A volta do teatro depois da pandemia. Imagem do Grupo Galpão (BH)
Grupo Galpão, de BH, fez apresentações no teatro online durante a pandemia - Foto: Guto Muniz

Dezenove profissionais das artes cênicas, a maioria atores e diretores, falam com exclusividade ao FAROFAFÁ sobre o retorno do teatro presencial, já liberado em muitas cidades brasileiras, inclusive a capital paulista. Haverá uma volta imediata? Nem todos ainda. Há quem planeje apresentações ao vivo apenas em 2022. E como foi a experiência dos espetáculos online, transmitidos em uma “tela achatada com delay e feita para conferências”, como resume o diretor Gerald Thomas? Muitos apontaram que novos públicos foram conquistados, uma espécie de efeito colateral do bem em relação à necessária democratização do acesso à cultura. Em muitos municípios, não há salas de teatro ou jamais se viu uma peça presencial.

Para Yara Novaes, atriz, diretora e professora de teatro, a pandemia permitiu que a arte fosse vista como “uma companheira indispensável em nossas vidas”. Já Eduardo Moreira, diretor do Grupo Galpão, manter o teatro vivo mesmo que de forma inusitada no virtual representou “um lugar de resistência no sentido de ocuparmos os espaços possíveis e, assim, reafirmamos nosso ofício”. Leia a seguir os relatos tanto da experiência durante a pandemia quanto dos planos futuros:

Gerald Thomas, diretor e autor

“A experiência foi boa. Foi ótima. Conseguimos entrar em recintos e atingir pessoas que, de outra forma, não iriam assistir ao espetáculo. Foram duas versões potentes de Terra em Trânsito. Dentro dos limites e fronteiras do permitido durante a pandemia, vou até considerar aquilo como ‘teatro’. Mas uma tela achatada com delay e feita para conferências não é teatro. E nunca será teatro. É um estado horrendo do teatro, algo moribundo que estaria melhor se escondido atrás de paredes. Mas… fizemos um teleteatro, um inter-teatro. Ainda estou no meio de outra produção (essa em premier mundial) também para online: G.A.L.A., que estreia em 22 de setembro, pelo Sesc SP. E aqui em Nova York estreio em 3 de outubro como ator solo e criador de Apocalipse numa Garrafa. Quando voltar, ah!, quando voltarmos deste inferno, daí sim eu anuncio o que vem pela frente.

“Aprendizado? Nenhum. Ao meu ver a arte (ou o teatro em particular) não precisavam ‘aprender’ nada de novo. Nenhum crime foi cometido. Agora, o que aprendemos como sociedade? Muito. A vida é curta, mas a responsabilidade de cada um é muito maior do que se esperava. Se já é hora de voltar com público presencial? ÓBVIO que é hora de voltar a ser ao vivo (ou presencial). Teatro é esse ritual que não morre. Estamos de pé desde os gregos. Olha o monólogo final do (Marco) Nanini no meu Circo de Rins e Fígados (2005):

“Olha, gente… eu… moro no Brasil. Vivo e trabalho no Brasil com muito orgulho. É irônico porque, apesar de querermos brincar, trabalhar, sempre parecem querer… querer colocar algum obstáculo, alguma pedra no nosso caminho. Desde Sófocles, por exemplo, sobrevivi a tantos tribunais, a tantas Inquisições, tantas guerras mundiais, conflitos locais, emboscadas culturais, ditaduras, proibições de todos os tipos e, no entanto… continuo de pé, e tudo aqui neste país maravilhoso das chacinas e do racismo não assumido. E de tantas outras atrocidades e injustiças. Sou como o Brasil: não tenho solução. Sou um problema. Mas sou um problema sensacional. Assim como um belo gol, a mais bela literatura dramática do mundo, a literatura de Nelson Rodrigues. Não há ninguém melhor no mundo. E mesmo ele levou ovo e tomate na cara quando… ah… deixa pra lá. Causo muita dor. O teatro causa muita dor. Mas somos como a própria natureza: belos como o nascer e o pôr do sol, e devastadores como um tsunami, um terremoto, um furacão. Destruímos, desconstruimos, brincamos de estilhaçar tudo. Mas essa lucidez toda vale a pena: afinal, é ela que sobrevive através de todos esses séculos, mesmo com essa tecnologia toda agora entrando como se fosse um pontapé no nosso estômago. Eu fico assim, como o berro silencioso de Munch, ou um Álbum de Família, e quando dizem que ator não se emociona, estão errados.

“A gente se emociona, sim. A gente se emociona, sim.”

Yara de Novaes*, atriz, diretora e professora de teatro

“Foi uma experiência com muita pesquisa, aprendizado e descobertas. Acho que ter ido para lugares que evocam linguagens distintas – de games a aplicativos de mensagens, passando por videocontos e webseries – me mostrou que o nosso conhecimento teatral  pode ser combustível para realizar poéticas surpreendentemente lindas.

“Os planos são fazer o que era para ter sido feito e outros projetos que surgiram nesses tempos de covid, um Tennessee Williams, um Sérgio Blanco, andar com os espetáculos do Grupo 3 e , sobretudo, trabalhar e lutar para reconstruir o nosso país, tão vilipendiado e escarnecido por esse atual governo, que só piorou e piora os efeitos da pandemia. Se o teatro puder ajudar nessa reconstrução será maravilhoso!

“Precisamos, sim, achar modos de voltar, com segurança e responsabilidade, afinal, é muito provável que isso continue por um bom tempo ainda; e é importante começar a caminhada.  Estamos em cartaz, no CCBB-Rio, com o espetáculo Neblina *, e mesmo com algumas amarras e estranhezas tem sido muito bom estar lá, nos encontrando com um público que também sente a nossa falta. Nessa pandemia percebemos como a arte é uma companheira indispensável em nossas vidas, estaríamos muito mais desamparados sem ela. Além disso, nós artistas temos sido pontas de lança no combate às malevolências a que estamos sendo submetidos.”

Yara de Novaes, com a peça Neblina
Yara de Novaes, com a peça “Neblina”, no CCBB-Rio – foto Guto Muniz
* em cartaz com Neblina, no CCBB-Rio, até 12 de setembro.

