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“Ô, Juninho! Cê é surdo?” Cambaleante, o bebum grita com insistência, tentando chamar a atenção do artista que está no alto do palco armado na praça central da cidade. Podia ser qualquer rua e praça de qualquer cidade e país. Mas nestes quatro dias juninos estamos vivendo em Joanópolis, o pequeno município paulista que gosta de dizer que nasceu de uma festa de São João e também que é a capital brasileira (ou seria mundial?) do lobisomem. O aniversário de 138 anos é comemorado durante cinco dias de festa joanina, em torno da data em honra do santo padroeiro (o 24 de junho).

Autoapelidada nostalgicamente de A Joia da Mantiqueira e reconhecida com o título de estância turística, mas pouco notada de paulistanos e paulistas e menos ainda de brasileiros em geral, a cidade de 11,7 mil habitantes fica a meros 118 quilômetros da capital do estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, ao sopé da Serra da Mantiqueira.

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Podia ser qualquer praça de qualquer país, mas não estamos somente na cidade de São João ou na capital do lobisomem. Entre os municípios paulistas de Piracaia e Joanópolis se localiza uma parte importante do Sistema Cantareira, o mesmo que esteve praticamente seco e vazio durante a crise hídrica estadual que teve ápice em 2014: os reservatórios dos rios Jaguari (com nascente em Camanducaia, em Minas Gerais) e Jacareí (com nascente em Joanópolis).

Apesar da multidão impressionante que corre para cá nos cinco dias de festa junina, com ápice na noite joanina da sexta-feira, Joanópolis nem tem hotel. Os turistas se distribuem entre o hostel da Tuca, as pousadas da vasta zona rural do município ou mesmo na cidade vizinha que fica depois da divisa, a sul-mineira Extrema.

IMG_5705Falamos aqui sobre festa junina e cultura caipira, num estado dominado pela capital que se tem como a mais cosmopolita e megalopolitana do país. Nesse contexto e apesar da proximidade geográfica com a esquina entre a Ipiranga e a São João, Joanópolis respira memória e esquecimento, daquela categoria de que gostam de lembrar-e-esquecer os paulistas cultivadores da Revolução Constitucionalista de 1932. Aqui, por exemplo, se consome até hoje o pão do PRP (Partido Republicano Paulista), como constata o patrício Valter Cassalho, de 49 anos, historiador dedicado da própria raiz e também fundador e presidente da ACL, a Associação de Criadores de Lobisomens.

Ele se diverte em contar casos de lobisomens ancestrais de Joanópolis – inclusive um dos fundadores da cidade, Anselmo, avô da conterrânea Maria do Rosário Tavares de Lima, autora do livro-tese Lobisomem, Assombração e Realidade (1983). “‘Nhô Ansermo’ era um homem metido a republicano, maçom, e levava a cavalo a proposta republicana, abolicionista e maçônica. Usava aquele capão, cavalo, de madrugada, bem coisa de maçom. Era um português grande, e a turma tinha cisma, ‘só pode ser lobisomem, vive de noite pra rua'”, evoca.

“Nós trabalhamos o que eu chamo de turismo do imaginário, que é levar as pessoas a viajarem em busca dos seus imaginários”, explica Valter. “Se você vai pra Escócia, vai ver o monstro do lago Ness. O Conde Drácula na Transilvânia. O ET em Varginha. Por que não ver o lobisomem em Joanópolis? Produzimos suvenir do lobisomem, introduzimos o bebê lobisomem, o lobisomem com uma cara mais infantil, mais aproximada das crianças. Partimos da premissa de um lobisomem mais simpático, agradável, que foge da linha hollywoodiana, amedrontadora, aquele lobisomem que mata e destrói.”

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O historiador explica a técnica para se tornar um criador credenciado: “O que é criar lobisomens? Sabe como a gente cria? A gente conta um causo numa roda de amigos. Daqui a pouco todo mundo começa, tem uma história pra contar, de alguém que morreu, assombração que apareceu. Essas pessoas começam a contar e recontar, criando novos lobisomens, novas assombrações”.

