Alexandre Ribeiro e Fred di Giacomo
Alexandre Ribeiro e Fred di Giacomo

(Um texto escrito a quatro mãos por Fred di Giacomo & Alexandre Ribeiro.)

Fred: “Mano, o que eu senti quando cheguei aqui foi uma sensação de não pertencimento, tá ligado?”. Era o amigo-autor Alexandre Ribeiro quem falava. Até, então, ele tinha ficado no apartamento que alugáramos na periferia de Frankfurt, esperando a edição em inglês de seu best-seller das ruas Reservado ser entregue. Antes de tudo, deixa eu apresentar: o Alexandre é um escritor de 21 anos, nascido e criado na Favela da Torre, em Diadema, grande São Paulo. Eu conheci o Alexandre, em 2016, quando dava aula de jornalismo para jovens de periferia na Énois. Lá nós ficamos amigos. Em 2018, ele ganhou um ProAC que permitiu que publicasse seu primeiro romance (que eu tive a honra de editar) de forma independente. O Reservado saiu em 2019 e vendeu 2.000 exemplares em 5 meses, nas ruas, graças ao trampo do Alê; que além de ser um bom escritor e um poeta de mão cheia, é um excelente “marreteiro” graduado na fina arte do comércio ambulante de cultura.

Alexandre: Pois bem, o destino quis que, três anos depois da gente se trombar na escola de jornalismo, eu e o Fred estivéssemos morando na Alemanha (eu, porque ganhei uma bolsa, e o Fred, porque a Karin, companheira dele, ganhou uma bolsa também). Fui convidado pelo Brazilian Publishers, em conjunto com a CBL (Câmara Brasileiro do Livro), a fazer uma fala sobre Literatura das Favelas na maior feira do livro do mundo, a Feira de Frankfurt. E não satisfeito, me lembrei dos churrascos na minha laje e ecoou a lei “tem que chamar os parceiros”. Joguei o Fred nessa encrenca: convenci ele que a gente tinha que inscrever como autor independente na feira. Com essa inscrição a gente tinha direito a fazer duas falas. 

Uma pequena pausa para celebrar a existência do Fred. Em 2018, o Fred lançou o primeiro romance dele, Desamparo (Ed. Reformatório). Um livro encantador na sua prosa poética, que busca as raízes interioranas brasileiras, sem esquecer o passado macabro brasileiro. A obra, foi ganhadora do edital para publicação de livros da Cidade de São Paulo (descanse em paz, aliás). E, durante a feira, a gente recebeu a notícia: Desamparo é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura! Vai Corinthians! Que honra ser contemporâneo de mestre desses, né? O Fred é tipo um Jedi.

Para divulgar nossas obras decidimos fazer uma fala conjunta chamada “A arte nos tempos do Bolsonaro”. A fala despertou atenção dos jornais gringos e começamos a dar entrevistas para lugares como o Corriere della sera (maior jornal italiano), Frankfurter Rundschau (Alemanha) e RFI (França) falando sobre nossos livros, os retrocessos do governo Bolsonaro e a nova literatura que floresce no Brasil na década de 2010.

Alexandre Ribeiro - foto Lucas Sampaio
Alexandre Ribeiro – foto Lucas Sampaio

Fred: Há “uma revolução literária no hemisfério sul”, manchetou o diário alemão Frankfurter Rundschau, depois de uma dessas entrevistas. E, nela, fizemos questão de citar o máximo possível de autores, ativistas e editoras independentes. Assim como na época que precedeu o Golpe Militar de 1964 – quando a cultura brasileira florescia abundante firmando as raízes do que seria o cinema novo, a bossa nova, a MPB, o  samba do morro, o Teatro Oficina, o Teatro de Arena, o ápice da produção dos escritores da chamada geração de 1945 etc. -, o Brasil dos anos 2010 via uma ebulição artística cozinhando a melhor fase do hip-hop nacional, os longas-metragens brasileiros (especialmente dos diretores nordestinos) sendo premiados internacionalmente, uma safra genial de documentários, uma geração de artistas plásticos relevantes no cenário global, nossas séries ocupando o Netflix e o surgimento da melhor e mais plural literatura brasileira dos últimos 40 anos. Fiquemos com a literatura – área em que eu e Alexandre atuamos. A literatura brasileira vive seu melhor momento nos últimos 50 anos”, cravei a frase não só pela empolgação caipira de estar dando entrevistas internacionais, mas com uma fé gigante nos livros que ando lendo, nas conversas que ando tendo e na esperança de abrir algum espaço para nós, escritores brasileiros, no disputado mercado europeu. Repito o mantra: é importante a literatura brasileira ser arejada pelos ventos que sopram no norte-nordeste, nas periferias, nas florestas, nas zonas rurais. É importante que ela seja vista como um corpo múltiplo de peso e não apenas fruto de um ou outro iluminado que rompe os muros ocidentais da Europa e Estados Unidos. 

