Ana Sousa Werner em sua jornada em busca da família no Pará (Foto de Tiago Coelho)

Há mais de 50 anos, uma mulher adolescente deixou sua casa e sua família num povoado remoto à beira do Rio Piriá, no Pará, e foi para o mundo. Por ser analfabeta, a dificuldade de comunicação e o embate pela sobrevivência a afastaram da família original e a vida a empurrou para outras paragens – viveu em São Paulo, onde constituiu outra família, com filhos, e depois no Rio Grande do Sul, onde aprendeu a ler e a questionar o destino.

No Sul, empregou-se em casa de uma nova família e tornou-se babá de um garoto, que viu crescer e tornar-se homem, uma história como milhares de outras no dia a dia do Brasil. Mas, um dia, considerou-se capaz de voltar à casa da família de origem, e o garoto, então crescido, contrariou o axioma da classe média brasileira em relação às empregadas, aquele que diz “ela é quase da família”, mas o quase nunca se confirma. Ele resolveu segui-la na empreitada, apoiá-la e ouvi-la. Mais que isso: resolveu documentar toda a busca.

Foi assim que, no último dia 15, foi lançado em São Paulo o livro Dona Ana, do fotógrafo Tiago Coelho e de Ana Sousa Werner, aquela mulher que buscava a família da qual se desgarrou no mundo. Além das fotografias, o livro contém fac-símiles de manuscritos de Ana, que descreve de próprio punho a aventura de 4 mil km no intuito de reencontrar o passado. “Eu nasci em 1946 era mata fechada só tinha índio e onça macaco pássaro rio muitos peixes e jacaré”, escreve ela.

A história parece aqueles reencontros que turbinam programas sensacionalistas como os de Luciano Huck, Silvio Santos ou o Fantástico. Mas a delicadeza dos protagonistas e a seleção de fotos do livro, indiferente ao senso de espetáculo e ao descarte automático das histórias humanas, suaviza as perversões do consumo. Vira, ao contrário, tipo uma aba refinada do Museu da Pessoa. “Um serviço que eu não gosto de fazer é lavar roupa”. Por isso, evidentemente, interessou pouco ao ritmo feérico da imprensa tradicional quando lançado, no último dia 15, no velho Centro Histórico de São Paulo.

Ao invés da submissão tradicional do migrante retratado ao retratista, Ana impôs-se ao domínio narrativo do fotógrafo. “O resultado final, segundo ela, não chegava nem perto de contar sua história de forma satisfatória”, revela Tiago, falando de quando mostrou um ensaio do projeto à amiga. Ele assim descobriu o sentido da verdadeira parceria.

Ana Werner, no final, reencontrou a família, que pensava que ela tinha morrido após tantos anos. Houve lágrimas, infâncias reencontradas, memórias trocadas entre os irmãos que ainda viviam (de um total de dez irmãos). De tudo, entretanto, o que resta mais forte parece ser a força inerente ao profundo intercâmbio cultural, a riqueza que o Brasil troca daqui e dali sem refletir muito sobre o processo, algo que fica bastante evidenciado no livro da dupla (editado com o apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural).

Dona Ana. De Ana Sousa Werner e Tiago Coelho. Austral Edições, 92 páginas, 89 reais. Edição trilingue (português, inglês e espanhol). Tiragem limitada a 500 exemplares, à venda em https://austral.ink/dona-ana

 

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