Cena de
Cena de "Escrevendo com Fogo", filme indiano que concoreu ao Oscar - Foto: Divulgação

Cena 1. “O governo não quer pessoas muito inteligentes, nem muito burras”, filosofa, sem um mínimo de cerimônia, um novo rico chinês. Ele está rodeado de amigos numa mesa de jantar, cujo prato principal é presunto assado de porcos de 48 meses marinado em licor de pera europeu e rum. Ele se vangloria de ser um jovem patriota, sem ser cínico, e possuir conhecimentos no melhor estilo Wikipedia como a razão de o tamanho da boca das taças ter sido moldado para os (narizes pontiagudos dos) europeus ou os sinos de diferentes sons que chamam os serviçais para servi-los a qualquer momento.

Cena 2. no meio de uma imensa mina de pedras, a repórter indiana Suneeta Prajapati aponta para uma garota que avista ao longe e diz: “Está vendo a menina de azul e  vermelho? Ela está com um cesto cheio de pedras. Eu era essa menina”. Na cidade onde mora, muitos foram embora, mas ela resiste. Aos dez anos, quebrava pedras para encher caminhões e ganhar 16 centavos por viagem. Suneeta é uma dalit, que no hinduísmo representam as pessoas sem casta. Marginalizadas entre os marginalizados, as mulheres dalit fundaram um jornal que luta para dar voz às minorias, e a repórter faz parte desse time que não teme em contar as duras histórias de seu povo.

Cena 3. Um incêndio ocorreu em 18 de janeiro de 1981. Treze jovens negros britânicos morreram em um incêndio até hoje inexplicado, mas cercado de dúvidas: não se tratou de um ato criminoso cometido por racistas? Os irmãos Denise e Richard Gooding falam sobre a comunidade em que cresceram, próximo de New Cross, bairro afastado do centro de Londres. Os dois são sobreviventes, e contam hoje como aquela fumaça espessa e escura ainda parecem tão presentes na vida de todos eles. Sandra Ruddock, uma outra mulher negra, chega a afirmar sobre a tragédia: “E o cheiro de carne queimada, vou levar para o túmulo”, diz ela.

Cena 4. Com a voz envergonhada, mas ainda sobrando vitalidade, o indígena Krohokrenhum confessa: “Eu não estava lembrando nada desse negócio do índio, a cultura, né? Eu era só cachaça, eu já era kuben (não-indígena). (…) Porque era triste, a cara triste, a gente chora, o coração fica fraco, porque o coração vai embora”. Líder do povo Gavião, do sul do Pará, o “capitão” Krohokrenhum reconta a epopeia de sua vida para o cineasta Vincent Carelli, que o acompanhou por quase três décadas e foi o último a ver o seu personagem e amigo antes de ele morrer,  num hospital aos 90 anos, em 2016.

O que há de comum entre as quatro cenas díspares e tão distantes geograficamente? É que elas serão exibidas dentro da 11ª Mostra Ecofalante, que começa nesta quarta-feira (27) e vai até 17 de agosto, em formatos híbrido e presencial. Serão exibidos 106 filmes de 35 países em mais de 30 cinemas e espaços culturais de São Paulo. Dividido em eixos como ativismo, biodiversidade, economia, emergência climática, povos-lugares-trabalho, o evento já se consagrou como o mais importante da temática socioambiental da América do Sul.

Os filmes das quatro cenas de abertura, já assistidos por FAROFAFÁ, são Ascensão, de Jessica Kingdon, Escrevendo com Fogo, de Sushmit Ghosh e Rintu Thomas, ambos concorrentes do último Oscar, Uprising, a furiosa e extraordinária série de Steve McQueen e James Rogan, e o magistral Adeus, Capitão, de Vincent Carelli. Escolhidos quase que aleatoriamente diante da grande diversidade desta edição da Mostra Ecofalante, as obras surpreendem pela capacidade de se desafiarem a falar dos problemas que nos afligem, e há tempos preferimos adiar para um tempo futuro. O futuro é agora, com as nefastas consequências que assumimos ao adiar o enfrentamento dessas questões.

