Em 1969, o âncora de TV Dick Cavett perguntou a Janis Joplin qual era a cantora favorita dela. Sem titubear, Janis respondeu: “Tina Turner“.

Ontem, a cantora Debbie Harry declarou: “Eu fui uma beneficiária da energia, criatividade e talentos de Tina Turner. Uma mulher que começou na rural Nutbush, Tennessee, nos campos de algodão, e abriu seu caminho para o lugar mais elevado. Tina foi uma grande inspiração para mim quando eu estava começando e permanece sendo até hoje”.

Janis Joplin reinou nos anos 1960. Debbie Harry começou sua carreira no grupo Blondie no início dos anos 1970. Nenhuma das duas foi influenciada por Tina na sua persona mais midiática e popular, a Tia Entidade do rock, ombreada por astros como Rod Stewart, Mick Jagger, David Bowie, Mark Knopfler e outros, e que tem sido a musa mais festejada após sua morte, nesta quarta-feira, 24, aos 83 anos, em sua casa em Küsnacht, perto de Zurique (Suíça). Janis e Debbie tinham sido tocadas por Tina muito antes disso, por intermédio do seu admirável legado de 22 álbuns de estúdio, a aventura que registrava o resultado da parceria de Tina com Ike Turner, ancorado principalmente em blues, r&b, soul, gospel e até admiráveis rock e funk (seja no carrossel hipnótico de Game of Love ou na sua rascante versão de Funkier than a Mosquito’s Tweeter, de 1971).

Há duas Tinas a serem lembradas, e uma delas virá forçosamente atada aos braços psicopáticos de Ike Turner por conta dos 18 anos em que trabalharam e viveram juntos. A artista dessa fase tem um papel fundacional, tanto no manuseio dos temas originais de seu companheiro, Ike (provavelmente o mais subestimado entre os nomes aos quais se credita a invenção do rock’n’roll com a canção Rocket 88, em 1951), quanto na elétrica pulsão que imprimiu aos gêneros matriciais norte-americanos e no domínio obsessivo das estratégias físicas e visuais de uma apresentação ao vivo, o que a distinguiria para sempre.

Ike Turner abusava física e emocionalmente de Tina, todos sabem disso. Era um escroto, mas ao mesmo tempo um gênio da música, e que conseguiu explorar e expandir todo o potencial de Tina, testando o magnífico alcance vocal de contralto de sua vítima em pedras fundamentais da música moderna – ele a levou a gravar versões acachapantes de Get Back e Let it Be, dos Beatles, Proud Mary, de John Fogerty, I want to take you higher, de Sly Stone, entre outras.

Ike era tão manipulador que inventou até o nome da sua diva (à revelia desta). É famosa a história de como chegou à casa deles um pacote com o primeiro single de R&B que gravaram, A Fool In Love, em 1960, pelo selo Sue Records. A cantora abriu o pacote e viu os nomes na capa: Ike & Tina Turner. Ela então perguntou a Ike: “Quem é Tina?”. “É você”, ele respondeu. Tina contou essa história à TV CBS em 2020. Até então, ela costumava usar o codinome de Little Ann, com o qual tinha gravado um disco antes da estreia com Ike. Um dos  nomes mais famosos da História da música tinha sido inventado a toque de caixa – consta que a inspiração teria sido o personagem Sheena, Queen of the Jungle, uma heroína dos anos 1930. “Era difícil de dizer (o nome) no começo”, lembrou Ann, quero dizer, Tina.

Paradoxalmente, Ike colocou Tina num papel que era mais sacrílego e desenraizado do que o que as cantoras de sua geração vinham exercendo até ali. Ironicamente, Ike deu a Tina “licença” para se desvencilhar da tradição. Ela e Ike se conheceram quando ela tinha 18 anos e se separaram em julho de 1976, em Dallas, Texas. Ele a largou somente com 36 centavos de dólar no bolso e um cartão de abastecimento de gasolina.