André Guerreiro Lopes, diretor

“Vejo o teatro online como uma experiência do possível. Um impulso de reinvenção e sobrevivência de uma classe artística que sofre brutalmente as sequelas da pandemia. Mas também uma experiência que abriu janelas experimentais muito interessantes, nesse entrecruzamento com o audiovisual e o digital. Para além de classificações sobre o que é e não é teatro, abraçar o inclassificável permitiu que obras muito inventivas fossem criadas, nesse híbrido entre teatro, audiovisual e videoarte. No meu caso, confesso que inicialmente tive resistência em adaptar para o online o espetáculo Insônia – Titus Macbeth, originalmente erguido tendo a presença como conceito central: o público era livre para circular entre os atores durante apresentação, em uma troca física. Mas o desafio de proporcionar ao público remoto uma experiência também imersiva foi muito estimulante, que me levou a utilizar câmeras ágeis, que invadiam a cena se aproximavam dos personagens, além de um tratamento de som binaural, que criava para o espectador de casa a ilusão de estar dentro do palco. O retorno do público foi surpreendente e gratificante. Pessoas de todo o Brasil nos assistiram, além de espectadores na América Latina, Estados Unidos, Europa e Japão, nesta democratização que a plataforma digital permite. E muitos falaram em ter vivido uma experiência contundente, transformadora, de envolvimento total com o espetáculo.

“Quando o teatro puder voltar com força total acredito que viveremos uma espécie de primavera teatral, um renascimento. Mas receio que este momento ainda deva demorar a chegar por conta das variantes da covid-19, sem falar do imbróglio trágico das vacinas por todo o negacionismo político desse governo. Aos poucos alguns teatros estão retomando, com público restrito ou formas híbridas (presencial e online), mas o quadro é incerto e pode haver recuos. No momento estou trabalhando no espetáculo L.O.R.C.A., a partir dos poemas do poeta andaluz. É um poeta a ser revisitado neste momento tão delicado. Assassinado aos 38 anos por grupos fascistas no início da guerra civil espanhola, Lorca tem uma poesia que extrai da morte a afirmação da vida, plena de imagens poderosas, extremamente mobilizadoras. Pretendo estrear uma outra versão com público presencial somente no ano que vem, mas por ora estou me dedicando para a versão online, com estreia ainda este ano. É uma produção que mistura documentário, teatro ambulante e caixas mágicas, poemas transpostos para o micromundo das maquetes. A ideia é levar para o público remoto uma experiência teatral singular, impossível de se viver dentro de uma sala de teatro, que dialoga com o teatro itinerante do próprio Lorca no grupo La Barraca e com o universo lúdico do pré-cinema, do objetos ópticos de ‘maravilhamento’ dos artistas de rua do século 18.

“O quadro é incerto, os teatros estão reabrindo aos poucos com público restrito, seguindo todos os protocolos de segurança, mas não sabemos se haverá recuos. A pandemia está longe de terminar, mas de qualquer forma já é possível observarmos aprendizados evidentes. O primeiro é o reforço do óbvio: o teatro é uma arte viva, inclassificável, sempre em movimento e atenta à realidade, que sabe se reinventar e surpreender. Presencial, online, radiofônico, performático, o teatro é um organismo dinâmico, desobediente, que recusa formas fixas e limites pré-estabelecidos. Outro aprendizado é relacionado à própria linguagem cênica. O uso do audiovisual no teatro é tudo menos uma novidade, mas por conta das necessidades impostas pela pandemia equipes de teatro e de cinema passaram a colaborar com uma intensidade criativa sem precedentes, que certamente deixará um legado. Mesmo com a saturação de peças online, algumas obras conseguiram fazer uma fusão do melhor desses dois mundos, muitas vezes incorporando também elementos da videoarte. Tanto o teatro quanto o audiovisual saem ganhando dessa experiência. Falando especificamente de São Paulo, sempre houve uma certa barreira que separava os criadores de teatro dos de cinema, mundos distintos que dialogavam pouco, obviamente com exceções. Mas a pandemia ajudou a derrubar esse muro, espero que essas colaborações continuem vivas e pulsantes, nos palcos e nas (multi)telas.“

Paulo de Moraes, diretor do Armazém Companhia de Teatro (RJ)

“Em julho de 2020, quando estreamos Parece Loucura mas Há Método não tínhamos ideia do que iríamos encontrar, mas havia a necessidade de encontro com o público de alguma forma, mesmo virtualmente. E o encontro foi potente. Já apresentamos mais de 60 vezes o espetáculo e fomos vistos por pessoas de mais de cem cidades no Brasil e 20 países diferentes. Pessoas que dificilmente veriam um trabalho da companhia em condições normais. Então, essa experiência de poder levar nosso trabalho a lugares tão distintos foi incrível. Por isso, estamos preparando uma continuação dessa experiência, chama Parece Loucura mas Há Método – A Dois. É uma evolução na nossa pesquisa, seguindo ainda com textos de Shakespeare, mas agora saindo nos solilóquios e monólogos e caindo nas cenas mais importantes de algumas peças pouco montadas de Shakespeare, como Medida por Medida, Henrique IV, Tróilo e Cressida e Júlio César. Não acho que já seja a hora de voltar e é muito triste dizer isso. O teatro passa por uma dificuldade muito grande, mas segue sendo difícil prever o que vai acontecer e até fazer algum planejamento.”

Eduardo Moreira, diretor do Grupo Galpão (BH)

Foto de Eduardo Moreira, do Grupo Galpão
Eduardo Moreira, diretor do Grupo Galpão – foto Mateus Lustosa

“A experiência foi intensa dentro de suas limitações e possibilidades. É certo que, no contexto atual, estamos restritos ao espaço virtual e apartados de qualquer possibilidade de plenitude artística. Trata-se de fato de um lugar de resistência no sentido de ocuparmos os espaços possíveis e, assim, reafirmamos nosso ofício. Estamos esperando a possibilidade de um retorno presencial que nos permita reencontrar presencialmente o público. Porque, de fato, é isso que constitui o fazer teatral – exercer nosso ofício no permanente encontro com o público. Cada nova experiência é uma reafirmação desse preceito, desse imperativo. Nossa previsão é que iniciemos 2022 com grandes turnês em Belo Horizonte, no Rio e em São Paulo, com a apresentação do repertório dos nossos últimos espetáculos. Seria uma forma de celebrar um reencontro com as pessoas, depois desses quase dois anos de isolamento. Por enquanto, diante da impossibilidade e do risco de organizar um encontro presencial com o público, seja no teatro, seja na rua, decidimos promover para este ano  um projeto que denominamos Dramaturgias – Cinco Passagens para o Agora, em que buscamos parcerias com dramaturgos e diretores para criar histórias passeando pela forma híbrida entre o teatro, o cinema e o vídeo.

“Esperamos que já seja a hora para isso, apesar da ameaça das novas variantes do vírus. Os aprendizados aconteceram, especialmente no que toca a explorar ao máximo a relação virtual com o público. Um exemplo disso foram as várias oficinas virtuais que demos com a participação intensa de interessados de todo o Brasil. A exploração dos meios virtuais com produtos e conteúdos artísticos é outra possibilidade que me parece importante de ter continuidade.”

