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Com Roberto de Carvalho, Rita Lee retomou uma veia que havia exposto com total dedicação nos Mutantes, mas deixado de lado na fase Tutti Frutti: a satírica. O humor tornou-se uma das ferramentas mais poderosas da parceria Rita-Roberto e se conectou com outra campeã de audiência, a verve que a própria cantora chamava de “rockarnaval”. Numa fusão improvável para quem, segundo os desafetos, desprezava a brasilidade, Rita percebeu que vários dos temas mais divertidos criados com Roberto tinham um parentesco com as então finadas marchinhas carnavalescas da primeira metade do século 20 – em 1987 chegou a regravar uma delas para uma novela global, “Sassaricando“, popularizada em 1951 na voz da vedete Virgínia Lane.

Possivelmente ela seguia um norte insinuado pela sagacidade demonstrada por João Gilberto ao convidá-la para duetar uma versão convulsionada em bossa nova de “Jou Jou e Balangandãs“, do mestre em marchinhas Lamartine Babo, lançada originalmente em 1939 num dueto de Mario Reis e Mariah.

“Jou Jou e Balangandãs” (1980), fundador do dueto bossa’n’roll de João e Rita

Na série matadora de rockinhos carnavalescos de Rita e Roberto, brilharam “Lança Perfume” (1980), a pornô soft “Banho de Espuma” (1981), “Flagra” (1982), “Frou-Frou” (1982) e “Dias Melhores Virão” (1989, para o filme homônimo de Cacá Diegues). Em termos mais roqueiros que sambistas, poderiam ser incluídos nesse rol o funk-rock de desavença e cumplicidade conjugal “Bem-Me-Quer” (1980, “eu sou uma praga/ maria-sem-vergonha do seu jardim/ você tem ciúme, mas gosta de me ver rebolar”) e o rockarnaval politizador “Vote em Mim” (1982). Esse último antecipou em dois anos o clamor pela redemocratização do Brasil na campanha Diretas Já: “Vou ser presidente do seu corpo/ governar/ anarquizar/ minha plataforma é o prazer total/ isso é melhor e não faz mal, já disseram/ (…) e sem demagogia, por pura alegria/ quero o povo feliz”. As marchinhas eram apenas a ponta do iceberg de irreverência que começava a subir à superfície.

Não é que Rita Lee abandonasse a verve amorosa-sensual-sexual aberta em 1979 por “Mania de Você” e “Doce Vampiro”. A primeira vida da dupla Rita & Roberto rendeu abundantes momentos dessa natureza, às vezes menos, às vezes mais irreverentes. “Você e eu somos um caso sério/ ao som de um bolero/ dose dupla/ românticos de Cuba libre/ misto-quente/ sanduíche de gente”, dizia a cálida balada latina “Caso Sério” (1980), massageando pontos erógenos inexplorados pelo Brasil do final da ditadura, como o ménage à trois, atual trisal, em arranjo bissexual “sanduíche de gente”.

Favorita” (1981), uma das poucas parcerias da dupla protagonizadas pela voz de Roberto (outra é “Tentação do Céu”, de 1983), também investiu no apelo sexy (dessa vez masculino), insinuando de modo ambivalente caminhos hoje popularizados como poliamor: “Minha favorita do harém/ só quero você, mais ninguém/ antes, durante, depois/ estou perdidamente apaixonado por nós dois”.

Mais maroto e altivamente feminino era o romantismo safado de “Tatitibitati“, também de 1981: “Quando eu nasci/ minha mãe dizia/ tome cuidado/ com o bicho-papão/ não dê ouvidos/ às más companhias/ siga o instinto do seu coração/ fiquei mocinha e, sabe como é,/ o tal bicho-papão virou meu namorado”. O romantismo não dava brecha para Rita esquecer de se colocar como mulher autônoma ou, como diríamos hoje em dia, empoderada.

Safadeza moleca era o mote de “Strip Tease” (1983), passada num cenário de fantasia sexual feminista: “Eu avistei um garotão no mesmo elevador/ olhou pra mim e eu logo vi que ele era bom de amor/ que graça, que massa/ caí na telha/ eu só queria aquele gato na veia/ primeiro andar, blusa, calcinha, tênis, saia de prega/ segundo andar, meia, sapato, cinto calça, cueca”. A balada latinizada “Menino” (1983) abria flancos para a fluidez sexual dos 1970 e para novas inversões de papel: “Menino, menino, menino/ eu te levo no bico, te ponho dentro do meu ninho/ eu te pego, te pico, te como/ à la passarinho”. Quatro anos mais tarde, “Pega Rapaz” levava a maroteria avante: “Tem tudo a ver o meu pinguim com a tua geladeira/ nós dois a fim de cruzar a fronteira/ numa cama voadora, fazedora de amor/ de frente, de trás/ eu te amo cada vez mais/ de frente, de trás, pega, rapaz/ me pega, rapaz”.

Noutra face das canções de languidez, “Mutante” investia de modo inédito na veia da fossa, fazendo de Rita Lee uma Dolores Duran pós-pop’n’roll: “Afinal de contas dei meu coração/ e você pôs na estante/ como um troféu/ no meio da bugiganga/ você me deixou de tanga/ ai de mim que sou romântica”. A Rita machucada de dolores produziria ainda um outro greatest hit, “Desculpe o Auê“, de 1983: “Desculpe o auê/ eu não queria magoar você/ foi ciúme, sim/ fiz greve de fome/ guerrilhas, motim, perdi a cabeça/ esqueça”.

