Foto Roberto de Carvalho - reprodução de "Outra Autobiografia"

A leitura da Outra Biografia de Rita Lee é uma experiência dolorosa, não apenas pelo que está escrito, mas também pelo que não está. É possível sentir a pulsação da artista que tenta nos confortar maternalmente, contando as piores dores do jeito descontraído e palhaço que sempre foi sua marca. “Em certo momento, estava com quatro enfermeiras em cima de mim, me segurando na cama para não sair feito louca pelo corredor ou me atirar pela janela”, escreve, relatando os pavores do período de descoberta do câncer no pulmão esquerdo. É apenas o começo, e leva, segundo ela, à retomada da dependência química. “Me senti culpada por ter tomado tarja preta depois de 15 anos limpa; foi uma recaída-relâmpago humilhante”, afirma, para depois demonstrar que a recidiva não foi tão episódica assim e demandou um psiquiatra “para cuidar da parte psicológica e me fazer desmamar aos poucos dos tarjas pretas”.

Logo de início, Rita revela um fantasma que a acompanha desde antes do diagnóstico: as crises de pânico, “que tomavam minha cabeça por motivos ainda desconhecidos” e “invadia(m) sem aviso, parecendo destruir meus neurônios, já tão assustados pelas idas e vindas do hospital”. “No começo, as enfermeiras ficaram assustadas com meu número de O Médico e o Monstro. Minha família já estava acostumada. E quem me socorria, me abraçando e sussurrando palavras no meu ouvido que acalmavam aos poucos meu ‘bixo porra louca’, eram Juca e Rob”, conta, referindo-se aos mais próximos no período de convivência com o câncer e os tratamentos de imunoterapia, radioterapia e quimioterapia, o filho do meio, João Lee, e o marido e parceiro, Roberto de Carvalho. “Quando passava a crise, eu morria de vergonha por ter me mostrado tão descontrolada.”

O acompanhamento de enfermeiras, no hospital e em casa, rende momentos que ela narra como tragicomédia. “Me baixou um script à la Stephen King e várias vezes a noia de que elas iam me assassinar me pegava”. A resistência à morte convive em competição com a vontade de morrer: “Disse a ele (médico) que minha vida tinha sido maravilhosa, e que por mim tomava o ‘chazinho da meia-noite’ para ir desta para melhor. (…) Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso”.

Rita descreve com graça a fase de tratamento, listando um rol interminável de nomes farmacêuticos, comparando efeitos dos medicamentos e da cocaína, descrevendo a ação dos sossega-leão (“quando o remédio batia, o ódio dava lugar ao choro”), tratando conhecidos também enfermos e outros pacientes do hospital por “oncolegas”, lamentando a já muito conhecida insônia, narrando a dificuldade crescente de locomoção e a rendição à cadeira de rodas (“e foi assim que virei cadeirante”). Faz rir com a desgraça dupla de não querer se alimentar e de ter que se nutrir por sonda nasoenteral: “Quando o tubo chegou ao meu estômago, foi como se eu tivesse engolido um alien, daqueles que saem babando pela barriga da pessoa”. As sessões de quimioterapia das quintas-feiras aos sábados são descritas como de barato total, “agora a palavra ‘sextou’ tem outro significado para mim”.

A quimioterapia, temida por Rita desde que acompanhou os dias finais de sua mãe, em 1986, se faz necessária quando se descobrem metástases na bacia e no cérebro. Um “caroço do tamanho de uma bola de gude perto da minha costela direita” é imediatamente batizado com o singelo nome de Jair. A narrativa sobre câncer de pele se refestela com a tragédia convertida em comédia mórbida, enquanto a “pandemia pandemônica” grassa lá fora: “Além do caroço na barriga, eu tinha mais pontos pelo corpo do mesmo tipo de câncer. (…) Os outros pontos eram menores que Jair, então, se conseguíssemos o impeachment dele, os ‘filhos’ também sumiriam do mapa”.

