"Espelhos". Capa. Reprodução

Ademir Assunção é um dos mais antenados, instigantes e afiados artistas do país e quando digo afiado, é literalmente: seu texto, seja poesia, prosa de ficção ou jornalismo, é cortante, como um pugilista que com um direto tira sangue do adversário, embora, longe disso, o leitor não seja um adversário do escritor, não necessariamente.

O volume Espelhos (Cobalto, 2023, 98 p.) – outra palavra que pode ser tomada aqui no sentido literal – atesta o que digo. Ele o divide com Sandro Saraiva, que assina as ilustrações da obra, que dialogam diretamente com os textos (microcontos), espelhando-os.

Não é a primeira incursão do escritor em se tratando do assunto, mas Espelhos aprofunda a experiência do volume A Musa Chapada (Demônio Negro, 2008), em que Carlos Carah ilustrava poemas de Ademir Assunção e Antonio Vicente Seraphim Pietroforte.

O traço sombrio, fantasmagórico e algo putrefato de Sandro Saraiva casa à perfeição com as narrativas breves de Espelhos, com suas ácidas críticas ao cenário político brasileiro, ao capitalismo, ao neoliberalismo e suas mazelas, ao universo de celebridades fast food (“Comeu chumbinho quando descobriu que seu melhor amigo não o seguia no Instagram”, escreve em “Tragédia”), sem poupar sequer o meio literário, pouco se importando com as retaliações do passado, presente e futuro – num mundo movido a vaidades, a vingança também é um prato que se come frio, nos dois sentidos desta via de mão dupla.

As ironias de Ademir Assunção são finas e ele usa referências inteligentemente, sem tornar a coisa hermética. Ou as que ele toma emprestadas, caso da epígrafe, que resgata Jayme Ovalle (1894-1955), o “santo sujo”, o “artista sem obra”: “Haverá sempre pobres no mundo./ Porque, senão, quem vai dar esmola aos ricos?”. A porrada é certeira e vem para recolocar as coisas nos devidos lugares.

“Microcontos Alucinatórios e Diálogos Delirantes” é o acertado subtítulo. Mais exemplos do cruzamento de ironia, referência e crítica mordaz? Vamos a eles. Logo em “500 Anos de Maldição”, que abre o volume, ele recorre à cena de abertura de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez (1927-2014), para prever a condenação do ex-presidente da República Jair Bolsonaro: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Capitão J. Messias havia de recordar aquela noite remota em que 57 milhões de acepipes o levaram a conhecer o Palácio do Planalto”.

Ainda no campo da política brasileira recente, a crítica ao ex-juiz e provavelmente muito em breve futuro ex-senador Sérgio Moro recorre a “A Metamorfose”, de Franz Kafka (1883-1924), outra abertura por demais conhecida do cânone literário. Leiamos “A Metamorfose Reloaded”, o microconto de Ademir Assunção: “Naquela manhã, após uma noite de sonhos intranquilos, Sérgio M. olhou-se no espelho e viu refletida a imagem de um rato”.

Apesar dos exemplos aqui transcritos, Espelhos está para muito além da vida política brasileira recente. O microconto “Depressão”, por exemplo, aborda de maneira poética um problema grave, atual e cada vez mais comum: “Todas as manhãs, acordava morto. Normalmente ressuscitava em quinze ou vinte minutos. Às vezes, três dias depois. Mas sempre faltava um pedaço”.

No material de divulgação distribuído aos meios de comunicação, Ademir Assunção comentou o processo: “Eu vinha escrevendo uns microcontos havia algum tempo, mas sem o propósito de publicar um livro. Não tinha um “projeto”, como se costuma dizer por aí. Durante o isolamento provocado pela pandemia, passei a escrever mais (microcontos). Até que me caiu nas mãos o álbum As Incríveis Marchinhas de Carnaval do Sr. Biltre, do Sandro Saraiva. Eu já conhecia e admirava os desenhos dele. Deu a liga. Propus-lhe um diálogo entre duas linguagens: o verbo e o traço. Aí sim, surgiu a ideia de livro. O nome Espelhos surgiu quase que naturalmente: duas linguagens autônomas dialogando, uma servindo de espelho para a outra. E o livro foi montado pelo editor Vanderley Mendonça desta forma, com páginas espelhadas: desenho/texto ou vice-versa”, revelou.

O livro de Ademir Assunção e Sandro Saraiva é um dos que inaugura o selo Cobalto, de Vanderley Mendonça, da prestigiada Demônio Negro. A ideia é publicar traduções inéditas em português ou há muito esgotadas, além de autores brasileiros contemporâneos. Além do volume que ora comento, comparecem à festa de inauguração os seguintes títulos: “Para Dentro”, da mineira Simone Andrade Neves, “De Amor & Morte”, do próprio Vanderley Mendonça, “O Paraíso dos Gatos”, do francês Émile Zola (1840-1902), “Berthe, a contrita”, do também francês Honoré de Balzac (1799-1850), e “As Quadras de Valais”, do alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926), escrito originalmente em francês. Os volumes têm preço médio de R$ 35,00 – preços mais acessíveis são outra intenção do selo.

Entre os títulos programados para os próximos meses estão “O Zoológico”, do norte-americano Edward Albee (1928-2016), “Crimes  Exemplares”, do francês Max Aub (1903-1972), “Cherri”, da francesa Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954), “Azul”, do nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), “O Monogramático”, do mexicano Octávio Paz (1914-1988), e “Escorpião e Félix”, do alemão Karl Marx (1818-1883). Um baita catálogo, para começo de conversa.

Serviço: A noite de autógrafos de Espelhos, de Ademir Assunção e Sandro Saraiva, acontece neste sábado (7), às 19h, na Ria Livraria (Rua Marinho Falcão, 58, São Paulo/SP).

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