A cantora e compositora Cátia de França. Retrato: Zema Ribeiro
A cantora e compositora Cátia de França. Retrato: Zema Ribeiro

A cantora e compositora paraibana Cátia de França, 75, se apresenta neste sábado (7), na programação No Caminho do Farol, da Casa d’Arte (Rua do Farol, Raposa), com entrada franca – conheça a programação completa no site do centro cultural.

A artista estreou em disco com “20 palavras ao redor do sol” (1979), produzido por Zé Ramalho. O disco foi redescoberto pela geração youtube e virou objeto de culto. O álbum mais recente de Cátia de França é “Hóspede da natureza” (2016), gravado entre 2005 e 2006, e lançado pelo programa Natura Musical.

Autora de hits como “Kukukaya” (sucesso de Xangai e Elba Ramalho) e “Coito das araras” (gravada por Amelinha), Cátia de França seguiu trajetória discreta, ao contrário de seus pares de geração. Ela, no entanto, não se arrepende das escolhas que fez.

Trajando branco e usando uma máscara estampada por desenhos de galinhas d’angola (que só tirou para posar para as fotos da reportagem), Cátia de França recebeu a reportagem do Farofafá na Pousada Portas da Amazônia, em que se hospedou, na Praia Grande, Centro Histórico de São Luís. Em mais de 40 anos de carreira, é apenas a segunda vez que a artista visita o Maranhão.

Em pouco mais de 40 minutos de conversa, falou sobre música, política, ditadura militar, racismo, religião, literatura, pandemia, o show na Casa d’Arte e suas escolhas (artísticas e políticas).

A cantora e compositora Cátia de França. Retrato: Zema Ribeiro
A cantora e compositora Cátia de França. Retrato: Zema Ribeiro

ZEMA RIBEIRO – Eu lembro que uma das perguntas que eu te fiz numa entrevista anterior foi sobre a sua relação com o Maranhão, você tinha vindo aqui com uma peça de teatro e que viria novamente reencontrar o público maranhense, o que agora está acontecendo, com esse show na Raposa.
CÁTIA DE FRANÇA – É isso. Você tem uma ideia do tempo dessa entrevista?

ZR – Foi 2016, finalzinho, tinha saído o “Hóspede da natureza”.
CF – Pronto, certo. E a coisa vem se confirmar em 2022. Não sei por que, porque não havia essa ponte mais rápida, né? Porque tem muito a ver, musicalmente, não só a cultura, mas também esse lado de religião, do Maranhão, mexe muito comigo. Sem contar a minha inquietude rítmica, eu sou muito, quase como um guizo, dentro de ritmos como o reggae, tem toda uma coisa. Surgiu o convite e vim numa vertente muito boa, que é justamente esse pessoal lá do lugar que eu adorei o nome, Raposa, que é o centro das pessoas que me trouxeram. Tudo acontece quando tem que acontecer e eu estou muito feliz de estar aqui, na ilha. Eu cheguei de madrugada e ainda estou tomando conhecimento.

ZR – Eu me lembro que no “Hóspede da natureza” tem um bumba meu boi explícito no repertório.
CF – Tem, Mateus [“Debaixo da tamarineira ô, Mateu”], o Mateus tirado dos livros de José Lins do Rego, escritor paraibano. Tem toda uma irreverência que tem a ver comigo, essa coisa engraçada. O nordestino sempre vive com essa tendência proposital de uma seca inventada, só para tirar dinheiro, por que tem e a gente sabe que se tirar dá água. E eles ainda riem, criam o boi, criam a marujada, criam o coco, criam coisas de folias, de irreverências, o pastoril, a presença do palhaço. Eu aprendi a ver, por esse diretor de teatro, Luiz Mendonça, que Deus lhe dê o céu, que trouxe a gente pra cá pro Maranhão, eu, Elba Ramalho, Tânia Alves, Tonico Pereira, ele pregava um Nordeste que não era aquela coisa pra ter pena, era irreverência para mexer com os nervos do ditador, de quem impunha esse estrangulamento político da época, de 1975. Então, aprendi a conviver com essa temática, e ele é meu grande professor, de todos nós, quem tiver humildade admite que deve muito e está aonde está por causa de Mendonça, que era político, de esquerda, tudo, então, foi muito boa essa convivência, dou graças, e tinha que homenagear e botei aquele “Mateus” no disco.