Renato Rocha, diretor do Núcleo de Artes Integradas (RJ)

“A experiência com as plataformas digitais que ganharam força durante a pandemia nos trouxe uma oportunidade de aprendizado e de criação de um campo de encontro afetivo entretelas, onde novas relações foram estabelecidas, tanto no que se diz respeito à pesquisa artística, os procedimentos de processos criativos e novas formas de se expressar o fazer artístico e as novas plataformas híbridas e performativas. Além de perceber as ferramentas tecnológicas como uma possibilidade de desenvolver processos criativos e linguagens estéticas que estabeleceram uma relação de alcance, produção e criação, e ainda de recepção do público em relação aos novos trabalhos que surgiram nesse tempo. Nos fez perceber também o quanto os registros audiovisuais de trabalhos, a princípio pensados para o ambiente cênico, podiam ser mais elaborados e livres de determinados preconceitos até então predominantes. Nos deslocaram violentamente para um novo ambiente, e nos fizeram rever as relações obra-encontro-espectador-experiência, nos levando a experimentações mais ousadas e novas que arejaram as redes sociais e o próprio circuito de artes. Enquanto a ideia de teatro online dividia a opinião daqueles que se preocupavam em se antecipar em definir conceitos e nomenclaturas, artistas, coletivos e público puderam se lançar em experiências audiovisuais e híbridas na busca de um novo espaço de encontro que veio para expandir ainda mais o campo das artes ampliadas.

“Eu, como artista e pesquisador das artes no campo expandido, sigo tentando estar aberto para as novas possibilidades de experimentação e relação nesse espaço entre, na fissura e nas brechas que se abrem a todo momento entre os diferentes fazeres artísticos, seus procedimentos criativos e os encontros com cada público. Sigo apostando em trabalhos híbridos que possam dialogar com as transformações do mundo contemporâneo e engajado com as questões urgentes de nosso tempo. Tanto no cenário internacional como nacional, sigo realizando trabalhos como o projeto Casa Comum, em parceria com o estúdio londrino SDNA e mais dez artistas amazônicos, dois cineastas e um artista sonoro que cria experiência em videoarte e videoperformance numa imersão na Amazônia com povos indígenas da floresta que serão projetados por videomapping na arquitetura da cidade de Londres. Mas também como meu grupo o NAI – Núcleo de Artes Integradas, que numa parceria inédita com FFAC -ateliê e a fábrica da Bhering, estamos criando um projeto multimídia que fará parte da programação artística da Conferência do Clima em Glasgow, na Escócia, em novembro. Mas que pretendemos trazer ao Brasil para um experiência presencial imersiva, entre a performance, o audiovisual, o site specific e as artes visuais, além de seguir pesquisando o espaço público, e o diálogo entre corpo, arquitetura, paisagem  como lugares de passagem e encontro com o público em diferentes territórios da cidade, criando novas perspectivas e olhares para a cidade e suas interfaces possíveis.

“Acredito que seja a hora de retomar o encontro com o público presencialmente. Não só acredito como penso ser fundamental nesse processo de cura que estamos passando como sociedade a possibilidade e a urgência desse encontro. Porém, como tivemos uma mudança de contexto e panorama, considero importante perceber para isso o que a pandemia nos ensinou: que o que mais importa é a saúde e o bem estar social do coletivo. O olhar pro outro e o cuidar de si mesmo para o bem coletivo, ficaram evidentes como premissa básica de qualquer ação artístico-política. Num governo genocida, que pretende mais do nunca asfixiar até a morte seus artistas, sua cultura, seus intelectuais, cientistas, negros, LGBTQIA+, populações indigenas, minorias e a própria natureza em si, fica urgente colocar a saúde e a segurança de todas as pessoas em primeiro lugar. E sim, criar espaços, normas, cuidados, protocolos e alternativas para a retomada do encontro presencial fundamental entre artista-obra-espectador, para que a arte faça sua parte na cura, na retomada no lugar do sensível, da vida e de uma nova definição e construção da própria ideia de nação e de sua cultura e sua expressão no mundo.” 

Sara Antunes, atriz

Sara Antunes, na peça "Dora"
Sara Antunes, na peça “Dora” – foto Alessandra Nohvais

“A experiência foi muito positiva. Consegui desenvolver experimentos híbridos audiovisuais na pesquisa sobre a guerrilheira Dora, que fez nascer um curta, De Dora, por Sara, que estreou no Festival de Tiradentes e segue rodando festivais de cinema, e a peça online Dora. Ambos fazem parte da mesma pesquisa que quero, enfim, aprofundar para nascer, assim que possível, num teatro. Não será uma adaptação, transposição, cada forma expressiva tem suas demandas! Quero que seja continuidade, outra coisa, outro título! Ainda fiz a adaptação de Sonhos para Vestir, dirigido pela Vera Holtz, que desejo entrar em cartaz de maneira remota, sempre com a parceria do Henrique Landulfo. E quando os teatros se abrirem chegaremos sedentos de palco e presença e dilatados por essas experimentações todas.

“Eu pessoalmente sinto necessidade, mas não tenho segurança de voltar presencialmente ao teatro. Consigo com clareza ver mais derrotas que aprendizados no nosso campo: perdas, desmonte cultural, miséria. As queimadas na Amazônia ou na Cinemateca são imagens que representam o que os trabalhadores da cultura estão sentindo na pele. É violento. Mas a gente não se entrega porque criar é tudo que temos. Então, para além das descobertas experimentais que fizeram a gente sobreviver ao período, fica esse desejo de resposta, de criações ainda mais pungentes, encontrar o gesto artístico que convoque e que fortaleça o bem comum.”

Pascoal da Conceição, ator

Pascoal da Conceição interpreta Mario de Andrade
Pascoal da Conceição interpreta Mario de Andrade – Foto: Alessandro Nohvais

“Querido, você pergunta sobre os planos do teatro para o pós-pandemia. Sendo curto e grosso: continua foda! Antes da pandemia, durante e, mesmo nestes momentos em que parece que alguma coisa está chegando ao fim, nós, artistas, não paramos de lutar contra a destruição da educação, dos direitos trabalhistas, pela vacina, contra censura e, principalmente, pela cultura. Fomos às ruas, às redes, dedicando nossa vida de artista pra urrar dia e noite contra o genocídio de vidas e esperanças. Entramos aos trancos na pandemia, dentro dela nos viramos e nessa fogueira de futuro incerto sabemos tão somente que a luta continua e vamos estar nas ruas, nas redes, sem esmorecer. Esses são os planos.