Pelo lado do riso, o humor ferino e debochado apareceu desde o primeiro disco produzido em parceria com Roberto, o de 1979, com os megahits “Chega Mais”, “Doce Vampiro” e “Mania de Você”. Centrou-se num não-sucesso, também pertencente à vertente sexy, “Maria Mole” (“o namorado dela é o rocambole/ e quando eles se beijam os dois se engolem”), e num deboche antigo recauchutado, “Arrombou a Festa II“, filhote do primeiro “Arrombou a Festa” (1976), novamente em parceria com Paulo Coelho. Sátira da “Festa de Arromba” (1965) jovem-guardista de Erasmo Carlos (em uma de suas primeiras parcerias com Roberto Carlos), “Arrombou a Festa” se reproduzia no segundo episódio, apenas inserindo no enredo novos personagens da música brasileira e até mundial.

Os alvos agora eram as musas disco music Miss Lene e Lady Zu, a sambista Alcione, Fafá de Belém, Cauby Peixoto, Sidney Magal (“cigano de araque fabricado até o pescoço”), Ney Matogrosso, o (quase) intocável Chico Buarque (“o Chico na piscina grita logo pro garçom/ afaste esse cálice e me traz Moet Chandon”), novamente Roberto Carlos, a defunta Carmen Miranda e… Rita Lee: “E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa/ pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa”. “Fricote/ eu fiz xixi/ na música popular brasileira”, finalizava, parodiando o clássico disco “Le Freak” (1978), do grupo estadunidense Chic.

Enveredando pouco a pouco pelos temas políticos, Rita testava os limites da abertura criticando o general-presidente de plantão João Figueiredo no pastelão “João Ninguém” (1980): “Rei pé-de-chinelo/ até parece que sangue é azul”. Passou batida pela Censura ditatorial, que àquela altura parecia se afrouxar.

Contragolpe a “Esse Tal de Roque Enrow”, o rockão “Orra Meu” (1980) antecipava a velhice, esculhambava o rock’n’roll e se auto-ironizava – no masculino: “Eu tô ficando velho, cada vez mais doido varrido/ roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido/ vou botar fogo nesse asilo/ respeite minha caducagem/ (…) quanto mais o tempo passa mais eu quero me divertir/ me despir/ me sentir/ guerrilheiro, forasteiro, orra meu”.

No álbum arrasa-quarteirão Saúde (1981), o primeiro assinado por Rita & Roberto, “Tititi (Galinhagem)” achincalhava a própria base de fãs, que talvez não captasse bem a mensagem: “Volta e meia, meia-volta volver/ saio de fino pra ninguém perceber/ essa galinhagem é mais chata que gilete/ nada mais furado do que papo de tiete”. Os horizontes temáticos, alargados em 1979 pelo disco-rock-comentário “Corre Corre” (“se não me engano no próximo ano vai vir/ aquela dose de cicuta que eu vou ter que engolir/ como se fosse um suco de fruta/ como se fosse eu a grande maluca”), se ampliavam ainda mais no épico submarino viajandão “Atlântida” e em “Saúde”.

Essa última, assim como “Mutante”, remetia à transição à nova vida a partir da banda de juventude, com a qual Rita gravou “Vamos Tratar da Saúde” (“que tal um chá, chá, chá, chá/ pra gente se achar?”) em Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida (1972), creditado apenas a ela, mas gravado coletivamente com os Mutantes. “Quero mais saúde/ (…) eu sei que agora/ eu vou é cuidar mais de mim”, cantava em “Saúde“, como a tentar afastar os rumores que já circulavam sobre a vida desregrada regada a drogas e glamour pop. “Não vou chorar/ se por acaso morrer do coração/ é sinal que amei demais/ mas enquanto estou viva, cheia de graça/ talvez ainda faça um monte de gente feliz”, prevenia os fãs da possibilidade de pintar um final infeliz.

“Meus amigos dizem que essa coisa vicia/ andaram até jurando que era anorexia/ é uma neurose/ uma overdose/ sou dependente do amor”, caminhou por sombras o rock “On the Rocks“, carro-chefe do LP de 1983, Bom Bom. No mesmo disco, “Fissura” sugeria que a saúde sobre patins de “Lança Perfume” dava lugar cada vez mais à soberania da maratona de shows e do abuso químico.

A série das canções-comentário sobre a realidade encontrou ponto de exclamação na balada mista de realismo e síndrome de Peter Pan “Barriga da Mamãe” (1982): “Ai, que pavor quando leio o jornal/ é só desgraça, é só baixo astral/ meu diploma dependurado na porta/ é o quadro de uma natureza morta/ quero voltar invisível/ pra dentro da barriga da mamãe”. Num quadro mais otimista, “Pirata Cigano” (1982) voltava à “Pirataria” de 1975 com romantismo anti-romântico e requintes poéticos – no masculino: “Se viver é navegar/ meu barco lá se foi/ na correnteza da chuva/ numa garupa/ que o vento levou pra bem longe do tempo/ cada porto um amor/ em cada amor um adeus/ meu barco segue sozinho”.