ZR – Então quando a senhora passou no Maranhão, com essa trupe de teatro, ainda não tinha estreado em disco, com o “20 palavras”? Foi antes?
CF – Foi em 75, eu estreei em disco em 79. Eu ainda tava me metendo com teatro para sobreviver. Eu cheguei logo ao Rio em 72, eu fui trabalhar num trabalho careta, umas amigas vieram na frente, disseram “vamos na frente preparar, quando tiver tudo já”, para você não ficar no sufoco no Rio sem fazer nada. E vieram por que tinham que vir mesmo. Quando sentiram que tava já um alicerce, me chamaram, então eu vim, fui pra Santa Tereza, um bairro do Rio de Janeiro, e já fui pro emprego de datilógrafa, numa firma chamada Snelling & Snelling, americana, de fazer pedido de emprego, do alto escalão, executivos, secretária bilíngue, então eu que batia, o Jornal do Brasil tinha essa página assim, os tijolinhos dizendo “precisa-se”, é bem pequena a chamada. E não sabia eu que aquele “no black” que estava escrito ali era dizendo que “não preto”, não podia haver vínculo, aceitar a chegada de uma pessoa que fosse de cor, e eu negra, datilografando um abuso desses. E fiquei uns três a quatro anos nessa firma, ali na [avenida] Rio Branco. Foi quando apareceu a necessidade de ter várias pessoas que tocassem vários instrumentos, por que não podia botar 12, ninguém tinha dinheiro para pagar 12 músicos, 10, oito, aí botou só paraibano que tava sem fazer nada, onde entrou Elba, que foi a madrinha, e disse “ah, tem uns músicos aqui no Largo do Machado, são ótimos, estão precisando de trabalho”. Aí botou a gente, empregou todos nós, eu, Vital Farias, Damilton Viana, Pedro Osmar. Nós viramos uma orquestra e ficamos muito tempo. Uma cultura popular irreverente não interessa ao Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro quer os moldes americanos, então ele pegou, apareceu um produtor, Flávio Bruno, aí disse “eu quero levar vocês pra São Paulo, mas não tem dinheiro para deixar ficar um ano ou vários meses, vocês vão [ficar de] 15 dias a um mês para ver como é que o paulista vai reagir”. Oxente, a gente ficou um ano. Quando voltou pro Rio já voltou pra fazer o [Teatro] João Caetano com preços populares, daí o Serviço Nacional de Teatro se interessou, foi quando surgiu a chance de vir pra cá. Programou a gente em todo o Brasil, viajando de avião, se hospedando razoavelmente bem, entendeu? E fazendo apresentação do grupo Chegança.

ZR – Depois disso a senhora veio no Maranhão de novo ou essa é a segunda vez?
CF – Essa é a segunda vez, eu vim com essa peça, “A peleja de Lampião contra o dono do inferno”.

ZR – Com relação ao show da Casa d’Arte deste sábado, o que a senhora está preparando em termos de repertório? Vai ser a base do “Hóspede da natureza” ou um show com grandes sucessos?
CF – As pessoas, não é saudosismo, é o que pegou, é o que fez a sonoplastia do momento da vida de cada um. Eles pedem “Coito das araras”, “Panorama”, “Estilhaços”…

ZR – “Kukukaya”…
CF – “Kukukaya”, “Ponta do Seixas”. Mas eu peguei vários discos. Tem muita coisa do “Hóspede”. Mas também tem coisas de filme, “Rio Capibaribe”, no Recife, que eu fiz o filme [o curta-metragem “Recife de dentro pra fora”, baseado no poema “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto] da Kátia Mesel, tem os livros que me acompanham. Tem temática de Manoel de Barros, tem momentos, um lance mesmo de raiz, tem moda de viola, “Debaixo da tamarineira”, tem “Mateus” aqui, ó [mostra o repertório impresso], que já tá escrito, tem música de sofrência, que o povo gosta, “Pra doer”, que é uma letra de um gaúcho, já é um senhor, é o Júlio Sortica. Existe um adendo que eu encontrei essa letra nas ruas de São Paulo, aqueles flyers que eles fazem propaganda, e eu peguei naquele papel no chão e no verso tava a letra do Júlio. Aquilo bateu e eu engravidei na hora. Eu disse “que coisa!”, e aquilo na rua, jogado, e eu só fui encontrá-lo tempos depois, graças à internet, o facebook, até que eu achei. No show do “Hóspede” ele foi pro Rio de Janeiro pra me assistir, levou presentes pra mim, ficaram laços de afeto entre nós dois. E “Coito das araras”, as eternas, né? Do imaginário de José Lins do Rego, “Itabaiana”, “20 palavras girando ao redor do sol”, não posso deixar João Cabral fora desse contexto. Então o roteiro vai ser esse.