“Sobre a hora de voltar, pressinto, sim, que está chegando a hora de um encontro público de toda sociedade, e ele se fará principalmente da cultura. Mas não será uma decisão fácil, nem simples, porque esse acontecimento tão desejado envolve uma prática, aliada a uma decisão democrática e de respeito a todas as vidas, afinal estamos diante de novos tempos para a vida e para a liberdade. O aprendizado que se ganha com as ditaduras, as guerras, pandemias, é o sofrimento, que exaure nossa humanidade. Quase 600 mil mortes no Brasil ensinam e muito sobre a empatia e solidariedade, a todo momento, estamos diante do imperativo de preservar e exercer os objetivos mais nobres da nossa existência. E isso só reafirma a necessidade da cultura. Porque estamos diante de sentimentos que não são inatos à raça humana, são vitórias da humanidade, que através da cultura, compreendemos o valor de respeitar, amar e preservar todas as manifestações da vida.”

Vinicius Calderoni, dramaturgo

“Tive duas experiências como criador de teatro online e como espectador. Como criador, eu e o Gregório (Duvivier) adaptamos a peça Sísifo para o formato online, a convite das performances ao vivo das apresentações do Sesc, que a gente chamou de A Montanha Vai a Sísifo. A gente criou até pequenos textos novos para contextualizar o momento e justificar as mudanças de ordem, porque no fim foi uma performance de 30, 45 minutos que reaproveitou vários momentos da peça, mas num novo contexto também. Conseguimos uma coisa maravilhosa que foi: o cenário da peça é uma rampa. A gente achou na casa da mãe do Gregório, no Rio, uma pedra enorme, que fica dentro da própria casa, sobre a qual a casa foi construída e foi uma tradução visual espetacular, O resultado foi incrível. A coisa mais excruciante foi dirigir à distância, dirigir por videoconferência, dizendo um pouco mais para cá, isso e aquilo. Estava em São Paulo e  tive o auxílio luxuoso do Miguel, diretor de fotografia, primo do Gregório, e que foi fundamental para traduzir cada uma das coisas e pensar no movimento de câmera. A linguagem se transmuta. Passa a ser um produto audiovisual. O teatro online é uma outra coisa, que numa outra instância dá para dizer que não chama teatro. A outra coisa que fiz foi a dramaturgia Ítaca, 365, Apto 323, dirigida e interpretada pelo Cacá Carvalho, brilhante, de que fiz a dramaturgia com o Guilherme Gontijo Flores, um grande poeta que fez a primeira incursão dramatúrgica ́dele. Ítaca é uma livre adaptação da ideia de retorno a Ítaca, com vários trechos traduzidos pelo Guilherme, da própria Odisseia, mas aproveitando uma costura de coisas que tanto eu como o Guilherme escrevemos, que reverberam a fortuna crítica e o espírito da Odisseia, de uma obra tão fundadora. Foi outra experiência diferente. Foi um aprofundamento, um processo longo, feito a convite da Tatyana Rubim, que encabeça o movimento Teatro Movimento Online. Mas foi um outro lugar como criador requerido, mais próximo de alguns processos teatrais que já vivi, mas o resultado é audiovisual. O teatro online tem uma mediação da imagem, que dialoga com a televisão e o cinema, obrigatoriamente o vetor resultante é transmitido através de uma câmera, então o recorte é o enquadramento da câmera, não mais o recorte da luz cênica. É uma outra questão completamente diferente.

“Para a retomada, tenho um projeto aprovado junto com a minha companhia, minha e do Rafael Gomes, Empório de Teatro Sortido, completamos dez anos em 2020, na verdade não pudemos completar efetivamente. Mas temos um projeto aprovado de circulação com o (Prêmio) Zé Renato, com pelo menos 50 apresentações, de espetáculos e inclusive leituras. Os dez espetáculos da cia feitos nesses últimos dez anos serão reapresentados, todos os textos da minha trilogia Placas Tectônicas, mesmo Os Arqueólogos, e outros espetáculos do Rafael, e mesmo espetáculos que não são originários nossos, e que serão relidos também. É um grande evento que a gente não quis adaptar para o online pelo simples motivo de que não foram criados para essa finalidade. A gente entendia que esses espetáculos feitos para outra celebração não poderiam ser feitos para outra mídia. Então a gente está esperando o quanto pode e nosso plano é fazer essa temporada. Agora estamos avaliando os caminhos de pauta (palcos). Sabemos que vai haver um ‘estouro da boiada’, porque todo mundo está com projeto aprovado e as coisas vão começar a se retomar, mas a ideia é fazer no começo do ano que vem, entre janeiro e março, porque é um processo de um a dois meses.

“Os aprendizados que emergem são de resistência, resiliência, de persistência e saber que a vontade de fazer, expor o que a gente cria, o que tem vontade de comunicar é mais forte do que tudo. Muitas vezes encontra barreiras, mas vai encontrar seu momento, seu eco. É muito cruel essa pandemia, mas, puxando a brasa para nossa sardinha, a gente, nós do teatro, fomos muito prejudicados, porque é um dos últimos segmentos a voltar. É o próprio encontro pessoal, o compartilhamento das pessoas, lado a lado, sentados sem distanciamento, todo esse congraçamento que o teatro proporciona, é simplesmente tudo o que há de mais perigoso numa pandemia. Um lugar fechado, de pessoas próximas, rindo, falando e tudo mais. O aprendizado é de resistir, persistir, procurar caminhos, alternativas, e certamente tudo o que a gente fez, todas as janelas vão alimentar nosso desejo de dizer coisas importantes e bonitas. O mundo que vai emergir no final dessa pandemia, quando essa pandemia não existir mais, que esperamos que seja o quanto antes, vai passar pela ressignificação que só o teatro pode dar. O teatro é uma maneira privilegiada de experienciar a condição humana. O teatro terá muito a contribuir com esse momento histórico.”

Anderson Bizzocchi, fundador dos Barbixas

Foto de Anderson Bizzocchi, dos Barbixas
Anderson Bizzocchi, dos Barbixas – foto Marcos Shukster

“Primeiro tivemos que nos adaptar com a total ausência do público. Foi estranho no início não ter o timing da risada. Fizemos diversos eventos onlines para empresas em plataformas online, como Zoom e Teams, em que o público interagia conosco via chat. Mas nós faziamos uma cena, e não vinha nada, obviamente. Não havia  risada. Rapidamente percebemos que tínhamos que divertir um ao outro e confiar na nossa experiência e que estávamos sendo engraçados. Com o tempo, pedíamos que as pessoas no chat do app escrevessem os ‘hahaha’ ou colocassem emojis para demonstrar que estavam gostando do evento. A pandemia trouxe diversos aprendizados. A começar pela coisa mais simples: existem reuniões que não precisam ser presenciais (risos). Se havia a máxima de ‘esta reunião poderia ter sido um email’, agora existe a ‘esta reunião pode ser pelo Zoom’.