Tenho visto coisas maravilhosas sendo escritas por mulheres e homens do sertão, por indígenas, companheirxs da literatura queer, por gente de quebrada, do interior. Livros épicos, romances históricos, prosa-poética, contos experimentais. Quando celebro o novo, faço-o com a consciência de que o novo nem sempre vem dos jovens, mas de pessoas experientes que conquistaram seu espaço ao sol com anos de caminhada como Maria Valéria Rezende e Conceição Evaristo. Fazemos parte de uma geração que foi publicada graças ao trabalho revolucionário das editoras independentes que andam abocanhando diversos prêmios nacionais importantes (Reformatório, Patuá, Penalux, Miudeza – editora do Alê -, LiteraRUA, Enclave, Malê, selo Suely Carneiro, etc). Fazemos parte de uma literatura que se propaga em saraus de periferia, que é vendida de porta em porta, que cria espaços alternativos nas grandes feiras literárias. Que, nas periferias, começou com Sergio Vaz, Ferréz e Carolina Maria de Jesus, mas deu, hoje, em Luz Ribeiro e Geovani Martins. Que se na virada do século via a prosa épica e histórica de uma mulher negra como Ana Maria Gonçalves como exceção em meio a autoficção de homens brancos e urbanos, hoje pare Deborah Dornellas, Bruna Meneguetti, Krishna Monteiro, Ana Paula Maia, Samir Machado de Machado, Bruno Ribeiro. Que se antes era focada nas capitais de Rio e São Paulo, hoje é representada por autores que surgiram nas cidadezinhas, no sertão e na floresta (muitos deles sem editoras grandes, parentes importantes, dinheiro no bolso e vindos do interior) como Maílson Furtado, Micheliny Verunshck, Itamar Vieira Jr., Mariana Basílio, Ailton Krenak e David Kopenawa. Que se antes era heterossexual, hoje é queer e tem orgulho de falar sobre a existência LGBTQ+, como fazem os premiadíssimos Cristina Judar, Raimundo Neto e Paula Fábrio.

Fred di Giacomo
Fred di Giacomo

Alexandre: O nosso mundo literário-imaginativo infelizmente não é assim-tão-presente. O que o Brasil exporta é bem diferente dos nossos sonhos. A minha sensação de não-pertencimento no começo deste texto se explica. Quando você chega na Feira do Livro de Frankfurt se depara com um cenário higienizado, repleto de homens (e algumas mulheres) brancos, europeus, acima dos 40 anos, trajando roupas sociais e fazendo negócios. Eu, cria de favela, que trago na pele “a cor do talvez”, parecia fora de tempo e espaço ali. Os meus pés ecoavam no solo provisório dos estandes e batiam no meu peito: “Mas quem te ensinou a sonhar, moleque?”.

Fred: E sozinho não se pavimenta estradas. Nessa chegada foi fundamental o acolhimento dos compañeros latino-americanos da Rohkomm e das mulheres brasileiras (em sua maioria negras) da Abá (Betânia Ramos Schröder, Adriana Masan, Lay Franthesca, Clarice Engelsing). Eles nos receberam em Frankfurt, nos apresentaram Djamila Ribeiro e outras autores, nos convidaram para fazermos uma fala e um lançamento de nossos livros em seus estandes. Rapidamente, Alexandre também estava escalado para duas falas bonitas no prestigiado palco compartilhado pela CBL e nossas duas falas (em um inglês macarrônico da minha parte e perfeito da parte desse Rimbaud das quebradas) ficaram lotadas de alemães interessados para saber como é viver sobre um governo populista de extrema-direita e ainda se meter a produzir arte. Falamos do meu épico caipira Desamparo, que conta a violenta colonização do mato de onde saí, e falamos de Reservado romance de formação protagonizado por um jovem negro que busca a arte e o amor em uma favela violenta. Falamos dos autores que listei acima. Mas falamos, também, do dia a dia e da barra que pesa. 

Alexandre: Do dia que dois PMs me enquadraram (enquanto escrevia meu primeiro livro) apontando uma arma na minha cara e me apavorando. Pelo simples ato truculento de sentar numa praça, acompanhado dos maus elementos: livro, caderno e caneta.  

Fred: De meu pai sendo ameaçado de perder o emprego por dar aulas sobre a ditadura militar em um colégio de interior. 

Alexandre: Sobre nossos parentes e amigos negros presos injustamente por terem a cor errada.

Fred: Do meu irmão que viu os fundos de cinema com o qual trabalhava serem extirpados.

Alexandre: Da depressão, do medo e do desemprego que rondam nossos amigos no Brasil.

Fred: E da arte lindíssima que eles insistem em produzir. Mesmo que nunca tenha sido fácil. Mesmo que sempre tenham tentado nos impedir de fazer nossas músicas, escrever nossos livros, dirigir nossos filmes, mover nossos corpos em coreografias ou, simplesmente, contar nossas histórias. Disse em Frankfurt e repito aqui com orgulho: nunca foi fácil, mas insistimos nesse estranho vício de transformar nossa dor e as mortes dos nossos em alguma arte que nos dê esperança.

Alê, Fred e a equipe que trabalhou no livro “Reservado”, arte do Gabriel Jardim.
Alê, Fred e a equipe que trabalhou no livro “Reservado”, arte de Gabriel Jardim

Alexandre Ribeiro, 21, é escritor e poeta. Nascido e criado na Favela da Torre, em Diadema, Ribeiro escreveu Reservado (Ed. Miudeza/LiteraRUA, 2019), best-seller das ruas que vendeu mais de 2.000 exemplares em 5 meses. Ex-secundarista das ocupações, ex-aluno da UFABC e formado na escola de jornalismo Énois, Alexandre hoje é bolsista na Alemanha.

Fred di Giacomo, 35, é escritor e jornalista multimídia. Caipira punk criado em Penápolis, sertão paulista, é autor de Desamparo (Ed. Reformatório, 2018), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2019. Desenvolveu games e infográficos premiados internacionalmente e foi coordenador da escola de jornalismo da Énois, onde organizou a primeira edição do Prato Firmeza, finalista do Prêmio Jabuti. 

 

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