ZR – Vai ser voz e violão?
CF – É, voz e violão.

ZR – Eu queria fazer outra aproximação da senhora com o Maranhão, que é uma curiosidade. A senhora é filha de uma negra, que era professora, alfabetizadora.
CF – É, Adélia de França.

ZR – Que foi a primeira professora negra da Paraíba.
CF – Isso.

ZR – O Maranhão tem passado por um momento de revalorização de uma educadora chamada Maria Firmina dos Reis, que a senhora já deve ter ouvido falar.
CF – Sim, certo.

ZR – Foi a primeira romancista brasileira, era negra, daqui de São Luís, mas morou na Baixada durante muito tempo. Inclusive vai sair um quadrinho agora, a adaptação de “Úrsula” em quadrinhos, eu vou até dar um jeito de fazer chegar às suas mãos, que é de um historiador daqui chamado Iramir Araújo. Só pra registrar, por que como a senhora falou tanto da força da cultura quanto de alguns elementos que a senhora traz na sua música, quanto também a questão da religiosidade, da umbanda, do candomblé, essa coisa mais…
CF – Do negro.

ZR – Do negro, das raízes ancestrais africanas, das religiões de matriz africana. Outra coisa: numa entrevista a Pedro Alexandre Sanches, que tinha feito antes um texto…
CF – [interrompendo:] Onde é que está Cátia de França? Isso foi muito bom!

ZR – Aí depois ele se reencontrou com a senhora para assistir o “Hóspede da natureza” e fez uma entrevista quando a presidenta Dilma Rousseff tinha sido impichada. A senhora manifestou um incômodo com esse processo, com o golpe que tirou Dilma do poder. Eu queria ouvir da Cátia de França, como artista, como cidadã, uma avaliação do que se transformou o Brasil a partir do golpe contra Dilma, a eleição de Bolsonaro, esses quase quatro anos de destruição.
CF – Foi destruição, foi uma regressão, a gente retrocedeu. Tudo que foi feito, em quatro anos foi decapitado. E nós temos a chance. Está vindo aí outubro. Eu já anexei nas minhas orações, tenho muita fé, sou muito religiosa, a gente tem que ir também por esse caminho, por que se a gente for responder fogo com fogo, isso não leva a lugar nenhum, é isso que eles querem, pra dar um motivo de vir a resposta em bala.

ZR – Pra dizer que a gente é que é violento.
CF – É, como também disseram que foi o candomblé que agrediu os evangélicos aqui. Eu cheguei tão assim querendo chegar perto e vi que está em todos os lugares. A doença não é só naquele eixo. Teve políticos locais, ligados à educação, dizendo que foram os fiéis do candomblé, os seguidores do candomblé, que provocaram, que fizeram uma passeata em frente dos evangélicos e nós sabemos que não foi isso. Eles, instigados, são pessoas que utilizam a Bíblia de maneira errada, nós sabemos disso.

ZR – É uma distorção.
CF – É e vai contra todas as coisas. Eu cheguei tão querendo [visitar a Casa Fanti-Ashanti] e disseram que está tudo [parado], devido à agressão, pessoas de idade serem abordadas com essa violência, sem saber como se defender. As casas estão em retiro religioso, não estão abertas, eu queria visitar, aproveitar, até pensei em esticar mais um dia para ir, mas não tem como, por que está em recesso, um recesso religioso, por causa dessas agressões. Lá está havendo isso, quebra-quebra, quebraram a estátua da Iemanjá.