“Estamos inaugurando o Clube de Comédia com muito cuidado em relação à saúde. Tomamos a decisão de não abrir ainda o serviço de comidas e bebidas para que o público possa assistir os shows sem a necessidade de retirar a máscara. Com a tão esperada melhora dos índices de vacinação, iremos repensar o nosso posicionamento. Estamos nos programando para colocar no checklist da nossa produção testagem contínua para covid e manutenção dos protocolos de saúde necessários, mesmo com toda a equipe totalmente vacinada muito em breve. Estamos muito conectados com essa questão da saúde da equipe e optamos, nessas pequenas retomadas que aconteceram recentemente, ainda não erguer o circo.”

Imagem do Clube Barbixas de Humor
O Clube Barbixas de Humor será inaugurado dia 3 de setembro, atendendo todos os protocolos sanitários – foto Marcos Shukster

Dione Carlos, atriz, dramaturga e roteirista

“Participei de três projetos pensados especificamente para o teatro online, Matriarquia, Liberdade, Liberdade e Maria d’Apparecida-Luz Negra, três poemas cênicos performáticos. A primeira, uma auto-ficção criada a partir da relação da atriz Camila Pitanga com Vera Manhães, sua mãe, entrecruzada com a história das enfermeiras negras na figura de Stella, uma personagem fictícia. A segunda, uma releitura de uma peça histórica da década de 1960. E a terceira, uma cinebiografia da primeira mulher negra a cantar na Ópera de Paris, uma brasileira não reconhecida pelo próprio país. A ideia é apresentar Matriarquia e Maria d’Apparecida presencialmente.

“Não creio que tenhamos condições sanitárias de fazer peças presenciais. Há uma variante nova do vírus,  pessoas seguem morrendo. A pandemia comprovou a importância da arte. Filmes, músicas, séries, livros etc. desempenharam um papel terapêutico para muitas pessoas. Percebo que decisões por muito tempo adiadas foram tomadas.”

Flávia Garrafa, atriz

“O teatro online foi muito rico. Eu fiz quatro peças, três com minha equipe infanto-juvenil e uma como atriz, Faça Mais Sobre Isso. Além de ter exercitado cameraman junto com atriz, de ligar sete câmeras ao mesmo tempo no meu apartamento, fazer as coisas em tempo real, contando com a internet, que foi uma coisa que jamais imaginei fazer. Mas o grande aprendizado foi o que a arte nos dá. Como você faria isso apesar disso? O teatro tem muito isso de transcender as dificuldades. O teatro online surgiu dessa necessidade de continuar, apesar de. Como falo na minha peça: a vida não é uma linha reta. A gente segue sempre em frente, mas não em linha reta.

“Voltei com uma peça que já fazia presencialmente, Fale Mais Sobre Isso. Muito feliz de poder ter essa troca com o público, que o teatro online ainda não tenha essa possibilidade de você ouvir risadas, comentários, sentir a energia. E o Faça Mais Sobre Isso, que fiz online, claro, quero montar no presencial. Tinha uma coisa de sentir o cheiro de bolo. Fazia um bolo no meu apartamento, que era a coisa do fazer. Quero levar essa possibilidade sinestésica para o teatro, para o público poder sentir o mesmo cheiro. Está mais do que na hora de voltar, com cuidados, dependente de como é o espetáculo. Já tive dois sábados em cartaz. Foi muito emocionante, embora tenha sido estranho ver o pessoal de máscara. O público, a energia, a emoção está lá, coisa que não tinha no online, e acho que é muito mais seguro do que muitos lugares que a gente já tem frequentado. Está muito higienizado, muito cuidado e é isso que a gente aprendeu. Vamos voltar seguindo as normas e tentando não atrapalhar o fim da pandemia, que sou otimista que estamos caminhando para o fim. A gente está muito ferido. É muito importante ver aquelas pessoas que vão ao teatro, mesmo de máscara, mesmo tendo de medir temperatura, com todos os cuidados, distanciamentos, é muito mais devagar entrar e sair. Estamos num outro ritmo, o cuidado é muito maior agora. E, mesmo com todas as limitações, as pessoas estão indo e estão ali trocando, tamanha a necessidade de estar no teatro. E de vacinar a alma. Estamos nos enchendo de anticorpos para vencer e não desenvolver a covid. E agora a arte, o esporte, a convivência, para vacinar a alma. Estamos começando a emergir, saindo destes tempos difíceis. O papel da arte e da comédia, principalmente, são muito preciosos nesse momento, e é por isso que vale muito a pena voltar.“

Lucas Papp, ator

“Minha experiência com teatro online foi boa. Fiz três espetáculos, integralmente online, A Ponte, Jimmy e O Finado Beta e os Irmãos Rubel. Foram muito bacanas e teve uma recepção do público muito legal. A grande vantagem é a forma como conseguimos democratizar o acesso, em muitos lugares onde o teatro não chega, longe dos grandes centros. Este momento da pandemia fez a gente olhar para esse público, para esse lugar, de pessoas que não poderiam ir ao teatro e tiveram acesso a espetáculos que não poderiam ver ou dificilmente teriam acesso. Esse lado da democratização é muito importante. Mas, por outro lado, não substitui a qualidade, e presença e a energia do teatro presencial, que é completamente outra. Detesto fazer peça online gravada. Tenho até uma questão ética contra isso. Não sou o cara que só faz uma sessão ao vivo e passa as outras gravadas. Isso deixa de ser teatro, deixa de ter a magia do erro, da verdade, da tentativa, do acerto, da evolução. O teatro online tem de ser feito ao vivo, da forma mais próxima do que a gente pode chamar de teatro. A experiência foi boa. Os planos para o teatro online vão ser bem simples. Não tem como fugir disso, porque não tem nenhum ator que prefere fazer online do que no presencial. O que vai acontecer é que a peça vai entrar em cartaz e ter uma ou duas sessões online para atender as pessoas de fora. Não acho que haja uma tendência de haver uma temporada online. Acho muito difícil. Agora, que os produtores parem para olhar e fazer uma ou duas sessões online para o Brasil inteiro, isso pode fazer sentido, e é importante justamente nessa questão de aumentar o público e democratizar o acesso.

