Templo Orbital, obra do paulista Edson Pavoni, em exposição no Farol Santander, na 13ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre

Em fevereiro de 2023, um satélite de aproximadamente 25 cm de diâmetro será lançado ao espaço pelo foguete Falcon9, carregando os nomes de milhares de pessoas mortas no Brasil, e ficará 10 anos orbitando como um memorial espacial. Até o dia 20 de novembro próximo, qualquer pessoa do Brasil e do mundo pode incluir o nome de uma perda familiar no satélite, enviando simbolicamente seu ente querido para o Céu. Templo Orbital, o pequeno satélite-memorial concebido pelo artista paulista Edson Pavoni, de 38 anos, é um dos artefatos artísticos em exibição na 13ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (RS), cujo tema central é Trauma, Sonho e Fuga.

“Quem pode entrar no céu?”, questiona em 15 idiomas a obra de Pavoni, que se propõe a clarear o debate em torno da colonização simbólica do céu por meio da ideia de Paraíso, “a origem das regras que abrem os fecham seus portões e a influência que essas crenças têm nas decisões que fazemos todos os dias”. Ativada no Farol Santander (Rua Sete de Setembro, 1028), em um dos 10 espaços expositivos da Bienal do Mercosul (sem contar a rua, o espaço público), a obra é constituída de “satélite, escultura em metal e website”.

Essa constituição da obra de Pavoni, que aposta em reatar um acordo possível entre a alma humana e a tecnologia, é a preocupação comum à maior parte dos 75 trabalhos de 102 artistas de 23 países que estão em exposição na prodigiosa (e já controversa) mostra no Rio Grande do Sul – cuja expectativa é a de ser vista por 800 mil pessoas até o seu encerramento. Há antevisões extraordinárias dessa possibilidade na exposição. Uma das mais impactantes aventuras é a proposta pelo mexicano-canadense Rafael Lozano-Hemmer, também em curso no Farol Santander.

Um das instalações de Lozano-Hemmer consiste numa imensa malha suspensa no gigantesco hall com 3 mil lâmpadas que, na escuridão, pulsam conforme os batimentos cardíacos de cada visitante (além do sistema de som reproduzir essas batidas individuais). Um sensor colhe, por intermédio da mão exposta a uma lâmpada, o ritmo interno do visitante, e o projeta na iluminação de si mesmo. Visualmente vertiginoso, o trabalho de Lozano-Hemmer, que não reivindica o papel de inovador somente por causa do aparato high-tech de que dispõe, usa da mais avançada tecnologia para fazer o olhar do espectador voltar-se para a própria magnificência de sua “máquina humana”: o poder das pulsações do corpo, da respiração, do calor sanguíneo, do ritmo do coração, do milagre da vida.

Em geral, admite-se que a chegada dos sensores e da biometria à vida cotidiana contribuiu para as questões do conforto, da previsibilidade, da segurança, mas o artista mexicano inverte esse direcionamento prático e industrial e “sequestra” os sensores para o propósito do autoconhecimento. “Apesar do fato de que trabalho com tecnologia, eu não gosto do termo ‘novo’ para definir isso. Todo aquele que achar que o que estamos fazendo é ‘novo’ é porque não estudou História da Arte o suficiente”, disse Lozano-Hemmer.

Essa perspectiva prossegue em diversos outros espaços da Bienal. No antigo complexo fabril Instituto Caldeira (Rua Frederico Mentz, 1606) estão concentradas alguns dos experimentos radicais da mostra. O boliviano Iván Cáceres, em sua obra Pututu “La llamada del cuerno” – La consciencia da arquitectura en el sueño es una máquina de cultivo de rostros, uma instalação sonora interativa, ilustra bem essa ambição. Cáceres utiliza o chakana (figura geométrica que é um dos símbolos-chave da cultura andina, usada como ordenadora de conceitos matemáticos, religiosos, filosóficos e sociais de 36 nações indígenas reconhecidas na Bolívia) em associação com o pututu, um instrumento musical de sopro. A busca é pela percepção também individual, numa espécie de jogo de sons e formas.

O norte-americano Luis Enrique Zela Koort e a peruana Genietta Varsilari , o duo Esfincter, apresentam um gigantesco sistema digestivo artificial batizado como Órgano primo: condensador de cuerpos, “uma máquina-órgão” que se propõe a construir um ritual entre a “configuração escultural e a automatizada”. Entre formigas mecânicas e pássaros empalhados (recolhidos após choques contra janelas envidraçadas), há engenhos sonoros eletromagnéticos e experimentos de biofísica.

O ato artístico mais radical de toda a Bienal, como não poderia deixar de ser neste momento histórico, é de uma artista trans, Nídia Aranha, performer de 30 anos nascida na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. “Nenhuma revolução é feita sem tensão”, diz Nídia. Ordenha 002 é a única obra não recomendada para menores de 16 anos de toda a exposição (“Contém cenas de medo, violência e nudez”), e temia-se até que fosse objeto de algum protesto de grupos conservadores extremistas, mas aparentemente estão ocupados em outro front.

Ordenha 002 é uma videoperformance produzida sob comissionamento da Bienal. Fazendo uma analogia entre a ordenha mecânica de animais em cativeiro e o sofrimento compulsório que alimenta a sociedade, Nídia usa o próprio corpo como metáfora. Nua, submete-se à máquina de ordenha em um ritual de imolação e tensão, e cuja trilha sonora é sua própria respiração. O final do vídeo, apoteótico, incorpora o debate em torno da presença do elemento transgênero na sociedade e sua reivindicação de inserção histórica e humana.