“Krohokrenhum, com a sua partida se encerra a era do índio bravo no mato. Tive a honra e a felicidade de ser um de seus soldados”, diz o cineasta Carelli, que com Adeus, Capitão dá por concluída a trilogia, que se completa com as soberbas produções Corumbiara e Martírio. Se nas duas primeiras, o – por que não? – indigenista Carelli revisita o palco do massacre de Corumbiara, no sul de Rondônia, e o histórico genocídio dos Guarani Kaiowá, desta vez ele está interessado em contar uma história completa do povo Gavião, e muito longe da percepção de indígenas que se enriqueceram e ficaram “milionários” por conta de uma indenização pela permissão para construção de um linhão de energia elétrica sobre suas terras.

Cena de "Adeus, Capitão", filme de Vincent Carelli
Cena de “Adeus, Capitão”, filme de Vincent Carelli – Foto: Divulgação

Carelli logo no início de Adeus, Capitão está afirmando que esse é um filme de devolução. Por dez anos, ele se tornou o cinegrafista do líder Krohokrenhum, acompanhando-o em diversas ocasiões. Essa singularidade permitiu a ele captar cenas inéditas e valiosas. Um registro para a história. Nessa narrativa, Krohokrenhum emerge como o líder “bravo no mato”,  capaz de brigar com indígenas que lutavam fraternalmente entre si por disputa de terras, assim como o avô querido que brincava com seus netos. Foi ele quem disputou até quando pode para evitar que sucessivos governos fragmentassem suas terras, dilapidassem sua economia baseada na exploração sustentável das castanhas e, acima de tudo, introduzissem culturas não-indígenas aos mais jovens, que hoje só querem saber de futebol e outras ideias de progresso.

O progresso que Adeus, Capitão resvala é o tema central de Ascensão, que faz um voo rasante na sociedade chinesa contemporânea. Todos os contrastes possíveis e imagináveis do que a globalização fez com a China, hoje rival número 1 dos Estados Unidos, estão explícitos nessa produção. O “sonho chinês” é uma quimera, que enriquece milhares, enquanto mantém outras centenas de milhões de trabalhadores imersos na vida precária. A sensação, já nas cenas iniciais do filme, é que só não está empregado quem não quer. Como meros trabalhadores, peões do século 21, os chineses se dispõem a aceitar de bom grado o lema estampado nas cidades: “Trabalhe duro e todos os seus sonhos se realizarão”.

O documentário "Ascensão" mostra o "sonho chinês"
O documentário “Ascensão” mostra o “sonho chinês” – Foto: Divulgação

Ascensão é um retrato documental de como o capitalismo elevou à n-ésima potência os conceitos de escravidão e prosperidade. Para alguns, sem que se utilize essa palavra, o trabalho exaustivo, monótono e mal remunerado nas fábricas é análogo ao da escravidão. Já para outros, representa o trampolim para um futuro em que a disciplina e a subordinação às hierarquias superiores valem o preço a se pagar. Inovação e produtividade parecem estar acima de tudo na China, uma país que ensina à sua população que “problemas podem ser resolvidos não importa a dificuldade”, e às mulheres, em particular, que é preciso sorrir com apenas “oito dentes superiores” na recepção de um evento.

Certamente esta jamais será uma preocupação das mulheres dalits, que protagonizam o inspirador documentário Escrevendo com Fogo. São essas “impuras”, porque na Índia nem castas são, que tiveram a iniciativa de criar o jornal Khabar Lahariya, que hoje consegue alcançar cerca de 10 milhões de pessoas por mês nas plataformas digitais. À frente desse projeto jornalístico está a guerreira editora-chefe Meera Devi, que é boicotada até mesmo pelo marido, que não vê valor no ofício dela. Com sede em Uttar Pradesh, Meera é paciente o suficiente para ensinar desde o beabá da profissão a jovens e velhas dalits até a como usar o celular pela primeira vez. Porém, como jornalista, é durona para encarar o principal líder de sua região, um populista conservador, e provar a ele que está mentindo ao dizer que política e religião estão se misturando perigosamente no seu país.

É graças ao esforço descomunal do Khabar Lahariya que assuntos até então marginalizados ou que eram devotados pouca ou nenhuma atenção pelas autoridades passaram a ser levados a sério. Nesse documentário, as intrépidas jornalistas mostram desde conquistas pequenas, como a pavimentação de uma estrada, até a investigação da máfia da mineração só foram possíveis por meio de suas denúncias. O filme é um soco no estômago, não só pela miséria que gira em torno da população dalit, segregada na Índia, mas pelos dramas humanos a que ela é submetida. Uma mulher relata ter sido estuprada dia após dia, numa cena em que o marido  está presente, e ambos mostram o quanto vulneráveis e desprotegidos estão.

