Rita e Gil - foto Mário Luiz Thompson/ Instagram @portaldocesbarbaros

Gráfica e sonora como uma personagem pop de desenho animado ou história em quadrinhos, Rita Lee inspirou a música popular brasileira como ninguém mais nas últimas seis décadas e tanto. Antes de todo mundo, já foi musa de si mesma ao virar nome de rock dos Mutantes, “Ritta Lee” (na época usava dois TT no nome), assinado em trio com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias: “Rita Lee foi passear/ Rita Lee vai encontrar o amor”.

Desde 1968, Rita era a menina de Jorge Ben, Jorge Ben Jor era o menino dela. Em 1971, o soul-sambista esquema novo foi o primeiro a eternizá-la de fora para dentro, em “Rita Jeep“: “Rita Jeep/ sujeita, você é um barato/ terrivelmente feminina/ com você eu faço um trato/ um trato de comunhão de bem”. Jorge se inspirava no jipe no qual Rita circulava por São Paulo, e rezam as boas línguas que houve algo mais entre os dois. “O negócio é o seguinte/ você é minha e eu sou seu também/ eu quero ela, eu quero ela, eu quero ela”, sapecou Jorge, em comunhão de Ben com Lee.

A segunda reverência vinda de fora foi concedida pelos Doces Bárbaros, ou seja, o quarteto superstar formado em 1976 por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia. O rock tropicalista “Quando“, assinado por Gal, Caetano e Gil, protagonizado por Gil e secundado pelos backing vocals gozosos dos outros três nos backing vocals, foi direto e reto ao alvo: “Rita Lee/ ih/ tchutchurururu/ quando a governanta der o bode pode crer que quero estar com você/ superstar com você”. Dez anos antes do advento da babá eletrônica Xuxa, estava decretado pelos pais e mãe da matéria o superestrelato de Rita Lee.

Ela retribuiu de pronto a Gil, compondo “Giló” para o show de encontro (inédito e jamais repetido) da dupla, Refestança: “Ele tocou pra dama, pro rei, pro vagabundo/ e fugiu berto/ bem perto de Gilberto/ bem perto de Gilberto/ bem perto de Gilberto/ bem perto de Gil”. “Superestou com você desde o ‘Domingo no Parque'”, devolveu a superstar. Pouco antes, Gil fora o único dos Doces Bárbaros preso por porte de maconha, como Rita fora a única dos Tutti Frutti enjaulada pelo mesmo motivo.

O hit “Arrombou a Festa” (1976) suscitou uma homenagem ao avesso, ou um piche, como se dizia então, do então ídolo popular Mauro Celso, cujos sucessos “Farofa-Fá” e “Bilu Teteia”, ambos de 1975, haviam sido incluídos na homenagem ao avesso de Rita Lee e Paulo Coelho. O rock “Macacos Coloridos” (1977) não era amistoso: “Você tá ficando uma velha coroca/ ainda anda atacando/ muito, muito de cocota/ o sonho acabou/ e você nem percebeu/ o rei tanto fez que a boba da corte apareceu/ (…) você, toda pintada e muito mal-humorada/ falando de tudo e de todos como se fossem bobos/ tem rabo de palha, tem telhado de vidro/ está apelando porque você ficou a perigo”. Mauro não citava o nome da rival, mas o recado era inequívoco, e apelava para a mesma queixa frequente entre a MPB: “Você, americana batida a bacana,/ mas pra fazer o seu nome você teve que comer banana/ você imita tudo que é feito nos Estados Unidos/ cara de pau/ você e seus amigos pra mim são macacos coloridos”. (*)

Em seguida veio a homenagem mais famosa de todas, causador de interrogações de ambiguidade em Rita. Em “Sampa” (1978), um de seus maiores hits de sempre, Caetano narrou sua chegada a São Paulo na década anterior, quando “ainda não havia para mim Rita Lee/ a sua mais completa tradução”. Rita matutava: se era a mais completa tradução de São Paulo, e se as meninas de Sampa portavam uma “deselegância discreta”, logo…