ZR – Têm sido uma constante essas agressões, justamente por conta da permissão que os próprios governantes dão.
CF – É, eles sabem que podem fazer [interrompe-se com o começo da chuva, estávamos em um jardim interno, a céu aberto], agora virou dilúvio [mudamos de lugar].

ZR – Outra questão que eu me lembro dessa entrevista ao Pedro é que a senhora falou de destruição, desmatamento, meio-ambiente, quer dizer, o planeta está doente e ele vai ter uma resposta.
CF – Já está tendo.

ZR – De algum modo, eu não sei se a senhora pensava em pandemia, mas talvez a senhora tenha previsto a pandemia, que veio para ensinar alguma coisa pra gente, embora infelizmente muita gente ainda não queira aprender.
CF – É, negando, não usa máscara.

ZR – Como a senhora tem lidado com a pandemia, com o isolamento social? A classe artística sofreu mais do que qualquer outra.
CF – No bolso e na saúde mental. Tirou o lastro da gente, que é justamente a resposta do público. Tirou a plateia, que o trabalho da gente precisa, a gente vai cantar pra ninguém? E sem contar essa tendência que o brasileiro tem, eu nunca vi tanta farmácia aberta. Hipocondria, né? Mania de doença, de resolver sozinho. Os efeitos a gente está sentindo agora, está havendo uma dilatação. Muita gente pensava que ia durar seis meses, oito. Já se foram dois anos. Eu já vi muitas pessoas de onde eu moro, em São Pedro da Serra [distrito do município de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro], enlouquecerem da noite pro dia, ter um surto. Uma senhora seriíssima, ex-funcionária da Caixa Econômica, saiu correndo pela rua, com uma filha, e todo mundo com medo, “pra onde ela foi?”, ou que seja atropelada, andando na rodovia ao contrário, aquilo me deixou, uma pessoa que me dava carona, a gente ia junto pra Friburgo, super centrada, uma pessoa que sabe o que o Brasil está passando, sabe o que o mundo está passando, que é culpa da gente, por que foi muito permissivo. A gente ficou achando, achando coisa nenhuma, é pra ontem! Agora a coisa se instalou, muda de nome, mas é perigoso do mesmo jeito. Graças que agora eu já estou voltando a trabalhar, por isso que eu estou aqui em São Luís, os convites chegando, interesses de pessoas querendo tornar realidade a minha biografia, e saiu o disco, o relançamento, em plena pandemia, o disco “20 palavras” foi relançado. Fui procurada, disse “só pode ser fake news uma história dessas”, todo mundo de cabelo em pé, se escondendo no meio do mato, achando que a doença só ia ficar nos grandes centros. Não, ela varou tudo. E ele chegou e me convidou: “eu sou fulano, quem me indicou foi o filho de um casal de amigos seus, lá de Olinda, Pernambuco, Juliano Holanda. Ele disse que você foi a primeira pessoa que deu um cabo elétrico pra violão, tirou da sua caixa e deu pra ele, e ele não esqueceu nunca, e hoje em dia ele é um dos maiores guitarristas do Brasil”. Então ele apontou e disse, “olha, Rafael Cortez, Cátia de França tem um disco que precisa ser relançado”, e foi isso que aconteceu, quer dizer, em plena pandemia, num momento, a coisa geral, mundial, todo mundo assustado com essa coisa que desabou em cima de nossas cabeças e eu fiz o disco. Distribuído, foi todo transparente, e continua dando frutos. Então uma coisa puxa a outra, já vai sair um disco, pela primeira vez, com trilha sonora de um show meu ao vivo, que não tinha. Tinha coisa feita na garagem de casa, uma coisa bem rústica, mas dessa vez vai sair um trabalho mostrando um show meu ao vivo. Eu devo isso a Jarbas Mariz, que é músico há não sei quantos anos, de Tom Zé. É do Pará, mas é quase paraibano, trabalhou muito tempo comigo, fizemos Jackson do Pandeiro eu e ele, fizemos a Barca das Sete, de Niterói, Funarte, trabalhamos muito tempo, gravou comigo “Estilhaços” [1980], então Jarbas me deu esse presente. Ele tinha uma fita em condições comerciais boas, passou para o rapaz, e vai sair. O selo dele é de São Paulo, Fatiado Discos, Alan [Feres].