Ainda sobre lembrar-e-esquecer, construir-e-destruir, ser nova-iorquino ou jeca-tatu, diz-se aqui que os cinco dias joaninos reúnem mais joanopolenses (ou joanopolitanos) que o feriado natalino. “Para aquele que nasceu aqui e saiu para estudar ou trabalhar, a data de retorno, de reencontro com a família, é esta data”, define o prefeito Adauto Oliveira, do PSB (Partido Socialista Brasileiro, coligado no plano estadual ao governador tucano Geraldo Alckmin). “A tradição é grande. Eu participo da festa desde criança, como todos.”

O prefeito afirma que a prefeitura banca sozinha a festa, por um custo médio anual que gira entre R$ 80 mil e R$ 100 mil. “Depende das atrações. A festa não tem investimento do governo estadual, é feita somente com locação do espaço para as barracas e recurso público próprio da Prefeitura. Não é uma festa cara, porque as atrações não são caras. Já tivemos Almir SaterSérgio Reis, que encarecem a festa. Temos a particularidade de que não é o artista que traz a população e o turista pra cá. É a festa em si, o povo na rua. É claro que em período de crise a festa pesa na administração. Mas é uma festa de 138 anos, a gente tem que fazer, tem que continuar essa tradição.”

Como num retrato em três por quatro do estado paulista como um todo, Joanópolis e sua festividade mais grandiosa oscilam entre a tradição e a modernidade, a conservação e o progresso. “A festa muda, agrega e desagrega elementos”, define Valter, frequentador desde que nasceu. “Ficam a parte religiosa, as procissões, o pau de sebo, as bandeirinhas, os fogos. Segue a tradição de soltar rojão às 6h da manhã, ao meio-dia e às 6h da tarde, desde que começa junho, anunciando que a festa chegou.”

A modernização o historiador enumera por acréscimos e ausências, ganhos e perdas: “Como elementos novos, as barracas vão melhorando, se modificando, se padronizando. O que acho negativo é a música. Não se está seguindo a sequência de música caipira, tradicional. Neste ano não saiu o caiapó, que é um grupo folclórico da cidade, um ritual muito bonito da morte e ressurreição do índio curumim. Isso faz falta”.

Mas em que consiste a festa joanina que se orgulha em se autoclassificar como uma das maiores do maior estado (mesmo que esse estado historicamente tenha se deixado levar pela vontade de ocultar as próprias tradições, brejeirices e caipirices)? Depois de morar em Joanópolis por quatro dias, este repórter tenta traçar um retrato em texto, foto, som e vídeo.

 

A música

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O São João joanopolitano se esparrama pela ampla praça da igreja católica e pelas ruas que confluem para ela, todas ornadas por bandeirinhas e caracterização caipira e junina. A programação musical é uma das âncoras do evento, atualmente distribuída por três grandes palcos: o principal (na própria praça), e os das chamadas Rua Joia Rara (com shows de MPB, rock e jazz) e Rua Caipira.

Como indica o nome, o Palco Caipira rapidamente se revela um berço de tradição da música interiorana de raiz. Os nomes são em sua maioria locais, como os da dupla de sessentões Melo e Marinho, que canta na abertura das festividades (quarta-feira, dia 22) o orgulho joanopolense, o apego à terra, os mananciais que fazem de Joanópolis área de proteção ambiental. Segundo conta Melo (vídeo abaixo), ambos são de família de violeiros e cantadores de catira e cantam “por hobby”, “pra divertir”.

Os catireiros são seguidos pela banda de Cláudio Egídio, que explica que é parente de Melo & Marinho e que há um Egídio da nova geração se apresentando nessa mesma noite no Palco Principal. De sonoridade mais contemporânea misturada, a banda-dupla de Cláudio canta e toca na ponte bamba entre o caipira atemporal e o atual sertanejo (pós-)universitário. “Mamãe, eu estou gostando da empregada/ e cada dia que passa eu gosto mais”, diz a letra de uma das canções (abaixo), trilhando a rota interiorana de violências bandeirantes imemoriais, que adentra Minas e pode levar ao estado de Goiás do antigo “ídolo das empregadas” Odair José.