O álbum de 1982 é o primeiro a assumir Roberto de Carvalho no título e na foto de capa

De volta à veia satírica, o festivo LP de 1982 se jogava no humor trocadilhesco que também fascinou desde sempre o ex-parceiro e ex-marido Arnaldo Baptista. A zombeteiramente hollywoodiana “Flagra” (“se a Deborah Kerr que o Gregory Peck/ não vou bancar o santinho”) trazia sugestões sexuais como um aperitivo a mais, “no escurinho do cinema/ chupando drops de anis/ longe de qualquer problema/ perto de um final feliz”. Pela primeira vez Roberto de Carvalho vinha à capa, repousado com Rita na nudez de uma banheira de espuma cenográfica.

O “palhaço Rita Lee” (como embaralhava o troca-letras de “Jardins da Babilônia” em 1978) estava pronto para fazer um monte de gente feliz, mas o LP terminava com aquela que era provavelmente a composição mais triste da história de Rita, “O Circo“, pantomima dramática e climática sobre o amor desencontrado entre o palhaço, a bailarina e o trapezista (“nem sempre é possível ter/ um final feliz pra animar/ e lá no meio do picadeiro/ o show não pode parar”). “Ô, manhê, palhaço chora?”, perguntava nos últimos sulcos do disco um dos três filhos meninos de Rita e Roberto, desaparelhado ainda para compreender os meandros da depressão.

Um ano depois, em Bom Bom, “Yoko Ono” defendia Roberto da antipatia que ele provocava nos admiradores do art rock dos Mutantes: “Me deixa, me deixa, me deixa ser a tua gueixa, a tua Yoko Ono”. “Degustação” apelava à escatologia infanto-juvenil (“querida, vamos chupar ferida?”, perguntava Roberto; “ferida não me seduz/ prefiro um copo de pus”, respondia Rita) e por isso a Censura, que havia deixado escapar a crítica a João Figueiredo em 1981, proibiu sua execução pública. O mesmo aconteceu com “Arrombou o Cofre” (1983), terceiro e último volume da saga de arromba, dessa vez trocando o elenco da MPB pelo escrete político de Brasília, citando o presidenciável Paulo Maluf, Jânio Quadros, Delfim Netto, Golbery do Couto e Silva e “o escandaloso” cantor-deputado Agnaldo Timóteo, entre outros. “Nas eleições diretas o uniforme é à paisana”, testava novamente os limites da distensão política controlada pelos militares. Contraditoriamente, a moda caipira pueril “Pirarucu” (1983) escapou da peneira censora, mesmo ofendendo ouvidos conservadores com “eu xingo o chato do Xingu/ eu piro o cu pirarucu”.

A existencialista

O humor fica mais ferino e mais mórbido em “Rita e Roberto” (1985)

Rita e Roberto (1985), o álbum mais elaborado e menos bem-sucedido (comercialmente) da década, foi às raias do humor mórbido, no tema suicida de “Gloria F” e ao rebater os boatos insistentes sobre o estado de saúde da estrela em superestafa, no cabaré “Não Titia”: “Socorro/ estão querendo me assassinar/ é por vingança?/ é por herança?/ sei lá, sei lá, sei lá/ (…) não, titia, eu não tô com leucemia”. Tendo de se defrontar com a ascensão do rock new wave abrasileirado, Rita provocava os novos-ricos do show business (como Paulo Ricardo, o sex-symbol macho do RPM) no delicioso rock “Yê Yê Yê“: “Ele é o rei do visual, mendigo musical/ sucesso na parada com um rock comercial/ malhado/ trincado/ Menudo metaleiro, Michael Jackson do Pandeiro/ supertstar do sertão/ vanguarda moderninha, anfetamina sonolenta, iê-iê-iê dos 80″.

A banda feminina do novo showbiz brasileiro tampouco merecia refresco, como atestava a ferina “Noviças do Vício“: “As noviças do vício/ não medem sacrifícios/ fazem altas baixarias/ por um resto de sucesso/ ratazanas da publicidade/ pérolas da vulgaridade/ elas pecam pelo excesso e morrem pela falta”. Enciumada com as starlets sexuadas dos anos 1980, Rita cedia à rivalidade feminina contra a sororidade (termo ainda desconhecido à época) feminista. Na contramão, “Choque Cultural” se esmerava na auto-ironia, comentando as vaias recebidas do público metaleiro pela roqueira neo-veterana na primeira edição do festival de juventude Rock in Rio – no masculino: “Eu entrei quente/ crente que estava abafando/ quando/ tropecei no ego/ fiquei cego/ e caí na real/ me sinto um lixo/ bicho da pré-história/ memória/ de uma raça/ que ameaça a espécie especial”.

Picardias à parte, Rita e Roberto foi também o álbum que levou mais longe a temática de realidade e crônica cotidiana, a partir da abertura com “Vírus do Amor“, que ousou cometer ambiguidade em torno do pânico movido pelo advento do HIV: “Aqui estamos nós/ turistas de guerra/ bizarros casais/ restos mortais do Ibirapuera/ o vírus do amor/ dentro da gente/ beira o caos/ 42 graus de febre contente”.

As canções-crônicas se aprofundavam em meandros existencialistas, das dolores (duran) de “Molambo Souvenir” (“old bossa/ new fossa/ olha eu aqui sem viver”) ao semi-esoterismo de “Nave Maria“, assinada em parceria de Roberto de Carvalho com Caetano Veloso e, coincidentemente ou não, homônima da canção de parto e do álbum de 1984 do então submerso compadre tropicalista Tom Zé.

