Timothée Chalamet é "Wonka", nova versão de A Fantástica Fábrica de Chocolate, em cartaz nos cinemas

Você não pode se apropriar de uma coisa dos Oompa-Loompas porque eles, inevitavelmente, um dia virão cobrar.

Em 1964, o escritor galês Roald Dahl escreveu um best-seller instantâneo, Charlie and the Chocolate Factory, no qual o protagonista é um industrial do ramo de chocolates que usa mão de obra “análoga à escravidão” (indivíduos de uma tribo de pigmeus negros da África, os Oompa-Loompas), Willy Wonka. “Eu mesmo os trouxe até aqui da África – a tribo inteira deles, três mil ao todo. Encontrei-os na parte deveras mais recôndita e secreta da selva africana, onde nenhum homem branco nunca esteve antes”, diz Wonka, no livro.

Levado ao cinema em 1971, o livro de Roald Dahl virou um dos maiores fenômenos cinematográficos da História, assim como a própria obra de referência, que se tornou a mais popular e simbólica narrativa do mundo das crianças de nossa época (ao menos até Harry Potter chegar). Os dois filmes que fizeram com versões da obra de Dahl, o primeiro estrelado por Gene Wilder e dirigido por Mel Stuart (em 1971) e o segundo estrelado por Johnny Depp e com direção de Tim Burton (em 2005), mantém intocados os fundamentos da obra do autor galês. Primeiro: ambos têm uma aura meio sombria, não são indulgentes com as falhas das crianças, acentuam a excentricidade de Willy Wonka num território limítrofe à insanidade, mostram-se rigorosíssimos com a capacidade pedagógica dos pais. Mas, principalmente, veem o mundo de Willy Wonka como uma fantasia surrealista intocável, uma bolha dentro de um universo de normalidade alheio e distante.

Em 2023, a estreia de Wonka, dirigido por Paul King, com Timothée Chalamet no papel principal, vem para operar uma espécie de “greenwashing” social nos fundamentos da obra de Roald Dahl, para reintegrá-la às novas circunstâncias identitárias e afirmativas. Wonka estoura a bolha de proteção de A Fantástica Fábrica de Chocolate. Para começar, o noviço Willy Wonka, que desembarca de um longo período de aprendizado universal nas artes de chocolatier para tentar vencer na galeria mais chique de uma metrópole híbrida (Paris, Londres, Nova York), vai descobrir que, para vencer no mundo capitalista, é preciso passar por cima de algumas barreiras. E todas essas barreiras (a polícia, a Igreja, o capital e os diques sociais) são uma só, atuam em conluio para deter avanços inesperados do lado de baixo da pirâmide social.

Willy Wonka não é doido varrido, em Wonka. É solidário, atento e consciente da teia de relações que permite a uma pessoa ascender socialmente. Sua maior fragilidade é a inocência, a fé que nutre indistintamente em relação a todos os seres humanos – e alguns deles se mostrarão, desde a acolhida inicial, como predadores monstruosos. Nesse território hostil, sem grandes trunfos a não ser alguns truques de mágico de gabinete (é também analfabeto), ele encontrará apoio apenas nos semelhantes: uma menina órfã negra, entregue a trabalhos de criada (Calah Lane, fabulosa antítese histórica de Hattie McDaniel); um velho contador aposentado; um humorista gay de gags obsoletas; uma operadora de telemarketing que não suporta mais ouvir a própria voz.

Wonka se desenvolve nessa alegórica batalha campal de luta de classes entre os pobres e os milionários. No meio de tudo, as instituições corrompidas – a Igreja, que tem a figura central de Rowan Atkinson (o Mr. Bean) como um padre alcoviteiro, e a polícia, que recebe propina não apenas para fingir que não vê, mas também para eliminar. O elemento lisérgico são as aparições de uma pequena figura alaranjada, um dândi misterioso que cobra dívidas sem enviar spam: o Oompa-Loompa interpretado por Hugh Grant, uma boa sacada da direção (ex-galã em processo de desconstruir sua própria idealização histórica).

O leitor pode pensar: ah, mas então é uma Fantástica Fábrica de Chocolates chatinha de tão bem intencionada. Erro colossal, meus queridos e minhas queridas: ao dar à fantasia uma arquitetura de fundamentos humanistas, reais, Wonka se vê livre também para incorporar à fantasia o balé de atropelos e estratégias de sobrevivência do mundo real. Algumas das melhores passagens são as vendas clandestinas de chocolates pela equipe de Wonka, combatidas pela polícia como o são os camelôs das calçadas da 25 de Março, mas cuja ginga e malemolência vai garantindo os dribles e a reincidência à revelia do rigor da lei.

Carinhoso com seu jovem espectador em formação, Wonka lhes providencia emoção, frenesi, aventura e, ainda por cima, reflexão. É absolutamente dickensiniano, com seus Scrooges violentos e encasacados (como o João Plenário da Praça da Alegria, há um personagem, um industrial, que sente calafrios e ânsia de vômito somente ao ouvir a palavra “pobres”) e seus Bobs Cratchits enclausurados num porão de lavanderia por força de um contrato unilateral (trabalho em cárcere em troca de hospedagem e comida). Wonka não crê em arrependimento, em redenção, mas na força da ação coletiva, do enfrentamento direto com os lobbies e os fascistas. Matinê com Chalamet, não tinha mesmo como errar a mão.

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