Uma visita ao Palco Principal, já na primeira noite joanina, decifra a queixa do historiador Valter Cassalho: as novas gerações de festeiros se aglomeram aqui, sempre em torno de outras sonoridades, que não as tradicionalmente caipiras. Nascido em Piracaia e morador de Joanópolis, Juninho Serafranny canta um pop-folk-rock que ecoa tanto o sertanejo moderno do Brasil de dentro como a country music norte-americana, como atesta uma releitura suave de “Harvest Moon” (1992), do canadense Neil Young.

IMG_5425A praxe (ou timidez?) joanopolense recomenda que o público não se aproxime demais dos palcos. Mesmo em shows mais concorridos de qualquer dos palcos, a norma é restar entre o artista e a plateia um semivazio, frequentemente ocupado pelas evoluções espontâneas de crianças, cachorros de rua, alguns bebuns e o senhor amalucado e barbudo (um lobisomem?) que “mora” na praça. No show de Serafranny, uma senhora sorridente rompe o semivazio e ocupa o gargarejo, de maquininha fotográfica em punho: ela é a mãe do guitarrista da banda.

A contemporaneidade (que Cassalho interpreta como perda de raiz) norteia o arrasta-pé pós-tudo da banda local Jackstill, cujo forró pouco se lembra dos patronos de junhos nordestinos Luiz Gonzaga Jackson do Pandeiro e se mostra primo-irmão do forró eletrônico também nordestino, do tecnobrega paraense, do funk carioca-e-paulista abusivo das “novinhas” (abaixo), da influência onipresente do cearense Wesley Safadão.

Se a modernidade pop-sertaneja-forrozeira atravessa toda a programação do Palco Principal e os alto-falantes da praça adoram o “Admirável Gado Novo” (1979) do paraibano Zé Ramalho, a tradição autóctone segue comandando o Palco Caipira. Na tarde de São João, Mário e Matias relembram o pagode mineiro de Tião Carreiro (1934-1993), uma das glórias indeléveis da canção caipira brasileira. Aqui, pode-se ouvir o verso “a serra da Mantiqueira nunca serrou”, do histórico pagode de trocadilhos “Falou e Disse” (gravado em 1971 por Tião Carreiro e Pardinho), mirando de frente a serra que nunca serrou.

A catira paulista retorna ao Palco Caipira no sábado, com a viola, as vestes vermelhas e os pés calçados em botas de vaqueiro dos integrantes da Catira União Lobatense, de Monteiro Lobato (outro município da divisa com Minas Gerais, a 132 quilômetros de São Paulo). A tradição familiar predomina sobre os formatos do showbiz, numa formação em que dançam e sapateiam juntos crianças, jovens, adultos e idosos.

Seu Manoel, um dos catireiros lobatenses, explica que se trata de uma dança originária dos índios, e leva este repórter a mais e mais horas de reflexão: o que é a música caipira, senão o saber indígena flechado no coração pela catequização europeia? Pergunto ao homem moreno com prenome português se ele é descendente indígena, e a resposta é eloquente: “Não, não. Sou, sou, sim. Sou, sou, sou, sou sim, sou. O meu avô é que era índio”.

No entardecer do sábado, a joanopolense Orquestra de Viola Matutos da Mantiqueira faz bonito ao som do “Chico Mineiro” (1945), clássico da dupla paulista Tonico e Tinoco, de olho no sopé da serra que vai dar nas terras do Chico. No palco, jovens e velhos e homens e mulheres dão pista da característica familiar da orquestra. No gargarejo semiocupado, a formação (tradicional, já se pode dizer?) em trio criança-cachorro-bebum evolui com desenvoltura.

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As comidas

Como convém a qualquer festejo junino, a comida é motor fundamental da festa joanopolitana. O inverno, nesses dias, torna o São João frio, mas longe de gelado.