A genial “Vítima“, por fim, consumava em 1985 uma trilogia existencialista do isolamento, iniciada com a quase ingênua “Lá Vou Eu” (1975, “num apartamento/ perdido na cidade/ alguém está tentando acreditar/ que as coisas vão melhorar/ ultimamente”), retomada na fossa nova “Raio X” (1983, “foco o binóculo sob o nariz/ entro nos apartamentos/ com olhos de raio X/ vejo a vida como um cinema/ cenas de amor e drama”) e agora hiperbolizada com tintas noir de mistério e morte à maneira de Alfred Hitchcock: “Do meu esconderijo no milésimo andar/ espio noite e dia sua vida secreta/ o frio de São Paulo me faz transpirar/ sou vítima, vítima, vítima/ da sua janela indiscreta”. “Detesto multidão”, confessava, à beira da síndrome do pânico, a mais completa tradutora da vida em São Paulo, também uma especialista em atrair multidões em (suposta) festa. Uma ligeira cutucada na ditadura que ia para o beleléu passou despercebida em “Vítima”: “Com o sangue frio de um torturador/ eu planejo passo a passo atacar seu amor, babe”. Pouco ouvido, Rita e Roberto selou a quebra da associação de dez anos com a Som Livre.

A veia existencialista escoou por temas menosprezados (mas nem por isso desprezíveis) da fase de quatro anos na EMI-Odeon. Aqui se encaixam “Livre Outra Vez” (“vou subir numa montanha bem alta/ vou chorar, gritar, xingar até ficar exausta/ se perder mais um jogo e outro amor/ é sinal que a sorte me deixou em xeque-mate/ livre outra vez/ no xadrez”), “Zona Zen” (“saio da cama, entro em coma/ mais pra zona que pra zen”) e “Cruela Cruel” (“nunca a vida se mostrou assim tão cruela cruel”), todas do álbum Zona Zen (1988), e “Perto do Fogo“, parceria que marcou a despedida sofrida de Cazuza, na versão delicada e luminosa de Rita em 1990: “Perto do fogo/ como faziam os hippies/ perto do fogo/ como na Idade Média/ quero queimar minha erva, eu quero estar perto do fogo”.

Na troca de guarda cruel entre as gerações, a partir da estreia na EMI-Odeon com Flerte Fatal (1987), Rita e Roberto aprofundavam a descida ao segundo escalão do hit parade, mas insistiam no humor, na graça e nos trocadilhos de “Brazix Muamba“, “Bwana“, “Músico-Problema” (mais uma agulhada em mutantes e em paulos ricardos, “ele é músico-problema/ sola na pausa, rouba a cena/ só ele aparece/ só ele acontece e leva lucro”, “bota fora/ manda o cantor embora do grupo”), o saboroso blues-rock “Para com Isso” (de Roberto e Antônio Bivar, “baby, baby, sai dessa lama/ baby, baby, para com isso/ baby, assim cê quebra com a cama/ baby, assim cê acorda o cortiço”) e “Xuxuzinho” (“procuro um gato nesse mundo-cão/ um candidato à vaga do meu coração”, declamava, inspirada pela solidão amorosa de Xuxa). Feito bumerangue, o grupo de canções críticas ao showbiz tropeçava no espelho, expondo pela tangente vulnerabilidades de sua própria geração e de si mesma – e muito provavelmente Rita Lee sabia disso.

A intérprete

A década de 1990 apanhou Rita de volta à Som Livre, separada de Roberto e assinando sozinha um precursor dos acústicos MTV ao vivo, Bossa ‘n Roll (1991). Aliviada das pressões máximas dos moedores de carne da indústria musical, não chegou a se adaptar ao exercício pleno da liberdade de experimentar, testar e ousar, mas fez avanços apreciáveis sobre territórios que até então não explorara – ou explorara parcamente com os Mutantes.

Nos primeiros e já longínquos tempos, ela havia participado de versões anárquicas e impagáveis para “Chão de Estrelas” (1970), seresta clássica da velha guarda lançada em 1937 por Silvio Caldas; “Banho de Lua” (1969), versão da versão de Celly Campello (1960) para “Tintarella di Luna” (1959), lançada pela estrela pop italiana Mina; “Le Premier Bonheur du Jour” (1968), sucesso pop francês em 1963 com Françoise Hardy (uma das inspirações femininas da primeira Rita Lee, ao lado da britânica Marianne Faithfull e da francesa Brigitte Bardot); “Rua Augusta” (1972), hino juvenil pré-jovem guarda lançado pelo projeto de galã Ronnie Cord em 1964; “Once Upon a Time I Thought” (1966), dos Mama’s and Papa’s, mutantizados em 1968 para “Tempo no Tempo“; e “Adeus, Maria Fulô” (1968), do paraibano Sivuca, lançado no ano anterior pela sul-africana Miriam Makeba.