“Estou em cartaz presencialmente faz bastante tempo. Entrei em cartaz em janeiro, quando os números estavam baixando. Quando aumentou de novo, parou. E voltamos agora. Fizemos no final de julho e agosto o presencial de A Bicicleta de Papel, no Teatro Sergio Cardoso, com todos os cuidados, distanciamento de 40% do que era o recomendado com o elenco vacinado ou testado. O teatro é feito com segurança, responsabilidade, seguindo os protocolos. Eu não entendo um pouco a ideia de que com 40% eu posso abrir um restaurante, um shopping, uma praça de alimentação e não um teatro. É incongruente, eu como artista, ou como cidadão, não abrir um teatro, que é meu ganha-pão, e o dono do Burger King abrir para que 40% do shopping possa comer, aglomerando na praça de alimentação. Não querendo comparar uma coisa com a outra, mas se vamos seguir o protocolo, vamos seguir todo mundo. O teatro na minha opinião tem de seguir essa mesma linha, com responsabilidade, sem negacionismo, mas seguindo as orientações. Se falar fecha, fecha. Se falar abre, a gente abre, seguindo os cuidados necessários. O aprendizado é este: ter responsabilidade de fazer um bom trabalho, de ser profissional, e de não desistir. A pandemia coloca desafios o tempo inteiro para fazer você desistir. É a resiliência, de se manter firme no processo.”

imagem de Lucas Papp, em "A Bicicleta de Papel"
Lucas Papp, em “A Bicicleta de Papel” – Foto: Davi Gomes

Leandro Luna *, ator

“Essa adaptação do gênero teatral para o virtual, online, surgiu como uma ferramenta emergencial, e acredito que chegou para ficar e somar. Afinal, tudo hoje em dia produzido em audiovisual, através da internet, pode atingir um público muito maior e realmente alcançar novas fronteiras. O teatro, por definição, acontece com a performance dos artistas ao vivo e com a participação presencial do público. Com a retomada do teatro, será possível agregar aos projetos a expertise das produções audiovisuais, para oferecer também espetáculos de teatro gravados com alta qualidade. Quem sabe, em breve, tenhamos um streaming focado em espetáculos de teatro. Certamente ampliará o mercado, gerando ainda mais empregos.

“As estatísticas indicam uma tendência de queda nos números de infectados, graças ao avanço da vacinação da população e ao SUS. Além disso, o teatro é um local extremamente seguro e que oferece todos os cuidados necessários. O público pode voltar a frequentar os teatros tranquilamente, seguindo as regras sanitárias, como o uso de máscaras. A pandemia mostrou como somos frágeis. Como precisamos uns dos outros. Como a arte e a cultura são essenciais em nossas vidas. Essa lição, certamente refletirá na retomada do teatro e dos eventos culturais, presenciais. As pessoas estão carentes e anseiam por este momento. Se tivermos um governo que apoie nossa cultura, incentive, não censure, democratize, certamente voltaremos a ver os teatros cheios e os profissionais do setor empregados.”

* nos dias 28 e 29 de agosto e 4 e 5 de setembro, estará em cartaz com O Louco e a Camisa, no Sesi (Av. Paulista, 1313)

André Acioli, curador do Teatro Vivo, gerente do Teatro Porto Seguro

“Vejo como muito positiva a experiência. Ainda temos muito que aprimorar e principalmente educarmos o público consumidor de que é um produto que necessita ser pago. Difícil ainda traçar um plano do quanto usaremos desse formato numa efetiva retomada, pois ainda é um investimento alto, e, na minha experiência, as produções terão que optar por um dos dois formatos para ter uma efetiva entrega artística com qualidade.

“Cada equipamento cultural tem uma realidade muito particular, assim como cada produção cultural também. Acho muito possível termos projetos que voltem a realizar no presencial seguindo todos os protocolos de segurança sem riscos de disseminação da doença. O grande aprendizado foi o uso das tecnologias e comunicação online. Ficou mais evidente ao setor cultural que conseguimos chegar ao público usando com estratégia os meios de comunicação e as mídias sociais.”

Janaina Leite, diretora

“Posso dizer da minha experiência, mas não posso negar que houve momentos muito significativos desse encontro entre o teatro e a virtualidade. Dentro do meu campo de pesquisa atual que é a pornografia, o audiovisual e as plataformas de interação virtual são muito importantes. De algum modo, sinto que foi possível agregar a experiência da presença tão fundamental ao teatro a esse espaço da virtualidade. A virtualidade me proporcionou uma rede de encontros impensável em outro contexto. Sobre a continuidade, espero em breve retomar um projeto presencial que estou desenvolvendo a partir do livro História do olho, de George Bataille, em que terei uma chance importante de pensar as possibilidades desse “olho” depois de uma pandemia que saturou completamente o nosso sentido da visão e nos exigiu essa absoluta frontalidade das telas.”

“Acredito que esse semestre a retomada será ainda muito aos poucos e não vejo, no meu horizonte, nos projetos que tenho, a relação presencial ainda com o espectador. O que espero, ao menos, é conseguir dentro de dois meses começar a trabalhar com um grupo pequeno de artistas e vislumbrar um espetáculo com plateia para o primeiro semestre do ano que vem.”

Marcos Felipe, da Cia Mungunzá de Teatro

Cena de "Poema em Queda-Livre", da Cia Mungunzá
Cena de “Poema em Queda-Livre”, da Cia Mungunzá – Foto: João Leoci

“Foi uma experiência muito rica. Fizemos uma adaptação de um espetáculo do nosso repertório (Poema Suspenso Para Uma Cidade Em Queda), cujo enredo dialogava com o tempo pandêmico, pois retratava pessoas presas em suas casas enquanto um país desaba em problemas, deixando todos (as) em estado de paralisia. Havia no experimento encontro, presença e (muita) teatralidade. Exploramos os limites da linguagem virtual nas suas diversas facetas híbridas. Foi também um momento muito rico na discussão sobre veiculação e distribuição da obra. Sobre nossa falsa sensação de ‘democratização do acesso’ que escancarou ainda mais nossas desigualdades, pois na perspectiva da criação, a produção com tecnologia é caro e na perspectiva de visualização, tendo em vista que uma grande porcentagem da nossa população não tem, ainda, acesso à internet. Acredito que a Cia Mungunzá, que já trabalhava no hibridismo de linguagem dentro de cena, não abrirá mão de continuar explorando a estética e veiculação das obras tanto no campo virtual como no presencial de forma simultânea. Fomos atravessados pela linguagem virtual e acredito que nossos trabalhos serão pensados também nessa perspectiva. Atualmente estamos em processo de gestação de uma nova obra – com direção do Rogerio Tarifa e previsão de estreia no início de 2022 – que repousa pesquisa sobre o conceito de anonimato.”

“Pelo tipo de teatro que fazemos, onde o entendimento espacial e corporal culmina num ritual (numa gira), é impossível pensarmos em retorno antes da segurança completa. Os teatros ‘de cansada’ / ‘alternativos’/ geridos de forma coletiva, dificilmente conseguirão voltar respeitando os protocolos sanitários. Estamos esperançosos que no próximo ano tenhamos essa segurança, tanto para apresentar nossos trabalhos quanto para reabrirmos o Teatro de Contêiner, que tem por característica ser pequeno e intimista. Acreditamos que a pandemia nos forçou a olhar para um outro lugar de atuação/comunicação. O universo digital, passado esse momento de agora, já exaustivo e saturado, veio para ficar. Poderemos facilmente atuar, também, dentro dessas linguagens. Não nos isenta de um olhar crítico sobre assuntos que nos são caros, porém, abre-se um outro local de comunicação. A pandemia nos forçou a olhar para as teatralidades que existem em outros locais, não apenas dentro do teatro.”