Cautelosa, Rita demorou 19 anos para retribuir Caetano em forma de canção. Apelidou-o de “Homem Vinho” (1997), louvando o envelhecimento do peter pan tropicalista (“o tempo te lapida”) e equiparando “de Sampa o mais completo tradutor” à falsa baiana Carmen Miranda e ao verdadeiro baiano Dorival Caymmi: “O que é que Caetano tem/ quem nem todo baiano tem?/ ele é o coringa e o rei/ meu eterno Dorian Gray”. “Tem dengo dengoso, tem”, acariciou, parodiando “O Que É Que a Baiana Tem?” (1939), que havia gravado em 1994.

Rita voltou à carga com Caetano em Balacobaco (2003), compondo e suingando “As Mina de Sampa” em ritmo de ska: “Tem mina de Sampa que é discreta/ concreta/ uma lady/ nas rave ela é very, very crazy/ eu gosto às pampa das mina de Sampa”. E chacoteou ambiguidades: “As mina de Sampa conhecem a Bahia, por fotografia/ que natureza/ toda menina baiana vive na maior moleza”.

Um trocadilho levou Rita Lee de volta à boca de Rita Lee, quando muitos pensaram no “palhaço Rita Lee” ao ouvir o trecho “o palhaço ri dali, o povo chora daqui, e o show não para/ e apesar dos pesares vou segurar essa barra”, de “Jardins da Babilônia” (1978).

No início da ressaca pop, Rita tomou outra “homenagem” ao revés, quando o casal Eduardo Araújo e Silvinha, egresso da jovem guarda, lançou um dos piores discos da história da música nacional, Rebu Geral (1981). Ali, o rock moralista que dava título ao LP converteu o playground ritaleeano de “Arrombou a Festa” em orgia pornô. O disco-rock “Sapataria Progresso” expressou mal disfarçada homofobia. E “Lança Menina” se dirigiu frontal, embora não nominalmente, a Rita Lee: “Você que pichava tanto a MPB/ agora está de quatro faturando cachê/ será que esse sucesso vem mesmo de você/ ou se foi produto da nossa TV?/ lança, lança, lança, menina,/ mais um sucesso e fica por cima/ como já dizia o velho Chacrinha/ nada se cria, tudo se copia”.

Falem mal, mas falem de mim, deve ter pensado a antimusa, enquanto a “homenagem” (mas nunca mulheragem) desmerecia a prima caçula do iê-iê-iê (“Mick Jagger te ensina”). “Mesmo de quatro/ te acho um barato”, Eduardo e Silvinha tentavam arrefecer, mais uma vez moralistas. Puro despeito, diriam os maniqueístas cultuadores de um mundo dividido binariamente entre “winners” e “losers”.

Em 1981, Marina Lima citou a musa na letra de “Avenida Brasil” (parceria com o irmão Antonio Cícero), que concorria no festival MPB Shell 81, da Globo: “Ligo o rádio, mas é hora/ de tocar ‘O Guarani’/ meu Deus, o que é que eu faço agora?/ onde é que está a Rita Lee?” (**).

Em 1985, Joyce Moreno (então apenas Joyce) se tornou a primeira mulher a colocar Rita Lee no título de uma bossa triste, “Minha Gata Rita Lee“, uma afilhada vira-lata do “Eu e Meu Gato” da musa. Seguindo a tradição de ambiguidade da tropicália, a outra mulher compositora egressa da era dos festivais expressou carinho por Rita concedendo-lhe quatro patas: “Quando você chegou em casa/ foi coisa tão inesperada/ ali na porta abandonada/ a nos pedir casa e comida/ magrinha, magrinha, arrepiada/ de pelo vermelho, olhos de fome/ eu não podia mesmo te dar outro nome/ Rita Lee”.

