O mundo que Godard abandonou essa semana não é mais um mundo que procura sentido, mas que passou a se contentar com os pretextos. Como, no cinema de Godard, a vida só convém enquanto busca de sentido, tive a impressão que a desaparição desse componente vital torna perfeitamente compreensível a partida do cineasta da forma como se deu.

Penso nisso enquanto maratono os filmes de Godard reprogramados oportunamente pelo Telecine Cult em busca de uma chave de coerência, um fio comum. Perdão pela pretensão.

Mas é uma busca infrutífera: há muitos Godards, eu percebo; tantos quantas são nossas leituras do mundo. Em todos esses Godards (o político, o existencial, o comportamental, o social), identifico um mediador supremo: o próprio diretor, a presença mais marcante em todos os seus filmes. Mas, ao invés do tradicional “cameo” (a aparição circunstancial que fazia a delícia de Hitchcock, por exemplo), Godard se dilui habilmente nos filmes, usando os protagonistas como hospedeiros – estratagema que Woody Allen, para ficar só num caso, viria a radicalizar em seus filmes num momento mais à frente.

Godard parece acionar em seus filmes um jogo em que os adversários são A Consciência versus o Fluxo da Consciência. Na escalação do time A Consciência, entram as citações vertiginosas: André Malraux, Proust, Molière, entre centenas de outros, e o culto rigoroso ao poder da palavra. As escoras literárias o ajudam a difundir seu conceito, mas também a propor uma elevação cultural. “Molière: o teatro purifica o amor”, cita um personagem de Uma Mulher Casada (Une femme marrieé, 1964). Já no time do Fluxo da Consciência, predominam os juízos do próprio cineasta, que toma conta daquela história para afirmar sua construção ética e colocar a política num contexto utópico: “Não gosto do nacionalismo. Sou francês, tenho orgulho de ser francês. Mas eu amo a França porque amo Joachim du Bellay. E amo a Alemanha porque amo Beethoven”, diz Bruno, de O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963).

Bom, mas ainda tem mais. Muito mais. Tem as estratégias de filmagem, a chamada linguagem. Aí a coisa é realmente vertiginosa. Em Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, de 1961), o diretor franco-suíço convoca para sua cinematografia o ritmo externo às cenas. É fabuloso como o diretor lança mão da polifonia própria da vida urbana, os rostos em profusão brotando das ruas, dos ônibus, dos táxis, fazendo-os se incorporar à dramaturgia. Na verdade, Godard procura não depender da narrativa, não ser refém da “história”; sua obsessão está em filmar a percepção da narrativa. Sua tela (assim como a própria vida) não se completa sem os ruídos externos, sem o “não sentido” da realidade que salta à volta.

Godard é um artista plenamente livre. Isso o credencia a usar, por exemplo, cenas típicas de cartum sem descambar para a paródia, a caricatura. Em Uma mulher é uma mulher, isso é mais visível. Em dado momento, a protagonista (Anna Karina) frita um ovo. O telefone toca. Para atender, ela pega a frigideira e lança o ovo para cima. Atende o telefone. Ao voltar, aponta a frigideira e o ovo volta a cair nela. Imaginem isso em 1961.

Uma ideia prematuramente falsa é a de que a construção de situações realistas, no sentido da cinematografia tradicional, não interessaria a Godard. É que o diretor promove uma ampliação desses truques. Em O Pequeno Soldado, Bruno (Michel Subor) conhece Veronica (Anna Karina) em movimento, numa sequência quase inteiramente passada em carros ou caminhadas. Nesse percurso (que o espectador distraído mal percebe), todos os elementos narrativos são introduzidos: a condição profissional de Bruno, a vida de flâneuse de Verônica, a geografia de Genebra, o alçapão que se abre sob os pés da presumível neutralidade. Mas aí Godard parece montar um parêntese para construir a incômoda sequência de tortura. Essa cena de O Pequeno Soldado é  de uma assustadora consciência política, contém um formato bruto de panfleto, de advertência contra o totalitarismo e a barbárie que tingiria o mundo a partir dali. Godard evidencia que prescinde do conceito de “ação” para mostrar que tudo é ação, mesmo a inação.

O fetichismo pontua A Mulher Casada (Une femme marriée, 1964), edificado em torno do feminino. Os primeiros 10 minutos do filme, em preto e branco, são closes do corpo da atriz Marcha Méril, como se fosse um ensaio de Helmut Newton. A presença da mulher como uma possibilidade de redenção é outra condição sine qua non de todos os filmes do diretor, mas é uma responsabilidade descomunal essa que ele joga nas suas mulheres desde a Patricia (Jean Seberg) de Acossado (A bout de souffle, 1960) e que atinge o simbolismo total em Je vous Salue, Marie (1985).

Na trama do triângulo amoroso de A Mulher Casada, no exame do casamento em frangalhos e do automatismo dos relacionamentos, o cabo de força vai sendo distendido em uma arena de temas correlatos (o passado, o presente, o futuro, a velhice, a infância). “Olha, tenho um marido todo dia, não vou fazer a mesma coisa com você”, diz a mulher ao amante. “Todos os homens que você conhece são ridículos, mas não quer dizer que eu seja”, rebate ele, mais adiante.

Muitas vezes, a personagem fala com alguém na cena, e esse alguém retruca com uma pergunta, mas não se vê um interlocutor, e a pergunta, ou a réplica, não é incluída na cena, um recurso que faria a fama (só para lembrar um exemplo de grande proximidade) do programa Ensaio, da TV Cultura. É como se Godard, ao forjar um monólogo falso, estimulasse uma espontânea teatralidade na cena. “Pardon?”, ela diz. “Non, je ne comprends pas”, responde a si mesma.

Ao se propor a fomentar debates em tempo real, absorvendo o ritmo e as indagações do seu tempo, Godard às vezes comete irresponsabilidades, certas gags de atropelamento & fuga. “E se amanhã matassem todos os judeus e cabeleireiros”, diz um personagem. Ao que alguém pergunta: “Por que os cabeleireiros?”.

Jean-Luc Godard (1930-2022) convocou a macropolítica como um subterfúgio para esboçar um debate das micropolíticas, da potência do indivíduo, sua soberania intelectual. No século 21 que se esforça em demonstrar que o sentido não mais convém à vida, a lição de Godard é a da teimosia na emancipação do pensamento, da persistência da imaginação, da entrega total e irredutível do espírito.

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