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IMG_5850Na sempre superlotada Rua Caipira, os shows de música caipira rivalizam com um rol extenso de refeições juninas salgadas e doces. Na barraca da polenta, conduzida pelo restaurante Bom Tempero, o alimento italianado vem nas versões frita, crocante, cremosa, recheada, com parmesão.

O cardápio à base do milho verde é consumido em todo lugar, seja nas barracas da Rua Caipira, nos curaus, pamonhas e bolos servidos em todo canto, seja nas espigas fumegantes dos carrinhos de rua. Peruas abarrotadas de produtos estacionadas nas ruas laterais fazem a manutenção do estoque e tratores de manutenção chegam a circular pelo território de festa, mas o braço forte é mesmo o veículo ideal para transportar as espigas a seus destinos (à direita).

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A barraca do Boteco Tiririca se especializa numa iguaria junina com origem nas florestas de araucária da região Sul do país: o pinhão. Há do tradicional pinhão cozido (acima) a criações como escondidinho de pinhão, bolinho de pinhão, quibe de pinhão, pinhão empanado e costela bovina no bafo com farofa de pinhão.

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IMG_5866O longo texto no cardápio exalta benefícios para a saúde humana que incluem o combate à anemia e ao mau colesterol. A senhora que atende a barraca mostra com orgulho como são feitos os pratos, no fogão a lenha e no grande cupinzeiro transformado em forno – tudo trazido e montado na rua exclusivamente para o evento. A costela no bafo é graciosamente servida num cabo da enxada.

IMG_5405No setor dos bebes, logo à entrada da Rua Caipira uma choupana feita de toras de madeira oferece ponto de encontro à população rural da cidade com o chamariz de um café gratuito feito no fogão a lenha com chaminé e servido de enormes bules metálicos. Na parte alcoólica, quentão e vinho quente são onipresentes, dentro e fora da rua junina, fora e dentro dos estabelecimentos comerciais do centro da cidade.

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A Rua Caipira é o núcleo gastronômico junino, mas é apenas uma célula da festa, que se espalha pela praça da igreja e afora. Ali, se ultrapassam as tradições joaninas numa orgia doce de frutas cristalizadas, cocadas, pés-de-moleque (e de moça), merengues, fondues, morangos e uvas cobertos com chocolate (os “chocoespetos”), maçãs do amor, churros, tapiocas, pipocas caramelizadas, bombons, trufas, choconhaques quentes, quentões de morango – e, noutra vertente, toda gama de drinques alcoólicos.

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A comilança doce e salgada (pastéis, crepes, cachorros quentes, x-sanduíches, tapiocas) convive com um parque de diversões modesto, mas luminoso e concorrido (chapéu mexicano, carrinho de bate-bate, tobogã, tiro ao alvo, cama elástica…), com um concorridíssimo bazar de roupas e bugigangas (onde se destacam muitos refugiados haitianos e africanos) e com a pequena quermesse oficial da igreja (canjica, arroz doce, bolo de milho, carne louca), liderada por freiras vestidas em hábitos.

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Os costumes juninos

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Religiosamente, os sinos da igreja se combinam ao som de rojões e a uma cantiga em louvor a São João nos alto-falantes públicos, três vezes por dia: ao amanhecer, ao meio-dia e ao entardecer. Rojões e traques explodem pelas esquinas, de manhã, de tarde e de noite. Balões existem, mas apenas como figuras decorativas nos postes da praça.

Uma tradição mantida com esforço é a da Alvorada, que desfila pelas ruas da cidade às 6 horas da manhã de São João, batendo tambor e festando. Virado, o músico joanopolense Alex Soto, 23 anos, explica a tradição: “Na madrugada do dia 23 para o dia 24, todo mundo sai às ruas chamando o povo pra sair às 6 horas da manhã e comemorar o São João”. Quanto ao próprio estilo musical, que apresentou na primeira noite de festa, ele o define como “pantaneiro, meio Almir Sater, modificado pro caipira”.