Em 1973, nas Cilibrinas, gravou “Minha Fama de Mau” (1965), de Roberto e Erasmo, que não saiu e só foi liberada dois anos depois num LP coletivo picareta que simulava, pela inclusão de palmas, uma gravação ao vivo no festival Hollywood Rock – sem o crédito para Lucia Turnbull. Em 1977, na Refestança com Gilberto Gil, regravou uma versão de peso de “É Proibido Fumar” (1964), uma das pedras fundadoras da jovem guarda e de Roberto Carlos, e transformou “Get Back” (1970), dos Beatles, na pilhéria andrógina “De Leve“: “Sweet Loretta Martinica na cuíca/ muito garotão curtiu/ juram que viram Loretta de cueca/ dizem que nas lá do Rio”.

No progressivo esgotamento da parceria Rita-Roberto, a cantora começou a se alicerçar novamente em repertório alienígena, a começar por uma versão em português de 1987 para o standard norte-americano “Blue Moon” (1934), celebrizado por mancebos galantes como Billy Eckstine, Mel Tormé, Frank Sinatra, Sam Cooke, Elvis Presley, The Platters etc. etc. etc. Em 1988, Rita fez uma mesura a sua antecessora iê-iê-iê Wanderléa e regravou “Sem Endereço” (1964), versão maluquete da “ternurinha” mineira para “Memphis, Tennessee” (1959), do fundador do rock’n’roll Chuck Berry: “Em meados de janeiro uma carta recebi/ numa tarde ensolarada cuja data me esqueci/ nessa carta o remetente se esqueceu de dar o nome/ no envelope só trazia Teresina, Piauí”.

Mas foi só nos 1990 que Rita Lee, segura e consolidada como compositora, retomou a regravação de canções de outros e diversos recantos musicais, como aconteceu em Bossa ‘n Roll nas versões meigas e bossanovistas para standards do jazz (“Cry Me a River“, celebrizado em 1955 por Julie London), do rock clássico (“The Fool on the Hill“, dos Beatles, 1967, e “It’s Only Rock’n’Roll“, dos Rolling Stones, 1974) e do rock new wave (“Every Breath You Take“, The Police, 1983).

Um dos maiores sucessos de Rita no novo século veio do manancial da jovem guarda: ela regravou o rock de maldizer “Erva Venenosa” (1965), versão dos Golden Boys para “Poison Ivy”, hit da aurora do rock lançado em 1959 pela banda The Coasters e regravado pelos Stones em 1963. “Venenosa/ erva venenosa/ é pior do que cobra cascavel/ seu veneno é cruel”, vociferava em ritmo de funk-rock, afirmando que se dirigia aos críticos musicais.

Em 2001, Rita Lee gravou o único álbum-tributo de sua história, Aqui, Ali, em Qualquer Lugar, com versões em inglês e em português do imaginário dos Beatles. Uma brincadeira extraída das pilantragens da jovem guarda, “O Bode e a Cabra“, paródia de “I Want to Hold Your Hand” (1963), foi vetada (por Yoko Ono, segundo Rita) e acabou vindo à tona oito anos depois, em Multishow ao Vivo. Nesse mesmo show e CD, apanhou, do repertório das afilhadas Frenéticas, a mordaz e pré-feminista “Vingativa” (1977): “Você fez de mim uma hipócrita/ você fez de mim uma cínica/ você fez de mim uma mulher sem lar/ uma marvada/ por isso eu sou vingativa, vingativa, vingativa/ tenho até asco de você”.

Não ficou só nisso. Em discos-tributo, Rita regravou jazz estadunidense dos irmãos George e Ira Gershwin (“Blablablá”, versão em português para “Blah Blah Blah”, de 1931), em 2000; samba paulistano de Adoniran Barbosa (“Samba do Arnesto“, de 1953), em 1990; samba baiano de Dorival Caymmi (“O Que É Que a Baiana Tem?“, standard de 1939 com Caymmi e Carmen Miranda), em 1994; e rock baiano de Gilberto Gil (“Punk da Periferia“, 1983, tema paulistano de sabor ritaleeano desde a origem), em 1992.

No feminista Rita Lee de 1993, encarnou João Gilberto cantando a bossa pré-pré-feminista “Maria Ninguém” (1959), de Carlos Lyra, com menções melódicas e literais aos Beatles. Terminou o CD Santa Rita de Sampa com uma versão delicada da toada de despedida “Menino de Braçanã” (1953), do pernambucano Luiz Vieira. Inseriu em Balacobaco (2003) uma versão em inglês para a pueril “Over the Rainbow” (1939), cantada por Judy Garland no filme hollywoodiano O Mágico de Oz.

Numa rara visita à geração 1980 do rock brasileiro, a ex-musa das aberturas de novelas globais participou do Acústico MTV (1997) dos Titãs, cantando com eles o rock antitelevisivo “Televisão” (1985): “A televisão me deixou burro, muito burro demais”. No ano seguinte, fez uma rara incursão pelo rock setentista não-autoral em seu próprio Acústico MTV, cantando “Gita” (1974), clássico de Raul Seixas. Numa rara visita ao pop-rock dos anos 1990, dividiu o pop inédito saborosíssimo “O Amor em Pedaços” com Fernanda Takai, autora do mimo ao lado de John Ulhoa, seu marido e colega na banda Pato Fu.

