O elenco de
O elenco de "Kafka e A Boneca Viajante" durante a apresentação de ontem (15), no Teatro Arthur Azevedo. Foto: Samia Fernandes/ Divulgação

O musical “Kafka e A Boneca Viajante” é bem resolvido e em várias camadas joga luz sobre diversos temas atuais. Não é hermético, no sentido de só ser entendido por quem é versado no autor checo, mas as referências à obra estão lá, mais ou menos sutis. Franz Kafka (1883-1924) é um gênio, sabemos, embora seu prestígio tenha acontecido em maior escala após sua morte e a sina de escritores, doentes e pobretões, para além de estereótipos, também comparecerem ao enredo. Quantos de nós já não ouvimos falar ou mesmo vivemos situações kafkianas? Mais uma prova da grandeza do autor de “A Metamorfose”, “O Processo” e “Carta Ao Pai”, para citar três referências que aparecem ao longo do espetáculo.

Inspirado no livro do catalão Jordi Sierra i Fabra, o musical é costurado basicamente por um repertório de música popular brasileira, em diálogo com as situações que comparecem à trama, mas também percorrendo o cancioneiro de outros países, a trilha sonora do musical vai de Rita Lee (1947-2023) a Candeia (1935-1978), passando por Lenine, Chico Buarque, Carlos Gardel (1890-1935) e Ritchie Valens (1941-1959), entre outros.

Com dramaturgia de Rafael Primot, direção de João Fonseca e direção musical de Tony Lucchesi, “Kafka e A Boneca Viajante” conta a história de um escritor que encontra uma garota que perdeu sua boneca preferida, desenvolvendo com ela uma relação de carinho e confiança. A história, mote do livro de Fabra, já foi também contada em outros livros, contos e peças, e intriga quem faz contato com ela, já que nem a menina nem tais cartas jamais foram encontradas. Valendo-se de seu talento, ele começa a escrever-lhe cartas, passando-se pela boneca perdida, que supostamente está viajando o mundo e por onde passa relata à amiga suas aventuras e paixões. Kafka, no entanto, é admoestado pela esposa dos boletos que não param de chegar.

No elenco, Alessandra Maestrini, André Dias, Carol Garcia e Lilian Valeska trazem, em meio à fantasia, temas como infância, abandono paterno, a condição do artista acossado por dívidas (e doença), o lugar e o valor da literatura no mundo – sobretudo no mundo de hoje, em que é inglória a disputa com dispositivos eletrônicos de toda sorte e ordem –, a amizade, o amor e certo grau de submissão da mulher – além de cobrar ao marido produtividade para que se paguem as contas, a única função da esposa de Kafka é cuidar-lhe do corpo febril e servir remédios – são trazidos a lume em atuações impecáveis, com atores fazendo mais de um papel e valendo-se da própria condição de estar num palco, às vezes mudando de figurino durante o espetáculo, à frente do público, num híbrido de musical e making of.

Camadas de tempo se sobrepõem no musical. Kafka – ou Senhor K. – está morto, mas está vivo, seja através de sua obra monumental, ou nos feedbacks que direcionam o roteiro. A questão é bem trabalhada, com doses na medida de alívio cômico garantindo boas risadas ao espectador. Como quando uma personagem afirma ter amanhecido transformado num inseto, outra pergunta se ela havia se transformado numa barata e o escritor interrompe, enfático: “ela falou num inseto, num inseto!”.

Se Gregor Samsa transformou-se num inseto logo no início de “A Metamorfose”, uma das mais célebres aberturas da literatura mundial, vale muito a pena ver “Kafka e A Boneca Viajante”, além de por tudo o aqui relatado, para saber o destino da boneca, no que ela se transforma.

Serviço: “Kafka e A Boneca Viajante”. Hoje (16), às 19h30, no Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro). Ingressos à venda no site Ingresso Digital, entre R$ 10,00 e 80,00. Classificação indicativa livre.

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