A fogueira junina não goza de grande prestígio na festa de Joanópolis. No início da noite da quinta-feira, ela arde em estertores à entrada da quermesse da igreja, isolada dos festeiros entre grades, por questões de segurança. Não há, assim, o pula-fogueira para as quadrilhas que se sucedem ao longo dos cinco dias, no calçadão bem em frente à entrada da igreja, também povoados por olguedos tradicionais vindos de várias cidades vizinhas e fanfarras, teatros de boi e balés de estudantes locais.

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Isso não significa que as danças juninas saiam desprestigiadas da festa, ao contrário. Há quadrilhas para todo gosto, da mais tipicamente caipira e joanopolense, caso da Quadrilha Arraial das Flores, ao estardalhaço visual, musical e coreográfico da Quadrilha Tia Valdelice, vinda de São Vicente, na Baixada Santista (vídeo abaixo).

A Arraial das Flores, composta democraticamente por crianças, jovens, adultos e idosos, causa comoção e gargalhadas desde a chegada da noiva, uma senhora que desfila pelo cinturão junino primeiro a pé, e em seguida acomodada na mimosa charrete do Sítio Chega Mais.

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De celular em punho servindo como guia, o padre-narrador conduz o casamento em roça gradeada da noiva senhora com o noivo bebum, entre comandos afrancesados de “avancê” e “retornê”. O diálogo só poderia acontecer em Joanópolis:

– Óia o lobisomem!

– Êêêê!

– É mentira!

– Aaaah…

– Mai aqui tem mesmo!…

O coreto central da grande praça é território livre das crianças, mas na tarde de São João vira também ponto de descanso dos rapazes cobertos de serragem que descansam da tarefa hercúlea de chegar ao topo do tradicional pau de sebo. A brincadeira garante gostosas gargalhadas – além da torcida para o desafiante “Sarney” (vídeo abaixo).

IMG_5684A religiosidade católica aflora na quermesse das freiras e nas camisetas de devotos, como a da romaria dos caminhoneiros de Joanópolis a Aparecida (no Vale do Paraíba). Mas a religião que se expressa nos folguedos de rua está bem mais para sincrética – embora ainda governada pelo catolicismo e por São João.

Congada, moçambique e caiapó marcam tradicionalmente a festa de Joanópolis, os dois primeiros bastante marcados pela influência africana e o último forjado na identidade indígena.

O caiapó não esteve representado neste ano de 2016, mas o Moçambique Esperança, de Monteiro Lobato (abaixo), e a Congada de São Benedito e do Divino Espírito Santo, de Socorro, levaram sincretismo ao calçadão em frente à igreja na tarde do sábado.

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Em devoção a São Benedito e acompanhado tradicionalmente por reco-reco, tarol, rabeca, tamborins, pandeiros e violas, o primeiro folguedo reflete a misturanças étnicas nas peles dos moçambiqueiros participantes. O Esperança vem de mala e cuia do município do Vale do Paraíba onde o escritor Monteiro Lobato (nascido em Taubaté) tinha fazenda – a Cuca e o Saci Pererê do Sítio do Picapau Amarelo são vizinhos do lobisomem de Joanópolis.

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O historiador Cassalho explica os signos para lá de híbridos do folguedo: “As congadas vêm pra reverenciar São João e São Benedito. Toda procissão de São Benedito tem que sair primeiro, porque isso garante que não chova na festa. São Benedito tem de estar de vermelho. Uma coisa que existia e não existe mais são crianças vestidas de São João. As pessoas traziam carneiros, e crianças vestidas acompanhavam a procissão com os carneiros”.

A congada encena o choque de civilizações europeias, asiáticas e africanas na América, como ele descreve: “A congada tem um viés muito curioso, a luta dos cristãos católicos com os mouros, misturada com o culto aos santos negros, a dança da Rainha Ginga, da Rainha Conga. Eles mantêm o cristianismo dentro da religião negra, por uma imposição até mais que por uma posição plural. É uma mistura da coroação do rei do Congo com a história dos 12 pares de França, a luta de Carlos Magno contra os mouros. Curioso é que os santos são negros. Os padroeiros da congada são ou Santa Ifigênia ou Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ou São Benedito, em especial”.