Talvez Joyce sonhasse (quase) secretamente uma aproximação bossa’n’roll: “Ah, Rita Lee, por onde é que anda Rita Lee?/ sem pai nem mãe, sem pedigree, irresistível Rita Lee”. Rita, ao que parece, não se pronunciou em público.

De modo geral, a musa que era poeta foi homenageada num tempo em que ainda não existiam mulheragens e em que mulheres autônomas podiam no máximo se auto-homenagear, com fez Rita ao entregar “Perigosa” (1977) às Frenéticas, ainda tendendo ao rótulo da mulher-objeto: “Eu sei que eu sou bonita e gostosa/ e sei que você me olha e me quer/ eu sou uma fera de pele macia/ cuidado, garoto, eu sou perigosa”.

Elis Regina levou o levante às paradas de sucesso, gravando a inédita “Alô, Alô, Marciano“(1980) quando Rita começava a se tornar compositora favorita entre cantoras, mas, hiperexposta como superestrela, sumia das letras e dos títulos das canções. Chico Buarque, que tinha composto “A Rita” (“a Rita levou meu sorriso”) quando ainda não havia Rita Lee (em 1966), incluiu-a como uma das cinco únicas mulherageadas ao final da masculinagem musical “Paratodos” (1993): “Salve Edu, Bituca, Nara/ Gal, Bethânia, Rita, Clara/ evoé, jovens à vista”.

A musa-poeta voltou ao papel de automusa em 1997, com a em parte autojocosa “Santa Rita de Sampa“. As artistas das gerações mais novas vêm aderindo timidamente às mulheragens de mulher para mulher à desbravadora.

A paulista Andreia Dias, por exemplo, dedicou à compositora um álbum inteiro, Prisioneira do Amor (2015), centrado principalmente nas criações primordiais da fase Build Up (1970). Mas foi uma banda masculina, a pernambucana Totonho e Os Cabra, a primeira (e por enquanto única) a reinserir o nome de Rita Lee nos títulos de canções.

O pós-manguebit “Rita Leea de Itamaracá“, em 2005, cometeu a façanha de unir as mamães natureza Lia de Itamaracá e Rita Lee numa mesma mulheragem. Em 2015, a banda gaúcha Space Rave injetou veneno no videoclipe “Pra Quem Nunca Sai de Casa“, lançado como gravação de áudio em 2021: “Ninguém é melhor que ninguém/ a não ser Rita Lee/ e daí?”. (***)

Há três anos, o clubedaesquinista Ronaldo Bastos e Celso Fonseca reunificaram iê-iê-iê e tropicália em “Erasmo, Rita e Roberto“. Antes, em 2013, o gaúcho Orestes Dornelles somou-se ao grupo seleto de ritaleeólogos musicais com “Rita Lee na Veia“: “Quando a coisa fica feia, Rita Lee na veia/ ritalina/ Rita Lee/ Rita/ Rita ri”.

(*) Esse parágrafo foi acrescentado posteriormente, por lembrança do tuiteiro @r_stoned.

(**) Esse parágrafo foi acrescentado posteriormente, por lembrança da leitora Betha Medeiros.

(***) A lembrança da Space Rave, inserida no texto em 24 de maio, foi de Gabriel Thomaz.

P.S. em 24 de maio de 2023: o jornalista Raoul Boalis acrescentou uma série de citações esquecidas neste texto ou desconhecidas pelo autor. “Chamada Geral” (1976), de Zé Rodrix, começa indo diretamente ao assunto: “A Rita Lee me ligou/ pra que eu pedisse ao Raul/ que fosse até Salvador/ chamar o Gilberto Gil/ porque ela está preocupada/ com o rock’n’roll do Brasil”. “Rock Mary” (1981), de Paulinho Boca de Cantor, trata da irmã mais velha da família, Mary Lee Jones (que morreu aos 37 anos, em 1981), mas não deixa de citar a caçula: “Ô, Rita Lee, o que é que eu faço sem Mary?”.