ZR – Aquele seu disco cantando Pedro Osmar chegou a sair?
CF – Não. Eu estive recentemente com ele e se ele já era teimoso quando era mais novo, imagina agora [risos do repórter e da entrevistada]. Ele está andando com a bengalinha e eu fiz um cumprimento a ele, alguma coisa me disse, eu nem ensaiei, na frente dele eu fico neném, por que ele é, sempre foi, sempre desconcertou. Uma pessoa que diz não ao luxo, não ao dinheiro. Zé Ramalho com “Avohai” [de seu primeiro disco, de 1978] estourado, tocando em todo o Brasil, entendeu?, e ele simplesmente quis sair da banda. Era hora de nego se agarrar com unhas e dentes naquele pedaço de filé mignon, de trabalhar com Zé, e ele saiu não foi pra agredir Zé, não, é por que a história de Pedro é outra, entendeu? E ele é um formador de gênios, gente, por exemplo, neto dele: Chico César é neto dele, Lenine gravou ele quando ninguém nem [conhecia], entendeu? Ele tem essa coisa. Só que assim, maleabilidade em coisa avançada demais, ele lasca o pau pra cima. Ele aceita até ali, musicalmente, mas modernismo ele corta a cabeça fora, em todos os sentidos. Eu encontrei com ele em pleno espaço cultural, que ele trabalha num setor, como se fosse um museu da imagem e do som, ele trabalha resgatando isso dentro do espaço cultural. Eu fiz um cumprimento africano pra ele, bati cabeça pra ele. Isso a gente faz no pé de babalaô, pai de santo, mãe de santo, e eu fiz na frente de todo mundo, aquela coisa, faça, depois você vai entender. Ele não riu, nem fez piada, ele ficou desconcertado, por que na frente de todo mundo. Eu me ajoelhei só com uma perna e bati cabeça no chão assim perante ele. Depois é que eu fui saber, de uma pessoa de dentro, que o orixá de Pedro é o que lida com a doença, que é o que é coberto, que é Omolu, é dele e do filho dele, eu não sabia, é da minha religião, não é o meu orixá. Dizem que é o orixá dele. E deve ser mesmo, por que é um senhor, é o senhor do jeje, o candomblé se divide em nações, a minha nação é ketu, Omolu é do jeje, como aqui também tem tambor de mina, ashanti também.

ZR – Foi na Casa Fanti-Ashanti, que aconteceu aquele episódio.
CF – Eu li sobre. Sim, pronto, foi isso. E Codó, que foi um banho-maria, tem muita gente de Brasília que buscava socorro aqui. É uma vastidão, você começa, é como se fosse a canastra da Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo, você começa a tirar uma coisinha de dentro, a caixa de pandora, e vai assanhando. Então compete à gente segurar esse assanhamento, dar um filtro aí, e usar cada um onde você sabe melhor sapatear. Minha história é conversar, musicar, engravidar dos livros e por aí vai. Eu quero que isso se eternize.

ZR – A senhora falou na recusa de Pedro Osmar com relação ao sucesso, ao dinheiro, mas a senhora também tem um caminho parecido. Tocou com Zé Ramalho e saiu e ficaram meio estranhos.
CF – [risos] Com Zé não foi nem essa história, de questão de dinheiro, não. Quando eu prometo uma coisa, eu faço. Ele produziu “20 palavras”, e iria consequentemente, que no contrato leonino diz que são dois discos, se ele fez um, iria fazer o outro. Só que a filha de João Cabral [a cineasta Inez Cabral] me botou pra botar músicas nos filmes dela e ela mostrou o desejo de fazer a capa do “Estilhaços”, só que ela já tinha tido um atrito com Zé.