A Mostra Ecofalante é, ao fim e ao cabo, um grito de fúria contra as injustiças do mundo. Steve McQueen, o celebrado cineasta britânico, o primeiro diretor negro a ganhar um Oscar com 12 Anos de Escravidão (2014). Desta vez, ele surge com a série em três episódios Uprising, com produção da BBC One, em que conta a história do incêndio num prédio de New Cross em 1981. A partir dele, aborda o contexto cultural de uma Inglaterra nas duas décadas que precederam o fatídico episódio. Nos anos 1970 e 1980, uma frente nacional ultraconservadora está em ascensão, a policia britânica é racista, e a então primeira-ministra Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, é capaz de vir a público dizer que a população está com medo de que a Inglaterra seja inundada “por pessoas com uma cultura diferente”.

Série em três episódios "Uprisign" revisita a história de um incêndio que matou 13 jovens negros britânicos, em 1981
Série em três episódios “Uprisign” revisita a história de um incêndio que matou 13 jovens negros britânicos, em 1981 – Foto: Divulgação

McQueen e Rogan vão além do episódio do incêndio dos 13 jovens negros e mostram que uma onda de resistência emergiu daqueles anos. Policiais, vereadores, ativistas, familiares, sobreviventes, todos parecem estar, quatro décadas depois, mais dispostos a falar abertamente sobre o que enfrentaram e ainda enfrentam. Os diretores os colocam para dar seus depoimentos de forma intercalada, um costurando e refazendo a história para que o outro a complemente. Embora permeado por boa e incidental música, todos sabemos que se trata de uma tragédia descomunal, e os horrores do incêndio vão ser revisitados. Foi a partir desse drama que o primeiro protesto de massa organizado por cidadãos negros ocorreu, no hoje conhecido Black People’s Day of Action. Assim como motins em Brixton, quando jovens negros e alguns poucos brancos desafiaram a polícia londrina.

Uprising faz estreia nacional na Mostra Ecofalante. Nesta edição, ainda há espaço para a reexibição do cultuado longa Koyaanisqatsi, de Godfrey Reggio, que completa 40 anos de sua realização (13/8, às 19h30, na Cinemateca Brasileira). Mas no programa Panorama Internacional Contemporâneo haverá ainda a exibição especial dos longas-metragens Geração Z, de Liz Smith, e Searchers: O Amor Está nas Redes, de Pacho Velez. O ator francês Jacques Perrin, mundialmente conhecido por protagonizar o fantástico Cinema Paradiso (1988), será homenageado com a exibição de quatro de seus filmes, Microcosmos, como produtor, e As Estações, Oceanos e Migração Alada,  como codiretor.

Na competição Latino-Americana, destaque para o argentino Esqui, de Manque la Banca, Céu de Agosto, de Jasmin Tenucci, Rolê – Histórias do Rolezinhos, de Vladimir Seixas, Lavra, de Lucas Bambozzi, e Ocupagem, de Joel Pizzini. Opções não faltam na Mostra Ecofalante, sobretudo se seu olhar quiser enxergar o novo mundo que já emergiu.

Horários e trailers dos filmes resenhados

Adeus, Capitão será exibido na Mostra Ecofalante apenas nas seguintes sessões presenciais: Reserva Cultural (3/8, às 15 horas), Oficina Cultural Oswald de Andrade (5/8, às 15 horas) e Circuito Spcine CCSP – Lima Barreto (14/8, às 18 horas).

Ascensão terá sessões online e presenciais na Reserva Cultural (9/8, às 21h50) e no Sesc Piracicaba (14/8, às 20 horas).

Escrevendo com Fogo terá exibições no Reserva Cultural (2/8, às 18h30) e no Circuito Spcine CCSP – Lima Barreto (16/8, às 17 horas).

Uprising terá diversas sessões online a partir de quinta-feira (28) e até o fechamento da Mostra Ecofalante, dia 17 de agosto.

MostraEcofalante. De 27 de julho a 17 de agosto, nos cinemas e no streaming. Programação completa aqui.
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