Sem nomear a musa, “A Tal” (1986), de Ivan Lins e Vitor Martins, faz mesura da MPB ao rock’n’roll: “Sempre impertinente/ com o que é vigente e formal/ sempre exuberante, sim/ merecidamente a tal”. O rock “Olhar de Mangá” (2009), de Erasmo Carlos, faz uma espécie de continuação a “Todas as Mulheres do Mundo” (1993), de Rita: “Foi assim com Lilith/ primeira com os olhos de pidona/ Luana e Rita Lee/ Dalila, Malu Mader e Fiona”.

Na linha do esculhambo explícito, os Ratos de Porão de João Gordo cospem fogo em “John Travolta” (1995), desqualificando o posto de Rita no rock’n’roll ao colocá-la lado a lado com ícones da passada discothèque: “Eu nao aguento mais ouvir falar em John Travolta/ nem em Olivia-Newton John/ eu nao suporto mais ouvir falar nem nos Bee Gees e na roqueira Rita Lee”.

Em “Mulher” (1986), Geraldo Azevedo homenageia Rita entre outras, sob algum peso moral(ista): “Sou Janis Joplin drogada/ eu sou Rita Lee/ sou a mulher da rua/ sou a que posa na revista nua/ sou Simone de Beauvoir“. Outra citação duvidosa é a dos sambistas Nei Lopes e Wilson Moreira, em “Mocotó do Tião” (1985), todo rimado em “i”: “Quem chegou lá pondo banca e levou uma retranca foi a Rita Lee”. No samba paulista, Germano Mathias foi mais gentil em “São Paulo, Mãe-Madrinha” (2002), assinado por Elzo Augusto e transformando a musa em patrimônio imaterial: “Tem metrô, Memorial/ Municipal, Rita Lee”.

O rapper Gabriel O Pensador atualizou a “Festa de Arromba” na politicamente correta “Festa da Música” (1997): “A Rita Lee tá vindo ali/ ahn, não acredito!/ ela olhou pra mim e disse: ‘Baila comigo'”. Bem mais concentrado, o gaúcho Vitor Ramil rimou “Stradivarius” (2017) em termos pop-eruditos: “Dó, ré, mi/ eu penso em Béla Bartók/ eu penso em Rita Lee/ eu penso num Stradivarius/ e nos vários empregos que tive pra chegar aqui”. A banda Plutão Já Foi Planeta colocou a musa no título astrológico de “Lua em Rita Lee” (2019), mas sem citá-la na letra. Em 2021, por fim, Elaine Anunan acarinhou a inspiradora em título e letra de “Rita Lee Faz Bem à Saúde“. “Por você vou roubar os anéis e usar tudo”, chacoteia, citando trocadilho comum com a letra de “Desculpe o Auê” (1983). A lista não para de aumentar, e quem quiser que cante outra.

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7 COMENTÁRIOS

  1. É citada também na letra feminista de Falo, da banda Carne Doce: “E eu ‘inda posso ser a backing vocal/E posso pagar pau/Enquanto você me diz pra me inspirar/Nos Mutantes e na Rita Lee.”

  2. Não conhecia o quiproquó musical entre Rita Lee e Mauro Celso – Nossa eterna rainha levar nome de ”velha-coroca” aos 29 anos incompletos foi demais,sem contar que ela fez um favor em nomear os dois únicos sucessos dele.

  3. Fiz um texto semelhante para o programa Notas Musicais da Rádio Câmara de Salvador. Nele, além de várias referências, feitas acima, eu incluí “Mulher” de Geraldo Azevedo. O texto foi alterado e gravado de outro jeito, mas a ideia original era muito parecida com essa. Seu texto é muito bom. Só não conhecia a história de Eduardo Araújo.

  4. Paulinho Boca de Cantor também homenageou a Rita Lee em Rock Mary,
    Mamãe Mary só volta pra mim
    Quando eu pirar prá lá de Lou Três
    Rita Leeeee

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