“O Teatro de Contêiner Mungunzá lançou um selo chamado ‘mungunzá digital’, que tinha/tem o objetivo ser a programação do Teatro de Contêiner no formato virtual/digital. Replicando e transmitindo a programação presencial do teatro, mas não só, produzindo também novos conteúdos, pensados apenas para o universo virtual/digital. O Teatro voltará a ter presença de público a partir do ano que vem, caso a pandemia esteja completamente controlada. Toda ação sociocultural que acontecer no teatro a partir do próximo ano, terá a opção de transmissão ao vivo pela internet.”

Keter Velho, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

“Dentro do contexto pandêmico e a partir da condição determinista da virtualidade como única saída para os trabalhadores da cultura, o Ói Nóis Aqui Traveiz, enquanto grupo de teatro, optou por produzir materiais e obras que divergiram um pouco do que, neste período, começamos a entender como ‘teatro virtual’. E entenda-se aqui o teatro virtual como uma pesquisa de linguagem que vai para além da simples exibição de peças já existentes nas mídias digitais. Porque houve, de fato, uma forte tentativa de inúmeros fazedores de teatro de realizar trabalhos cênicos nos quais havia uma busca da relação entre público e atores através do jogo teatral, este por sua vez, mediado pela virtualidade. Isso gerou inúmeras discussões entre os fazedores de teatro, principalmente sobre se o que se estava fazendo era ou não teatro. Sem querer adentrar a discussão e sem emitir juízos de valores sobre as experiências que começaram a surgir nesta linha, mas num caminho diferente, o Ói Nóis optou por começar a pesquisar outra linguagem , muito mais voltada ao audiovisual e ao que concerne ao campo do cinema. O que também é novo para o grupo. Num primeiro momento realizou trabalhos mais documentais como uma webserie sobre a pedagogia do grupo, um importante braço da sua existência, bem como uma desmontagem de Meierhold, última peça encenada para público, ou seja, um trabalho audiovisual documental que fala sobre o processo de criação da peça Meierhold. No âmbito mais artístico, fez alguns experimentos de leituras dramáticas, quando foi possível alguma parte do grupo se encontrar presencialmente, o que gerou uma série de experimentos chamamos de Leituras Drama-Cinematográficas. Mas só neste ano de 2021 lançou Quase Corpos – Ep 1: A ÚLTIMA GRAVAÇÃO, o primeiro episódio de uma série de estudos sobre a obra de Samuel Beckett, todo para a linguagem audiovisual. Hoje realiza pesquisa para uma nova obra, um Ubu Tropical, adentrando o contato com o Teatro do Absurdo de Alfred Jarry para pensarmos esse nosso tempo e esse nosso contexto histórico. Essa pesquisa também está sendo levada para um produto cinematográfico. Mas é evidente que estas pesquisas são frutos do desejo de se produzir teatro e que quando for possível, elas terão suas versões espetaculares para o compartilhamento com o público.”

Meierhold no Sesc Bom Retiro
Peça Meierhold – Foto Pedro Isaias Lucas

A opção por pesquisar novas linguagens, especialmente a cinematográfica, está diretamente relacionada com o fato de que o teatro que o grupo realiza é aquele que aproximamos o máximo possível do teatro ritual de origem artaudiana, que depende diretamente da relação com o público e do estado de presença instaurado no rito, no ato de celebração, que é o momento efêmero do teatro, o acontecimento único. Uma partilha que, pelo menos nós, não achamos fácil ser mediada pelos meios virtuais. Fora toda tecnologia e aparatos e conhecimentos técnicos que podem ser limitantes nesse meio de criação, principalmente para um grupo como o Ói Nóis Aqui Traveiz que se dispõe a fazer tudo que envolve a criação e que está em cena. Evidente que é e foi preciso se reinventar. Aliás, o termo ‘reinventar-se’ foi o termo da vez, o mais falado a partir deste contexto pandêmico de grandes mudanças globais e muito deturpado, no meu ponto de vista.  A pandemia foi colocada muitas vezes como uma grande oportunidade de reinventar-se. Mais uma das grandes jogadas desse sistema ao qual estamos inserides. O ‘reinventar-se’, neste momento, não passou de uma necessidade óbvia, uma medida indispensável para sobrevivências. Está diretamente relacionada também a um sistema que te obriga a mudar as formas, sejam elas de trabalhar, de se relacionar, de viver, de conviver e etc, mas nem sempre te leva para as formas que gostaríamos, ou as que julgamos as melhores. Existe uma imposição do meio para se encontrar novas saídas, no entanto, não existem muitas opções para se encontrar novas saídas. Ou ainda, as saídas encontradas não são necessariamente as desejadas. Ou seja, o termo é apropriado pelo sistema de forma tal que se não for boa a sua reinvenção, a responsabilidade é exclusivamente de quem a tomou, e não do meio. Enfim, o que quero dizer é que as formas que os grupos vêm encontrando para continuar produzindo são adaptações ao tempo que vivemos, e que são mais ditadas pela necessidade do que pela pura opção ou vontade de tomá-las. Não se trata de sair da zona de conforto tão somente, muito pelo contrário. “