ZR – Parece que eles namoraram, não é?
CF – É, parece, aí não sei. Mas deve ter sido, por que Zé… não é aquela coisa da beleza de um Adônis, Zé não é um Adônis, mas arrebata as mulheres. Ele tem aquela coisa agreste dele, é da mesma fornalha que Vital Farias foi feito, a gente conta nos dedos, um Zeca Baleiro, os homens com H maiúsculo. Então houve isso e eu fiquei no meio do sanduíche. Ela deu a entender que se eu fosse dizer não a ela, era um agravo muito grande e minha obra toda estava fumegante, dando certo, no universo de João Cabral. Como é que eu ia fazer, dar uma rasteira dessas? Eu tinha que ser honesta, ela permitiu, fez eu chegar até o pai dela, João Cabral eu só vi uma foto dele rindo, na revista Piauí, de São Paulo, ele não era chegado a essa coisa. E eu disse sim, tive que dizer não a Zé. E Zé não fez o “Estilhaços”. Dizia lá: dois discos, se deixar ficar à revelia o contrato é renovado automaticamente e eu tinha direito a fazer mais dois, na minha ingenuidade eu não tinha acompanhamento nem de produtor, nem de advogado, pra dizer “eita!”. Ou então se quiserem quebrar a cláusula contratual, vamos pedir um dinheiro da moléstia que eles dão. Epic era um selo com um braço americano. Apertaram minha mão e saí com a mão abanando, precisando de dinheiro e ficou por isso mesmo. Debutei no mundo do vinil desse jeito. Gravei o “Estilhaços”, mas sob uma gestão que não chegava aos pés de Zé Ramalho, eu fiz uma coisa toda esfacelada.

ZR – Como é sua relação hoje, para citar dois nomes de talentos de sua geração, com Zé Ramalho e Vital Farias? Eu pergunto pelo seguinte: recentemente Zé fez um show em Santos e proibiu que uma banda local se apresentasse na abertura, alegando que ele não seria escada para ninguém fazer sucesso, algo nada generoso. E a senhora falou há pouco, sobre a destruição que Bolsonaro promoveu, que outubro está chegando, e Vital Farias é um bolsonarista contumaz.
CF – Uma decepção para quem fez a “Saga da Amazônia”. Essa doença não dá falta de ar, ela dá falta de senso. Se Vital, filho de tratorista e de uma senhora do povo, lá de Taperoá, fez essa saga e várias coisas, ele tem várias composições que enternecem, e comete essas coisas. Essa doença dá falta de ar, dá ataque cardíaco e parece que come o juízo da pessoa. É coisa de loucura. Está sendo exorcizado visceralmente. Onde eu chego perguntam, se é mesmo, se é mentira, se não é. Ele tenta se aproximar, chega a conversar pelo whatsapp, eu evito, entendeu? Não é que eu tenha medo que isso vá respingar minhas histórias, eu tenho medo é da minha reação. Andei com ele, ele conheceu minha mãe, é do tempo que a gente andava junto, comprava os discos de Jorge Ben pra ouvir, era o tempo que eu era da banda Os Quatro Loucos, tocando nesses bailes de sexta, sábado e domingo, vestidos igual os Beatles, nesses tempos de São Paulo, antes de fazer “A gota d’água”, fazendo teatro subversivo do Luiz Mendonça, em 1975, à mercê de uma polícia virulenta, como era o Doi-Codi. Eles não topavam com a cara da gente, quando sabiam que eram nordestinos, levavam a gente de camburão, “não, é bem ali, a gente pode ir pegar a carteira de trabalho e mostrar que a gente está trabalhando, a gente trabalha embaixo e dorme em cima, ali na Brigadeiro Luiz Antonio”. Não quiseram. Levaram a gente, soltaram na outra quadra. Mas só pra humilhar. Juntou gente em frente ao teatro, o Teatro Aplicado, que hoje em dia é outro nome. Vital tem o histórico da família, ele já teve um irmão que enlouqueceu, o filho, o varão, ele tem vários filhos pelo Brasil afora, mas o que ele moldou, andava com ele, tocava, ele queria que fosse o herdeiro dessa história dele, enlouqueceu também, o Tomaz. As meninas não, sempre os homens que enlouquecem. Isso tem um pé nessa coisa que tem, não sei se é casamento de prima com primo, nos interiores tem isso. Eu tento dar essa explicação, a família tem esse estigma de que os varões enlouquecem. Zé Ramalho, isso é recente?

