. Teve quem perguntasse se tinha de ajoelhar antes de entrar na livraria. O velho público vem redescobrindo progressivamente o novo endereço, mas a boa nova é que novos clientes estão aparecendo. E o melhor: o faturamento aumentou um pouquinho (a livraria tem um estoque estimado em 40 mil títulos).

Igreja Nova Apostólica, que ocupou o prédio anteriormente, é uma igreja protestante restauracionista (igrejas que acreditam que o cristianismo histórico se desviou de sua missão original e se perdeu no caminho, e dizem retomar certos preceitos). Sua autoridade espiritual máxima é o apóstolo maior. Essa corrente, que se estima que tenha 1,5 milhão de crentes no mundo, chegou ao Brasil em 1928 por meio de uma missão de apóstolos alemães, instalando-se no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Os vizinhos contam que, no período em que ficou desativada a igrejinha da Cidade Baixa, houve outras tentativas de se alugar o prédio, mas esbarravam nas próprias condições do grupo religioso – dizem que teria se negado a alugar, por exemplo, para o Movimento Sem Terra (MST).

Bamboletras. Rua Venâncio Aires, nº 113, Cidade Baixa. Fecha às 19h. Porto Alegre (RS)

 

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