Numa rara visita ao universo dos ditos “cafonas”, quase sempre evitados pela MPB, lançou a genial “Tudo Vira Bosta” (2003), assinada pelo veteraníssimo Moacyr Franco: “a prostituta e o deputado/ a virtude e o pecado/ esse governo e o passado/ tudo vira bosta/ um dia depois”. Numa rara e deliciosa visita ao punk rock original, transformou “I Wanna Be Sedated” (1978), dos Ramones, no mórbido hard rock “Eu Quero Ser Sedado” (2004), cantado em trio com Roberto e com o filho mais velho, Beto Lee. “24 horas a mais/ eu quero ser sedado/ (…) na camisa de força/ me leva para o show/ vamo, vamo, vamo, estoy mucho loco”, cantaram mãe, pai e filho, entre a anestesia e a autocrueldade.

Rita também enveredou pela chanson francesa, em “Cecy Bom” (1988), versão para “C’Est Si Bon” (1948), nutrida pela versão em francês da atriz e breve cantora brasileira Norma Bengell, em 1959, ou da versão em inglês de outra diva loura, a sueca-americana Ann-Margret, de 1962, ou por ambas; e em “Picola Marina” (1987), que não assumia ser decalcada de “Bubble Gum”, de Serge Gainsbourg, gravada em 1968 por Brigitte Bardot. Em 1990, compensou a surrupiada em Gainsbourg regravando “La Javanaise” (1962), em francês e em bossa nova. Da diva italiana Katyna Ranieri, verteu “Canaglia” (1959) ao português, em 1993.

Ainda feminista

Arrefecida durante o idílio amoroso-sexual com Roberto, a veia ativista pela emancipação feminina voltou redobrada a partir da separação musical do casal. Enquanto ele ensaiava iniciar uma carreira também como cantor (incluindo em seu único CD solo, em 1992, uma única e inédita parceria com Rita, “Eterno Agora“), ela lançou o primeiro álbum assinado solitariamente desde 1979, Rita Lee (1993), sob indícios de que tentava se reaproximar dos tempos de Fruto Proibido, fosse pelo apelo rock’n’roll recobrado, fosse pela volta a temáticas feministas mais explícitas.

Roberto de Carvalho fez participações ocasionais no CD sob o pseudônimo Bob Oak, tocando teclado em “Tataratlantes”, violão na regravação de “Ambição” (1977) e guitarra em “Mon Amor” e “Benzadeusa”, essa última a única parceria da dupla no álbum. “Benzadeusa” começava manhosa e romântica (“a gente se casa por um segundo/ por um século talvez/ até que a vida, a morte, o mundo nos separe outra vez”), mas terminava feroz, reivindicando a feminilidade de Deus: “Sabe lá Deus por onde nadam as sereias/ sabe lá Deus por onde queimam salamandras/ sabe lá Deus por onde dançam odaliscas/ sabe lá Deus por onde voam arcanjas/ sabe lá Deus por onde andam suas deusas/ benzadeusa de Deus”.

A diversificação de parceiros trouxe para perto cúmplices antigos, como Antônio Bivar (“Drag Queen”) e Nelson Motta (“Mon Amour”, com citação à escritora Dorothy Parker), e novos em folha, como Itamar Assumpção (na bossa-funk “Só Vejo Azul“) e, única mulher, Mathilda Kovac (em “Tataratlantes” e “Menopower”).

Comunicando-se com a família de “Bichos Escrotos” (1986) dos Titãs, “Tataratlantes” concebia uma nova espécie animal, “mamutes mutantes”, “da tribo dos seres falantes”, à frente ela, “uma dinossaura/ com aura de iguana/ divina batráquia/ pós-terráquea mundana”.

O rockão “Menopower” excitava a veia feminista em resposta ao crítico musical Luís Antônio Giron, que à época de Flerte Fatal havia decretado a “menopausa criativa” de Rita Lee: “Vestida para matar em pleno climatério/ a velha senhora só vai ficar mocinha no cemitério/ chega de derramamento de sangue/ cinquentona adolescente/ quem disse que útero é mangue/ progesterona urgent/ menopower pra quem foge às regras/ meno male/ quando roça e esfrega”.

A primeira a cantar a menstruação, 13 anos antes, teria de ser a primeira, aos 46 anos, a cantar a menopausa: “Tampax, tabelinha, ora pílulas, ora DIU/ diafragma, camisinha, vão pra mãe que não pariu/ chega do creme de aveia da veia perereca da vizinha/ chega do bom caldo e da sustância da galinha”. Trocadilhos e gracinhas à parte, havia raiva diante da misoginia que nunca cede: “Haja fogacho pra queimar essa bruxa em idade média”.

O grande manifesto feminista de 1993 aconteceu sem parceiros ou parceiras. “Elas querem é poder”, previne a introdução do rock “Todas as Mulheres do Mundo“, uma celebração mais a vilãs de filme de terror que a heroínas de telenovela: “Mães assassinas, filhas de Maria/ polícias femininas, nazijudias/ gatas gatunas, quengas no cio/ esposas drogadas, tadinhas e mal pagas/ toda mulher quer ser amada/ toda mulher quer ser feliz/ toda mulher se faz de coitada/ toda mulher é meio Leila Diniz“. Os tipos femininos exaltados fugiam à norma, entre “santas sinistras, ministras malvadas/ imeldas, evitas, beneditas estupradas”, “paquitas de paquete, xuxas em crise”, “madrastas malditas/ super-homem sapatas”…