ZR – Semana passada. Ele já tinha, na época do governo Dilma, dado uma declaração mais ou menos assim, que agora aeroporto parece rodoviária, cheio de pobre.
CF – Ave Maria! Cheio de pobre, é? Sem comentário. Eu não sei. No momento em que me afastei, que eu fiz minha escolha, pago até hoje essa escolha. Outra pessoa queria gravar músicas minhas e eu abri mão para que fossem gravadas por pessoas do eito. Eu durmo tranquila, quando eu boto a cabeça no travesseiro eu não me arrependo de nada que eu fiz.

ZR – Isso é que é importante. E continua ativa, produzindo.
CF – Sim, eu engravido que Ave Maria! [risos].

ZR – Eu gosto dessa expressão que a senhora usa.
CF – É, eu leio uma obra, leio uma coisa, é isso.

ZR – Deixa eu voltar um pouquinho na questão da pandemia. Antes do isolamento social foi anunciada uma turnê da senhora com Ceumar e Déa Trancoso, pelo Sonora Brasil, do Sesc.
CF – E aconteceu.

ZR – [surpreso] Aconteceu? Mas vocês iam passar por São Luís e não vieram.
CF – Sim, por que estourou a pandemia. A gente ia fazer Norte e Nordeste. Aqui, Belém, onde eu nasci, fazer toda aquela faixa litorânea ali, tudinho, aí a empresa suspendeu, o Sonora do Sesc disse que não tinha condições.

ZR – Aí São Luís foi punida [risos]. Eu estava louco para ver esse show.
CF – Foi pra torar. E a gente querendo, por que foi uma junção de três mulheres, duas arianas com aquário no meio, eu sou aquário. Eu passei por esse sanduíche, passei por momentos… Mas é bom quando a gente estica o elástico, eu tenho toda uma maleabilidade para conviver sobre brasas, é uma alma meio de faquir que eu tenho. A Déa é um touro perigosíssimo, no bom sentido, ela que fez os textos todos, que me elogia assim escancaradamente. E Ceumar é uma fada que despencou de alguma nuvem. Não tem ninguém com resquício de estrela, de exigir, nem poderia, por que o projeto é todo enxuto.

ZR – É, não tem nem amplificação, para se ouvir a voz e o violão naturais.
CF – Sim, seria desafiante para a Xuxa [risos do repórter], você tem que ser mesmo e meter a goela pra cima, sem microfone, pegando todo tipo de plateia, não é toda hora que o Sesc tem um, como é o de Santa Catarina, parece que a gente tá em Nova Iorque. A gente teve em salinhas, associações, cantou arrumado na hora em salão de festas, a gente fez capitais e fez o Brasil que a gente não sabe, que é aquele lá de dentro, por baixo dos panos. A gente conversando juntas, levando discos, eu recebi não sei quantos [objetos], estão aqui no meu bolso, e eu ando pra cima e pra baixo com isso. Eu guardei isso aqui, é um objeto de proteção. Imagina! Eu ficava assim emocionada, as lágrimas vinham aos olhos, por confiarem. Eu me tornei, a gente chama isso de guardiã, de zeladora de objetos de poder. E as coisas que eu vi, “ah, eu conheci a sua música, por que meu tio tinha uma fita k7” e pediu para eu cantar “Ensacado” [faixa de “Estilhaços”]. E todo um resgate. Por onde anda meu parceiro de música Sérgio Natureza? Lá me salva o facebook de novo, catuquei, cheguei numa sambista, ela descobriu a filha dele no exterior, pronto, eu soube onde ele tava: na Casa dos Artistas, teve um problema de saúde, ficou impossível.

ZR – Eu não sabia, eu tinha contato com ele.
CF – Muita gente disse, “eita, a gente tinha uma aproximação com ele e não sei onde ele foi”. Conversei com a filha, não tinha condição de viver na família, foi colocado no Retiro dos Artistas, no Rio, tem momentos de lucidez e tem momentos que não. Eu consegui fazer chegar na mão dele, num momento de lucidez, o disco novo, com encarte, com tudo, que é o “20 palavras”, que foi lançado pela Três Selos, do Rafael Cortez.

ZR – A senhora falou do relançamento do “20 palavras”, vai sair um disco ao vivo. O que a senhora pode falar de projetos a curto, médio e longo prazo?
CF – A biografia!