A presença da Bienal na capital gaúcha muda o cotidiano de forma criativa e instigante. Na entrada da magnífica Fundação Iberê Camargo (Avenida Padre Cacique, 2000), cuja arquitetura de Álvaro Siza já é um choque na imaginação, posta-se uma das vedetes da mostra. É uma das esculturas monumentais (uma cabeça branca de mulher) do artista espanhol Jaume Plensa, que instala seus monolitos humanoides pelo mundo em um esforço de desregulamentar as escalas ordenadoras da paisagem, mudar alguma ordem de importância do pensamento e da presença. Durante a montagem de suas obras, Jaume, que realizou 12 trabalhos de diferentes materiais (resina, aço, ferro, vidro e náilon) na fundação, chegou a passear de barco pelo Rio Guaíba para se certificar de qual era a visão que os navegadores tinham da obra em frente ao museu.

Jaume Plensa é um dos artistas consagrados da Espanha, com obras em instituições da França, Japão, Inglaterra, Coreia, Alemanha, Canadá. Nos Estados Unidos, uma das atrações do Millennium Park de Chicago é a sua escultura em video Crown Fountain, instalada em 2004. Sua ocupação na Fundação Iberê Camargo está centrada no trabalho escultural, mas também em som e textura.

O sentido de convocação que uma obra de arte para a população sempre atende a apelos que têm a ver com a promessa de interação. A cabeça feminina gigante de Jaume Plensa causa naturalmente uma peregrinação para selfies, mas há outras obras de menor dimensão e igual frisson. Uma delas está no lobby do antigo Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana (Rua dos Andradas, 736). Trata-se do pêndulo de areia do carioca Felippe Moraes.

Na obra Movimento Pendular #1, o artista aciona uma espécie de pêndulo-ampulheta preso ao teto por um cabo de aço (cheio de areia, grânulos que vão caindo no chão por um orifício no pião que gira aleatoriamente). Os visitantes se postam em círculo, ao redor, e aguardam o desfecho – a areia que cai no chão forma elipses e espirais que nunca se repetem, mas que existem na natureza. A ideia de Felippe é aproximar pontas que parecem nunca se tocar, como a precisão geométrica e matemática e a meditação e o misticismo. Cada sessão é um novo acontecimento para o espectador, fundado num mecanismo de simplicidade e encanto. “O desenho resultante assemelha-se às mandalas efêmeras construídas com areia por monges tibetanos, ou pontos riscados com pemba por entidades de Umbanda, Candomblé e outras religiões de matriz africana”.

A maior obra de arte urbana da Bienal do Mercosul é a monumental “rodovia aérea” feita de tecido que se estende por quatro quilômetros de extensão na Avenida Borges de Medeiros. Trata-se da obra Batimento, do brasiliense radicado em Porto Alegre Túlio Pinto. Vistas de baixo, as infovias amareladas parecem pistas a serem seguidas pelos transeuntes em direção a uma Terra Prometida que nunca está lá. Vistas do topo dos prédios (as negociações com os condomínios, para instalar as faixas, levaram meses de reuniões), as faixas sugerem pinceladas de um artista onisciente sobre a multidão. Um delírio.

A reconciliação possível entre visível e o invisível está de fato nos radares de grande parte dos artistas que compõem essa bienal. No moderno prédio do Instituto Ling (Rua João Caetano, 440), o mexicano Pedro Reyes constroi, na obra Hypnopedia, um apanhador de sonhos dos tempos contemporâneos. Sob um capacete gigante feito de cabaças e sensores, vozes contam seus sonhos breves enquanto o espectador se posta sob um abrigo de luz e sombras. De forma quase complementar, estão ali no mesmo edifício as únicas 8 obras da Bienal do Mercosul que foram feitas no suporte tradicional da pintura, dos artistas quenianos Shabu Mwangi e Beatrice Wanjiku – a materizalização do sonho pela via da cor.

Há ainda uma grande quantidade de obras interativas naquele que talvez seja o lugar mais instigante da atualidade ali na região: os armazéns do Cais do Porto (que só foram ocupados pela Bienal após o fiasco da reforma do prédio do Gasômetro, que era o projeto inicial). No Armazém A6 (Avenida Presidente João Goulart, 158), obras robóticas de apelo tecnológico (como os 16 braços articulados do navio neoviking de Leandro Lima) e as intervenções sonoras de Tino Sehgal convivem com as construções visuais rigorosas de Adrianna Eu e Marilá Dardot, por exemplo.

O último artista a ser incorporado à escalação da bienal, Pedro Matsuo, acabou “herdando” o espaço mais desafiador: o subsolo do Paço Municipal (Praça Montevideo, 10, futura Pinacoteca). O local é um labirinto de pilares e arcos de sustentação do prédio de 1898, cujas galerias, dizem, tem até uma rota de fuga subterrânea. Artista de apenas 26 anos, Matsuo fez uma galeria de obras fosforescentes que sugerem um léxico entre o tribal e o urbano novo e ancestral ao mesmo tempo. Na escuridão, há diversos movimentos indicando o caminho para sairmos do abismo.

A 13ª Bienal do Mercosul tem como curador-geral Marcello Dantas e curadores adjuntos Laura Cattani, Munir Klamt, Tarsila Riso e Carollina Lauriano.

 

O repórter Jotabê Medeiros viajou a Porto Alegre a convite da curadoria da 13ª Bienal do Mercosul

 

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