Dali em diante, ela se reergueu e se tornou a mais moderna, aeróbica, agressiva, assertiva, erótica e liberada cantora de sua geração. É possível tanto afirmar que Tina tirou as pedras do caminho para a formulação estética de Janis e Debbie, como também para que Beyoncé, Rihana, Janelle Monáe, Alicia Keys e as outras garotas desfilassem depois seu orgulho feminino pelos palcos. Quando Tina alcançou definitivamente o estrelato pop, em 1984, com o lançamento do álbum Private Dancer, a MTV ainda engatinhava (estava em atividade havia apenas 3 anos) e ela se apossou dessa nova linguagem com uma mão nas costas. Já tinha então 44 anos, uma idade em que a maioria das cantoras encara seu crepúsculo. Tina contrariou vigorosamente essa “regra”: decretaria uma nova tradição a partir dali (até anunciar sua aposentadoria, em 1999, aos 60 anos) – mas não esqueceria as antevisões de Ike, promovendo ocupações de canções já consagradas em vozes masculinas, como Let’s Stay Together (então uma pedra de toque soul de Al Green).

Foi só a partir dos anos 1980 que Tina Turner retomou totalmente as rédeas de sua vida e de própria carreira e passou a controlar e moldar sua imagem como um ícone pop. O cinema abriu-lhe as portas, e ela soube aproveitar a deixa. Já tinha provado o gostinho como a Acid Queen da ópera rock Tommy, em 1975. Mas, entronizada como vilã futurista em Mad Max- Além da Cúpula do Trovão (1985), estourou a boca do balão da cultura pop cantando We Don’t Need Another Hero (Thunderdome) e ainda ganhou um Grammy por outro single da trilha sonora do filme, One of the Living (1985). Seus vídeos, sempre fabulosos, filmados por diretores habilidosos, gestaram essa outra Tina que tem sido mais lembrada nos programas de TV e na saudade dos fãs.

Ao invés de se encastelar como uma musa idealizada, inatingível, Tina escancarou toda sua vida e seus perrengues como um livro aberto. Literalmente. Em 1986, sua autobiografia, Eu, Tina (escrita com Kurt Loder), empilhava os casos de abusos domésticos e violência física – o livro ganharia uma versão cinematográfica em 1993, What’s Love Got do Do With It, com a atriz Angela Bassett no papel principal.

“Uma mistura explosiva de Tina Turner com Celia Cruz“, disse de nossa Elza Soares (1930-2022) o guia cultural Time Out, de Londres, em 2000, quando Elza foi se apresentar no Shepherd’s Bush Empire, na capital britânica. Logo adiante, Elza Soares encamparia o visual de uma Tina Turner das profundezas do samba nos últimos tempos de sua vida, triunfal em seu trono de diva. Dava vazão às comparações com um misto de orgulho e reverência.

É possível falar de Tina Turner somente com feitos memoráveis. Ganhou 11 Grammys, cantou com os Rolling Stones, com Rod Stewart, Chuck Berry, Beyoncé. Foi conduzida duas vezes ao Hall da Fama do Rock & Roll. Entrou para o livro Guinness Book of the Records por ter alcançado o maior público para um show de uma artista solo, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, para cerca de 188 mil pessoas. Colocou o single What’s Love Got to Do With It (do álbum Private Dancer), no posto de número 1 da Billboard Hot 100 nos Estados Unidos. Casou com um alemão 16 anos mais novo que ela e viveu 27 anos com ele. Sobreviveu à tirania e, como Nina Simone, e teve peito para romper com o racismo ( e com sua cidadania norte-americana) e exilar-se na Europa. Mas é bastante mais satisfatório dizer que Tina foi uma artista que conseguiu sempre elevar a sua arte, fosse em meio à miséria sentimental ou engolfada pela opulência, preservando-a de toda corrupção e autopiedade.

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