No seio de congadas, moçambiques, catiras e caiapós, os tempos giram tal qual a roda gigante que não existe no parquinho de Joanópolis. Da misturança das tradições há muito superadas nascem as tradições que, no futuro do pretérito, se ressentirão por se sentir rejeitadas pelas novas juventudes. A roda gira quadrada.

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O lobisomem

IMG_5352IMG_5712Independentemente da data cívica sacro-profana de São João, a figura mítica do lobisomem é onipresente na cidade, quase sempre na versão humanizada e harmonizada apregoada pela Associação de Criadores de Lobisomens. Os sustos dos pesadelos infantis se diluem por bonecos de tamanho humano, em geral sorridentes e simpáticos.

O homem-lobo veste paletó caipira xadrez no Empório Cachoeira e enverga jeans e tênis de listas na Rua Caipira, em cuja entrada uma versão tipicamente HQ oferece a oportunidade de os visitantes enfiarem as cabeças em trajes caipiras e fotografarem abraçados com o peludo.

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IMG_5440A mitologia invade a seara gastronômica, principalmente na barraca da Comida do Lobisomem, que insinua o poder de fazer nascer pelos em quem decida devorar um típico pratão de comida mineira-paulista-tropeira: torresmo, linguiça, carne de porco, banana frita, canjiquinha, arroz com açafrão. Noutra barraca, o caldo do lobisomem (frango com farinha) disputa preferências com o caldo de quenga (frango com mandioquinha).

IMG_5750A cerveja artesanal da terra também capitaliza o turismo do imaginário. A barraca das cervejas Wolfman Bier explica num banner a que veio o representante joanopolitano do monstro: “Dizem que quem tem muita sorte nasce virado pra lua, e Joanópolis parece ser uma dessas cidades em que a lua dá muita sorte. Principalmente a lua cheia, pois é nela que o lobisomem costuma aparecer. Temido no passado, o lobisomem joanopolense passou por nova metamorfose, deixou de ser amaldiçoado para dar sorte, de mau passou a brejeiro e de temido passou a ser amigo”.

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Exceção à simpatia generalizada dos lobisomens joanopolitanos, Elias (ou Lia) anda caracterizado numa versão mais assustadora do monstro, com bocarra de dentes arreganhados, olhos injetados, corpo coberto de pelos e pés com garras crispadas. É tanta gente nos dias todos da festa que só cruzo com ele uma única vez, na Rua Caipira.

Quem conta é o presidente da ACL, que Lia não recebe para andar feito lobisomem. “Ele faz porque gosta, gratuitamente”, explica Cassalho. “Foi pra praia de lobisomem com prancha de surfe, foi pra festa de peão de Barretos como lobisomem, foi ver o Alckmin, mordeu o Alckmin. Ele faz isso espontaneamente, divulga nossa cidade em tudo que é lugar”.

O prefeito Adauto Oliveira anda pela praça cercado por crianças que pedem ingressos gratuitos para os brinquedos do parque de diversão. Durante nossa conversa, Adauto demonstra que nem todos os habitantes da cidade apreciam a fama de “capital do lobisomem”. “É controverso. Parte da população não gosta, acredita que Joanópolis é cidade de João, de João Batista, do catolicismo. Os evangélicos falam que Joanópolis é cidade de Jesus, e não de João. Os mais religiosos não gostam do misticismo do lobisomem. Mas Joanópolis é uma cidade turística, e se existe um nicho místico que se pode explorar, tem que explorar mesmo.”

Adauto não demora, no entanto, a puxar para a conversa um homem de chapéu preto e camisa vermelha, que apresenta como um dos lobisomens da cidade. “Esse é o lobisomem vereador da cidade. Ele se transforma.”

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O prefeito apresenta o vereador Carneiro. Mas é lobo ou é carneiro? “É um carneiro que vira lobisomem à noite”, diz o prefeito. “Sou um carneiro que vira cordeirinho na mão do homem”, retruca o vereador, não sei se séria ou ironicamente.