Se os compositores homens sempre preferiram homenagear mulheres como objetos de cama, mesa e banho, coube então a Rita Lee explicitar quais mulheres brasileiras estava mulherageando, e por quê: Nossa Senhora Aparecida, as atrizes Dercy Gonçalves, Regina Casé, Norma Bengell, Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Sonia Braga e Bruna Lombardi, as escritoras Clarice Lispector, Patrícia Galvão (Pagu) e Zélia Gattai, as cantoras Carmen Miranda, Elis Regina, Nara Leão, Wanderléa e Lonita Renaux (da extinta Gang 90 & Absurdettes), as jornalistas Marília Gabriela, Lilian Witte Fibe, Danuza Leão, Joyce Pascowitch, Silvia Poppovic e Mônica Figueiredo, as apresentadoras televisivas Hebe Camargo, Claudete Troiano e Ione Borges, a cangaceira Maria Bonita, as artistas plásticas Anita Malfatti e Tomie Ohtake, a pianista Magdalena Tagliaferro, as políticas Luiza Erundina e Rita Camata, a matriarca dos Veloso Dona Canô, a princesa Isabel, as vedetes Virginia Lane, Elvira Pagã e Luz del Fuego, suas irmãs Virginia Lee e Mary Lee, a promoter Liège Monteiro, a mãe de Cazuza Lucinha Araújo, as agregadas familiares Balu e Caru, as compositoras Mathilda Kovac, Dolores Duran e Lucia Turnbull, as vítimas de feminicídio Angela Diniz, Daniela Perez, Cláudia Lessin Rodrigues e Aída Curi, as atletas Hortência e Dora Bria, a fotógrafa Vania Toledo, a cadela Laura Zen, “minha mãe”, a transexual Roberta Close, a produtora teatral Ruth Escobar, a personagem de quadrinhos Rebordosa, a cineasta Tizuka Yamasaki, a chacrete Rita Cadillac… “e eu e eu e eu e eu”.

Trocando em miúdos, não eram as curvas femininas que Rita Lee estava reverenciando, mas a inteligência, a produtividade, a autonomia, a independência e a liberdade que ela também perseguia desde sempre. A mensagem encantou Cássia Eller, que regravou “Todas as Mulheres do Mundo” em 1998.

Os sinais de maturidade começavam a despontar na primeira Rita Lee solo desde os anos 1970, e estariam sempre presentes nos trabalhos a seguir. O palhaço que chorava podia, enfim, assumir a depressão (“estou aqui/ meio blasé/ sabe assim, meio deprê/ estou deprê/ até que não é tão mau/ curtir esse down”, em “Deprê“) e medos vitais ou mortais (“vivo com medo de morrer/ morro de medo de viver”, em “Filho Meu”).

Em 1995, Roberto de Carvalho já estava de volta, mas agora sem ostentar seu nome nas capas. Foi diretor musical e arranjador do show A Marca da Zorra e produtor, guitarrista e co-autor da faixa-título inédita do disco ao vivo (de resto rememorativo) correspondente. Santa Rita de Sampa, em 1997, voltava a exibir uma maioria de faixas compostas pela dupla, entre uma de Rita com Mathilda Kovac (“Jardim de Allah”) e outra de Roberto com Arnaldo Antunes (a bela e existencial “O Que Você Quer“, lançada por Roberto no disco solo de cinco anos antes). A ligação com Roberto de Carvalho se revalidava na bossa pop “Fruta Madura”: “Meu amor por você/ é fruta madura/ eterno enquanto dura/ esse breve viver”.

Prosseguindo na trilha de “Todas as Mulheres do Mundo”, num arranjo à la Carlos Santana, a faixa-título privilegiava a auto-homenagem zombeteira, fundindo a figura de Santa Rita (Lee) com imagens da cidade de São Paulo: “defensora dos frascos e comprimidos”, “protetora dos animais abatidos”, “Joana dark do Lexotan”, “desvairada da Pauliceia”, “mãe menininha da Pompeia”, “marginal de Vila Mariana”, “tia tiete do Tietê”, “sofredora corintiana”, “padroeira de São Gererê”. O feminismo hard havitava a graciosa “Jardim de Allah“: “Serpente ou não serpente/ eis a tentação/ compre coração de Eva por costela de Adão/ (…) Dalila cortou os cabelos e o pau de Sansão”.

Do passado veio um flerte com o punk rock e o rock pesado, o que será uma constante daqui por diante. “Ando Jururu” (1974) ganhou o peso da participação da banda noventista Raimundos. E Rita serviu-se do rock pesadão para declarar explicitamente seu apoio aos direitos homossexuais, em “Obrigado Não“, com direito a beijo masculino no videoclipe e em termos que hoje não seriam bem aceitos: “Casamento gay, além de opção,/ é controle de população”. Aderindo e zombando do panfleto, “Obrigado Não” associou lutas diversas, como legalização das drogas (“diga não às drogas, mas seja educado/ diga não, obrigado”) e do aborto, militância anticomunista (“foice e martelo não vão mais vingar”) e abolição do serviço militar obrigatório.