As descrições jocosas e auto-jocosas soam metafóricas do Brasil dos últimos dez anos: “Jair se formara em apenas duas semanas. Minhas células cancerígenas realmente trabalhavam rápido”. Ou então: “Passaria o ano todo por conta de derrotar os Jaires, mas, se por acaso aparecesse outro de la famiglia, iria para o brejo e a boiada esmagaria a parentada toda”. Só é mencionado o lado ultra-direito da política nacional contemporânea à partida de Rita, mas ela lança farpa discreta contra a misoginia popular brasileira que sempre enfrentou e combateu, tratando Jair (o outro) por “presidento”, em contraste com a designação de “presidenta” que a mídia dominante se recusou a acatar. “Não desistirei jamais do Brasil”, decreta a certa altura, ainda que envolta em algum amargor.

Nas frestas do humor e do, digamos, espírito esportivo, Rita deixa entrever os sentimentos mais profundos daquilo que tenta tornar mais leve para uma legião de admiradores agora órfãos: “Me deparei comigo pelada na frente do espelho e enxerguei uma franga depenada, perninhas de graveto, pele amarelada da rádio, coxas drapeadas, ou seja, uma galinha velha que nem bom caldo daria. Contando assim parece engraçado, mas não é fácil estar naquele look aniquilador de auto-estima”.

Talvez como paliativo para encarar os danos à auto-estima, a fase de quimioterapia faz surgir uma nova persona, que ela denomina de “cantora careca, inspirada na peça homônima de 1950 do romeno Eugène Ionesco, gênio do teatro do absurdo. “Ao sair da frente do espelho, me sinto mais serelepe, passo a mão na careca e cantarolo ‘é dos carecas que elas gostam mais'”. Rita ensaia deixar a persona masculina dentro de si aflorar mais uma vez: “Com cabelo eu parecia mais com minha mãe, careca fiquei a cara do meu pai.”

Outra Autobiografia dá diretrizes sobre a morte de Rita Lee, que viria antes da publicação do livro: “Quero ser cremada e ter as cinzas jogadas na minha horta caseira sem agrotóxicos para me transformar numa alface suculenta”. Momentos poéticos acontecem quando, por exemplo, Rita sonha que está numa festa no Copacabana Palace com figuras como Carmen Miranda e Noel Rosa, tentando avisá-las que as Torres Gêmeas do World Trade Center ruirão: “Uma hora lá, entreguei a Deus, cheirei lança-perfume e fui dançar com Aracy de Almeida“. De volta ao começo, evoca o tempo de juventude quando Caetano Veloso compôs “A Voz do Morto” (para ser interpretada pela então vetusta Aracy) e a cantou ao vivo com Rita Lee e os Mutantes. As gerações dançam com Aracy de Almeida, Rita Lee e quem vier depois.

Na parte não-dita em Outra Autobiografia, é perceptível que em algum momento Rita Lee desistiu de continuar escrevendo, ou então não teve mais condições para isso. Os meses finais não são descritos, a não ser por apartes que soam enxertados, como depoimentos a respeito das mortes de Elza Soares e Gal Costa. O final do livro é abrupto, como costuma ser a vida quando interrompida pela morte.

Já nas páginas finais, a verve feminina e feminista é deixada por Rita como testamento escrito, quando elogia as garotas da nova geração (citando nominalmente Manu Gavassi, Luísa Sonza, Liniker e Anavitória): “Se há algum conselho que posso dar às meninas que querem trabalhar com música é: componha. Compor é um ato solitário, mas incomensuravelmente gratificante. (…) É importante a gente cantar o que deseja. Sem intromissão”.

O conselho leva a uma reminiscência inédita, quando diz que a “Balada do Louco” (1972) dos Mutantes era originalmente “Balada da Louca”. “‘Se elas são bonitas/ sou Brigitte Bardot/ se elas são famosas/ sou Luz del Fuegô‘ (escrevi assim mesmo, com acento circunflexo, para rimar)/ mais louca é quem me diz/ e não é feliz”, lembra, transparecendo que algumas mágoas parecem ter restado para sempre mal-curadas. Inspirada por David Bowie na vida e no seu encerramento, Rita deixou o último capítulo para depois do fim, mesmo que inacabado. Se Bowie lançou o álbum ★ (2016) dois dias antes de morrer, a Outra Autobiografia de Rita Lee vai além e transforma a partida de uma das ainda poucas cantoras-compositoras superstars brasileiras num espetáculo em si mesmo – um espetáculo frio e quente, triste e alegre, lúcido e louco, sincero e transparente.

Leia mais sobre Rita Lee aqui, aqui e aqui.

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