Já que o carneiro-lobo deu a deixa, criemos lobisomens. Cassalho dá dicas sobre como se pode detectar um lobisomem entre nós. “Como veem o cara que é lobisomem? É um cara que tem uma maldição, um fadário de virar lobisomem nas luas cheias. Acabam tendo dó, porque é um cara magro, que vomita muito durante o dia, passa mal, é até meio doente. Tempos atrás, o lobisomem foi tido como uma pessoa que tinha amarelão.” Além de vizinho da Cuca e do Saci, o lobisomem, quem diria, parece ser primo do velho Jeca Tatu que tanto irritou e incomodou mr. Monteiro Lobato.

“Se for macilento, muito peludo, ficar muito à noite pra rua e tiver sobrancelha unida é lobisomem”, prossegue Cassalho (seria o monocelho criador de Emília, Pedrinho e Narizinho um representante da espécie?). Mais: “O sétimo filho homem da família é lobisomem. Quem tirar sangue do lobisomem vira lobisomem – se ele passar, você der uma pedrada nele e tirar sangue, você vai assumir o fadário dele. A menos que seja um objeto de prata. Nenhum lobisomem pode ser ferido com prata, que sangra até morrer”.

Afinado com a cultura do imaginário, o historiador procura reler o mito sob o olhar joanopolense: “O lobisomem dá medo, mas é gente boa. ‘É um rapazinho bom, só tem um defeitim de ser lobisomem.’ As pessoas não se assustam com o fato de alguém ser ou não ser. No mundo caipira há uma convivência harmônica com o diferente. Aí é que vem a questão hollywoodiana, só porque é diferente não tem que caçar você, por na jaula, matar. O que faz o caipira? Ele convive harmonicamente com o lobisomem. Isso é muito positivo, o respeito à diversidade.”

Pacificado, o lobisomem reina em Joanópolis, mas não consegue fazer frente à juventude local, que vara as madrugadas juninas e vê o sol nascer ao som de uma rave improvisada por um DJ que se coloca na entrada de uma das lojas de variedades da praça da igreja. Enquanto uns deixam a festa no ônibus que parte diariamente para a capital às 6h da manhã e outros batem cabelo na rave até o sol queimar, o lobisomem se recosta numa cadeira da Rua Caipira, em busca de energia para cinco jornadas consecutivas de festança.

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P.S.: Durante os quatro dias que passa em Joanópolis, o repórter não se depara nenhuma vez com manifestação política de qualquer natureza ou palavra de ordem contra (ou a favor d)o presidente interino Michel Temer, um conterrâneo paulista interiorano de Tietê.

 

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4 COMENTÁRIOS

  1. Olá amigos da carta capital, acho que ouve um equívoco em uma das partes da matéria, ao citar a banda Chicamandú foi postado um vídeo da banda Jack still. Sou vocalista da banda Chicamandú e nossas influências não estão nem perto do sertanejo e Wesley Safadão, nosso repertório traz canções de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, trio Virgulino, Geraldo, Azevedo, Alceu Valença e por aí a diante, dos mais recentes ao forró seguimos influência de falamansa, rastapé, bicho de pé entre outros da mesma esfera musical. Prezamos a cultura do pé de serra sempre, assim como na canção que homenageia Joanópolis o ” arrasta o pé para Joanópolis” , que conta a história da cidade que nasceu de uma festa, ou pelo próprio nome da banda que é uma homenagem a uma antiga moradora da cidade que nunca faltava a um evento. Peço por gentileza que retratem este equívoco que com certeza foi um erro de informação obtida. Desde já muito obrigado pelo espaço e paz&luz sempre.

    Dario Oliveira.

    • Olá, Dario. Desculpe a demora em publicar seu comentário, eu não tinha visto. Mas o meu erro já foi corrigido há alguns dias, obrigado!

  2. Oi, linda matéria do blog, só acho que faltou falar sobre as outras bandas que são também de Joanópolis, com o Francis Rosa e a Chicamandú que fez dois lindos shows com a cara do São João que a cidade merece. Beijo

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