O cantor mineiro Nelson Ned, de quem a Companhia das Letras lançou agora 'Tudo Passará', biografia por André Barcinski

Mais doido do que Tim Maia. Mais romântico que Roberto Carlos. Mais “rebitado” do que Nelson Gonçalves. Mais dedo leve no gatilho do que Elvis. Uma biografia minuciosa, Tudo Passará – A vida de Nelson Ned, o pequeno gigante da canção (Companhia das Letras, 2023, 250 páginas, 80 reais), do jornalista e produtor carioca André Barcinski, traz à tona a vida, a grandeza e a tragédia de um dos artistas brasileiros mais conhecidos no mundo todo pelas multidões (e o mais ignorado pela imprensa especializada). O cantor mineiro Nelson Ned (1947-2014), ídolo popular de 1,12 metro de altura, contrariou todos os prognósticos e diatribes para se tornar um dos artistas brasileiros de maior repercussão mundial em todos os tempos. Durante seu quase invisível reinado, habitou o topo das paradas dos artistas mais executados em Miami e Nova York (apresentou-se no Carnegie Hall, em 1974), gravou com contratos milionários no México (onde chegou a fazer 24 noites de shows, com três apresentações por noite) e na Espanha, arrastou milhares em Porto Rico, Colômbia (onde cantou para 80 mil) e Santiago, superando em alguns momentos os onipresentes Roberto Carlos e Julio Iglesias.

O mundo íntimo da arte dita cafona, ou brega, é geralmente visto com o mesmo binóculo com que essa arte é julgada: seria um universo simplório, sem complexidades, não raro iletrado, sem espaço para contradições, sem as gangorras de excitação e delírio que marcam o território da “alta cultura” e do dito bom-gosto. Mas a atribulada vida de Nelson Ned é capaz de derrubar pino por pino essas convicções, e esse strike no senso comum das opiniões públicas vai ficando mais ruidoso conforme se avança na biografia de Barcinski. Nascido em Ubá, Minas Gerais, acometido de displasia espondiloepifisária congênita (um tipo raro de nanismo causado por uma mutação genética e que se caracteriza por tronco curto e atritos constantes nas articulações ósseas), Nelson Ned foi dotado de uma voz potente, um registro de tenor afinado e cristalino que o projetou desde a adolescência como um dos mais distintos intérpretes da música brasileira.

Herói de uma época anterior à invenção do termo “politicamente correto”, vítima de bullying implacável desde a primeira vez em que pisou em uma escola, rejeitado pelas patotas do seu tempo (“Nunca cantei em programa da Jovem Guarda? Por quê? Por discriminação”), briguento (não raro rancoroso), ele não apenas construiu um sólido legado na música, mas também questionou o sistema musical que o manteve como uma curiosidade exótica durante toda sua carreira. “Eu não necessito discutir esses conceitos (de cafona e brega)”, disse. “A Maria Bethânia canta as mesmas coisas da Ângela Maria e da Núbia Lafayette. Só que usa o pedigree: é irmã do Caetano Veloso. Pois bem: Caetano Veloso pode andar pelado pela rua em Nova York ou Miami que não será reconhecido”.

No já clássico livro O álbum branco, a escritora e repórter Joan Didion, a papisa do new journalism norte-americano, narra seu assombro com a descoberta da existência de Ned: “Cheguei a Bogotá em um dia de 1973 em que as ruas pareciam banhadas pela névoa, pela luz delicada e brilhante e pela voz conhecida e amplificada de Nelson Ned, um anão brasileiro cujos álbuns tocavam em todas as lojas de discos”. Já o cartunista Henfil deixou seu depoimento sobre a popularidade de Nelson Ned nos Estados Unidos: “Nelson Ned é um dos mais importantes cantores do povão porto-riquenho nos Estados Unidos. Os cucarachas são os escravos modernos aqui. São eles que fazem serviços que nem os pretos fazem mais. Logo, Nelson é o cantor dos escravos americanos”.

Barcinski recupera diligentemente as histórias das canções, como a que dá título ao livro, e os meandros de suas gravações muitas vezes mambembes. Tudo Passará, de 1967, foi composta por Ned para uma garota de programa. Daí se explica o verso que abre a canção: “Eu te dei meu amor por um dia”. Um cantor argentino, Leonardo Schutz, ouviu a música ainda no nascedouro e a gravou em seu nome. Virou um dos processos de plágio mais famosos da canção romântica internacional, e Ned ganhou a parada em 1975. Ao longo da biografia, o leitor descobre que Nelson Ned edificou sua arte com a compreensão profunda dos fenômenos musicais, da tradição dos boleros à Tropicália, mantendo-se num trajeto paralelo e independente sempre.

Durante seu reinado latino-americano, chicano, bajulado por fãs poderosos como o traficante Pablo Escobar, pelo ditador haitiano Baby Doc Duvalier e pelo miliciano mexicano El Negro, Nelson Ned construiu sua Graceland no Alto da Boa Vista, uma mansão na qual era atendido por 8 empregados e que presenciou montanhas de cocaína dignas de Scarface. Presenteava amigos com armas (a Agnaldo Timóteo, deu uma pistola Walther PPK 9 mm). Ele mesmo tinha um arsenal em casa, uma pistola Beretta, um revólver 22, um Colt 45 e um revólver 38 preto, que chamava de Pelé. No final dos anos 1970, seu estilo de vida não diferia muito do de um astro de rock, girando na esfera da tríade álcool, sexo e drogas, especialmente cocaína. Nas boates mais badaladas de São Paulo, mandava o garçom baixar logo 10 garrafas de Moët & Chandon.

Evidentemente, seus excessos acabaram por empurrá-lo progressivamente para um abismo. Seus problemas de saúde se acentuaram, precipitando sua ruína profissional – cantava em cadeira de rodas, nos últimos tempos. A família fragmentou-se (nos últimos anos, a ex-mulher acusou sua família de sequestrar o cantor). A partir de uma orientação evangélica, arriscou-se na canção religiosa, tendo êxito também nessa seara – mas a ausência de um planejamento profissional aprofundou seu declínio.

A dicotomia estatura X talento acompanhou Nelson Ned do início ao fim de sua carreira. “Toulouse-Lautrec vem obtendo relativo êxito como cantor com o nome de Nelson Ned”, escreveu um articulista, jocosamente, no Pasquim. “Nelson Ned ganha prêmio em Porto Rico (deve ser porque o país também é pequenininho)”, debochou Millôr Fernandes. Seu comportamento errático, dessa forma, poderia ser encarado como uma disposição para a desforra. Mas sua luta para afirmar a força do seu canto, à revelia das ideias prontas da indústria, dos códigos comerciais de sua época, do cativeiro das fórmulas do auditório, vai muito além de uma vendetta.

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