“Se já é hora de voltar com o público presencial, não seria, dentro da condição sanitária que ainda estamos. Pensamos que levaremos mais um tempo ainda para realizarmos atividades presenciais. Lembrando que o grupo possui uma sede que é um espaço cultural, que até o momento, apesar dos onerosos aluguéis que pagamos, resistimos com pouquíssimo apoio público. Temos até uma campanha de financiamento coletivo onde algumas pessoas colaboram com o grupo por entenderem que realizamos um trabalho fundamental na cidade de Porto Alegre, e que na retomada, lugares como a Terreira da Tribo serão essenciais. Ainda assim, entendemos que é preciso esperar um pouco mais para as atividades com público. Mas não sabemos até quando resistiremos nessas condições. Começamos a estudar a possibilidade de futuramente, dentro de alguns meses, retomarmos, claro que com todas as medidas de segurança necessárias, se as possibilidades permitirem. Acredito que dos maiores aprendizados que a pandemia deixou foi a de que necessitamos de um estado que seja capaz de agir e administrar um país e em especial nessas condições. Falando especificamente do setor cultural, que foi dos mais atingidos pela pandemia, podemos entender que só graças a grande mobilização nacional que se conseguiu articular a lei emergencial cultural Aldir Blanc. Precisamos de condições e incentivos de trabalho. E precisamos criar políticas públicas que não fiquem flutuantes, à mercê de governantes e desgovernos. A nossa infeliz condução política, que muito agravou a sanitária e social, começou a censurar as artes e o setor cultural antes mesmo da pandemia. Mas a censura começa com a econômica, com as retaliações e retiradas dos poucos apoios que se tem. Quando se coloca empecilhos ou mesmo barreiras para a realização do trabalho. Um dos grandes ensinamentos da pandemia foi que o setor cultural  tem força e precisa se unir ainda mais para garantir as políticas públicas voltadas ao setor. A arte foi amplamente entendida num senso comum, acredito, como algo necessário para se viver. Isso foi umas das coisas mais faladas e observadas neste período também. Um período de grande sofrimento coletivo, de instabilidade e insegurança, de muito medo. Ninguém consegue imaginar o isolamento social sem produções artísticas que lhes acompanhem. Claro que o teatro, tal como o entendemos, ficou um pouco para trás neste momento, ou, teve que ‘reinventar-se’. E é claro que numa futura retomada das atividades, cada grupo, companhia teatral e artistas, cada nova pesquisa, vai trazer elementos descobertos neste período ou vai dialogar com ele. O novo normal não será mais como antes, e se a vida é dinâmica, o teatro também o é, já dizia Artaud. Mas também lembro Heiner Muller que, em uma determinada situação disse, parafraseando – o  que, ‘os teatros  deveriam ser fechados por um ano e se as pessoas não tivessem sentido a sua falta, o teatro não estaria cumprindo a sua missão’. Neste sentido, existe o que só o teatro pode proporcionar, e é isso que teremos que retomar. Retomar no sentido das grandes retomadas de territórios que também estão acontecendo, as dos povos originários. É um grande exemplo de resistência e incentivo. Temos que retomar o que é nosso, o nosso território que é o teatro: o encontro, o real e vívido. Por outro lado, paira sobre nós todes um medo de que as pessoas estejam tão habituadas às virtualidades que não queiram mais ir ao teatro. Mas é aí que teremos um grande trabalho a fazer, que é tomar essas falas de Heiner Muller e retomar a essência do teatro e ir ao encontro das pessoas. Descobrir os novos meios de realizar a sua missão.”

Marat Descartes, ator

Cena de "A Peça", monólogo de Marat Descartes
Cena de “A Peça”, monólogo de Marat Descartes – Foto: Gabi Brites

“Minha experiência com o teatro online foi muito bacana. Eu tinha um projeto contemplado pelo Prêmio Zé Renato, que era um texto que eu tinah escrito, Duchamp, que estava em processo de montagem, ensaios, quando aconteceu o fechamento, a pandemia. E houve um primeiro momento de suspensão absoluta, não sabíamos o que fazer. Mas não deixei de pensar um minuto no projeto. E depois de um mês, um mês e meio desse primeiro momento de suspensão, de fechamento, trouxe a ideia de reformular para que esse projeto fosse feito online. Já era um monólogo, para que ele fosse feito da minha casa. Acho que foi um dos primeiros projetos de teatro concebidos para ser feito online. Havia também o Satyros, que haviam feito a remodelagem de uma peça que já faziam presencialmente, mas acho que o Peça, que foi como foi chamado o espetáculo, foi um dos primeiros. E foi uma experiência muito potente, que rendeu o prêmio APCA de 2020, de Melhor Espetáculo Digital. E foi muito interessante, porque o Duchamp, que havia escrito inicialmente, já tinha uma característica de quase um depoimento pessoal, do gênero autoficcional e documental, e isso se aprofundou com a situação de confinamento e isolamento. E eu vi muitas obras com essa trajetória de mergulho dentro de si. Depois vem as críticas de que “ah, agora todo mundo quer falar de si mesmo’. Mas era uma situação de contingência, as pessoas que levaram a sério a situação de isolamento social e do confinamento acabaram se deparando consigo mesmo, tendo que olhar para suas histórias, suas dores, suas marcas, suas relações familiares, e acho isso muito rico esse movimento que aconteceu. Os planos são voltar para o palco. Estamos sedentos pelo palco, pelo olho no olho, pela necessidade de respirar a mesma atmosfera, e vivendo o mesmo tempo-espaço do público presente. Tive a oportunidade de fazer uma nova montagem para o qual fui convidado como ator, que é o texto o As Aves da Noite, da Hilda Hilst, com direção do Hugo Coelho, mas remodelado para ser feito online, mas que a gente ensaiou ao vivo, no palco. E foi uma experiência tão gostosa, importante, estar contracenando com os colegas no palco. Esse espetáculo foi gravado durante três dias para ser transformado no formato digital. Mas é um espetáculo que, quando houver a retomada, a gente quer fazer presencialmente.”

“Procuro estar sempre seguindo e atento às recomendações da ciência, dos protocolos oficiais. Acho que ninguém está aguentando mais. Foi uma experiência muito incrível estar de novo no palco contracenando, com todos os protocolos. É muito importante que a gente possa voltar a fazer teatro no palco. Quanto à presença do público, não sei dizer se já é hora ou não é. Temos a variante Delta se espalhando, com crescimento de contágio, que essa própria variante representa, então não sei dizer se já é hora de dizer. E evidentemente se puder ter público vai ter de ser com todos os protocolos. É importante que em algum momento isso aconteça, porque é muito triste que a educação e a cultura sejam setores das atividades humana em que a possibilidade de retorno seja sempre adiada. O comércio, o shopping, os restaurantes podem voltar. Mas as escolas, não. Tem que sempre ir por último nessa fila. Se a ciência disser que for possível, sou a favor de retornar. Em relação aos aprendizados, fosse assunto para uma longa conversa, porque estamos num estado de reflexão muito profunda, da vida, da vida em sociedade. Num primeiro momento da pandemia, senti até certa euforia, de que enfim o modelo capitalistas iria sucumbir, acabar. Por ingenuidade minha, pelo contrário, acabamos vendo até com mais força o lado mais ruim e destrutivo do ser humano. Quando a gente vê que existiu corrupção na compra da vacina, realmente é o fim da picada. E essa minha euforia inicial, de que a pandemia seria um gatilho para que o modelo capitalista de exploração sucumbisse, ela foi logo frustrada. O que sinto, por outro lado, é que para quem não é negacionista em relação ao perigo dessa pandemia, é que nasceu um espírito de solidariedade, de cooperação e colaboração entre nós. Eu acredito que é a saída para a espécie humana. Se não conseguirmos acabar com o modelo capitalista, a pandemia nos fez rever nossos modos de vida, que só o modelo colaborativo, comunitário, pode salvar a vida humana.”

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