ZR – A senhora está escrevendo?
CF – Não. São pessoas de São Paulo, duas jornalistas. Pediram para não dar logo o jogo para não secar a pimenteira. Tem isso, tá na hora. Documentário, tá na hora. E inéditas. Todo mundo pergunta, “mas cadê?”. Eu tenho, mas tem que lançar da melhor forma. Dina Faria, minha produtora [que acompanhava a entrevista], é quem diz “não, lançar 12 músicas duma vez só?”, não, hoje em dia é single. Tem uns nomes que eu ainda estou me acostumado a andar nesse mundo que existe e a gente não pega, é o lance de ter fé. Tem isso também, lançar uma música inédita. E mil vertentes, eu vou sair da zona de conforto e me aliar a outras linhas de música, claro, que não vá mexer com minha mãe e meu pai lá em cima, que me deram uma trilha política para seguir, para não fazer concessão. Então eu vou só tomar outra roupagem, mas a integridade interior, a minha espinha dorsal continua como minha mãe me fez. Minha mãe é Adélia de França e meu pai, um crioulão de um metro e noventa, Sebastião Higino Carneiro, o Carneiro é dele, a França é de mamãe, da minha vó, que era lavadeira em Rio do Peixe, interior da Paraíba.

ZR – A senhora falou na questão do single. Quando a senhora ouve música ainda vai pro vinil, pro cd, ou já lida bem com o streaming, com as plataformas digitais?
CF – Não, esse tá danado. Esse nome que você acabou de dizer, esse aí, Ave Maria! Eu sou do tempo, olhe, eu vou ter que ser, eu vou ter que me modernizar. Eu vi pessoas, vejo gente de outras áreas, de teatro, de cinema, no instagram, me elogiando. E eu tenho que responder, por que vai parecer, que doidice é essa?, que esquisitice é essa? E eu, até me deram um celular até richoso [teimoso], mas eu não sei mexer nele, eu estou aprendendo. Eu preciso, eu vou confessar, vai mostrar como eu sou xucra. Eu ainda me emociono com radinho [risos], radinho de pilha. Eu comprei há muito tempo, eu ligo de noite e adoro. Eu gosto de ver o impossível, por que não tem nada muito elaborado. Eu gosto disso. Mas tenho que falar igual, por que se não eu fico à margem do tempo. A tendência é isso mesmo. E foi isso aí, fazendo live, e pingando o chapeuzinho virtual, eu fiz muitas lives. Uma das coisas que eu sou melhor, tá bom, eu adoro tocar com banda, fazer o povo dançar, eu fiz uma [apresentação em uma] casa de shows lá em São Paulo, foi maravilha, eu dormi primeiro pra começar a tocar [a partir] de meia noite, mas eu gosto é dos saraus, eu sentada, agora com a história que eu tenho problema no joelho, então eu sentada e tendo à altura da minha mão, como se fosse a cartola do mágico, pra eu tirar os coelhos e os pombos e conversar e falar do universo que eu ando, e os livros que eu vou descobrindo, que sempre estão surgindo. Graças a Deus não começaram a queima de livros em praça pública.

ZR – Tomara que não volte esse tempo.
CF – É o tal do Farenheit [refere-se a “Farenheit 451, romance de Ray Bradbury adaptado ao cinema por François Truffaut], né? [risos]. Oh, meu filho, e quando você vir o Pedro, essa pergunta dele foi um chute na canela da idiotice vigente no país. Não tinha ninguém burro no poder e não tinha nenhuma epidemia, e ele disse “por onde anda Cátia de França?”, isso dizendo na Folha de S. Paulo, na Ilustrada. Aquilo ali é pra gente comer de garfo e faca. O Estadão também eu gostava muito, o que saía antes, saía um caderno especial só com coisas escolhidas a dedo.

ZR – Era no tempo que Jotabê Medeiros escrevia lá, é outro que está com a gente no Farofafá.
CF – Ah, que ótimo! Esse Farofafá é parecido com o Bondinho daquele tempo.

ZR – A gente se esforça.
CF – Eu tinha tudo isso, coleção do Bondinho, do Pasquim, eu tinha tudo isso.

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