A profusão de acústicos ao vivo truncou a produção de meio mundo, e também a de Rita Lee. Em seu Acústico MTV, de 1998, as únicas canções inéditas foram “M Te Vê”, para a MTV, e “O Gosto do Azedo”, sobre o vírus HIV, assinada pelo filho mais velho, Beto Lee, agora também integrado à banda dos Lee de Carvalho. O sabor de novidade retrô foi garantido pelas participações vocais femininas de Cássia Eller (em “Luz del Fuego“) e Paula Toller (“Desculpe o Auê“) e das masculinas de Milton Nascimento (em “Mania de Você“) e Titãs (“Papai, Me Empresta o Carro“).

Nas franjas do milênio, o álbum 3001, de 2000, experimentou voar ao futuro e à música eletrônica que mobilizava a juventude daquele momento, na faixa-título, mas associando-a com o retrofuturismo na volta de “2001“, original dos Mutantes e de Tom Zé em 1969. Momentos graciosos foram garantidos pelas coisas de casal bem-boladas de “O Amor em Pedaços” e pelos trocadilhos com jeito de jogo poético de “Entre sem Bater” (“entre/ entre sem bater/ entre sem bater em mim”) e “Cobra” (“não me cobre ser existente/ cobra de mim que sou serpente”).

Entre sem Bater” fala em termos sinuosos sobre violência contra a mulher, duas décadas antes de a Lei Maria da Penha ganhar a MPB. Além do sonoro “entre sem bater em mim”, Rita ironiza a violência musical naturalizada durante séculos até a chegada do terceiro milênio, citando nominalmente a Jou Jou (1939) de Lamartine Babo, a Amélia (1942) de Ataulfo Alves e Mário Lago, a Chiquita Bacana (1949) de João de Barro e Alberto Ribeiro, a Maria Escandalosa (1955) de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, a Conceição (1956) de Jair Amorim e Dunga (e Cauby Peixoto), a Marcianita (1960) de Sergio Murillo, a Rita (1966) e a Carolina (1967) de Chico Buarque, a Lindoneia (1968) de Gil e Caetano e a Kátia Flávia (1987) de Fausto Fawcett e Carlos Laufer – mas também a Luz del Fuego e a Elvira Pagã de Rita Lee.

Sobre cama de guitarras à la Lou Reed, brilha a letra de “O Amor em Pedaços“, cantada com a autora Fernanda Takai, entre shoobidoodaudaus bem Rita & Roberto: “Falei o que não devia/ nosso amor durou só um dia/ ele riu, mas agora chora/ seu amor se acabou nessa hora/ (…) você fala, e eu não mais te escuto/ nosso amor n!ao passou de um minuto/ ele deu um suspiro profundo/ e o amor parou por um segundo”.

No quinhão feminista apareceu também o rockão “Rebeldade“, parceria mãe-filho com Beto Lee, e por “Pagu”, parceria e dueto com Zélia Duncan. A primeira atacou a supremacia masculina no rock desde Roberto Carlos, mas com ambígua sutileza: “Todo mundo é artista/ só ela sola na pausa da hora/ rainha anarquista/ é uma brasa, mora!”. “Pagu” cutucou a misoginia na veia como provavelmente nenhuma outra canção, antes ou depois: “Mexo, remexo na inquisição/ só quem já morreu na fogueira/ sabe o que é ser carvão”. O refrão brincalhão foi levado a sério em 2003 pela estreante Maria Rita, que transformou comédia em vozeirão e fortaleceu laços atávicos de Rita e Elis, instilando jazz e samba-jazz no refrão “nem toda feiticeira é corcunda/ nem toda brasileira é bunda/ meu peito não é de silicone/ sou mais macho que muito home”.

“Balacobaco” (2003), o penúltimo álbum de inéditas

Em 2003, Balacobaco fez sucesso com “Amor & Sexo”, sobre texto do cineasta e jornalista Arnaldo Jabor, mas o álbum tinha momentos mais inspirados. A faixa-título, por exemplo, abordava a luta de classes em pique drum’n’bass e no feminino, pelo ponto de vista da parte menos favorecida: “Minha patroa é estranha/ passa o dia só na cama/ o marido bebe grana/ a mais velha é piranha/ a do meio é patricinha/ o mais novo é mocinha/ meu lugar é na cozinha/ (…) sou escrava independente/ ganho menos que indigente”.

Outras menções à guerra de classes apareceram em “Tudo Vira Bosta“, o protesto niilista assinado pelo mestre “cafona” Moacyr Franco. “O ovo frito, o caviar e o cozido/ a buchada e o cabrito/ o cinzento e o colorido/ a ditadura e o oprimido/ o prometido e não cumprido/ e o programa do partido/ tudo vira bosta”, começava, chegando a “a Mercedes e o fuscão/ a patroa do patrão/ meu salário e meu tesão/ tudo vira bosta” e “Pavarotti, Xororó/ minha eguinha pocotó/ ninguém vai escapar do pó/ sua boca e seu loló/ tudo vira bosta”.

Ímpetos suicidas ressurgem em “A Fulana” (“na beira de um precipício/ eu tava lá/ querendo não querendo pular/ na hora H um anjo chegou/ me deu um beijo e se declarou”), uma resposta pelo ângulo feminino à “Namoradinha de um Amigo Meu” (1966) de Roberto Carlos, após um hiato de 37 anos. A bossa pop “Copacabana Boy” é mais uma declaração de amor ao outro Roberto, mas num pique “o seu amor/ ame-o e deixe-o/ livre para amar“.

Balacobaco incluiu uma canção inédita dos tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, a mimosa “Já Te Falei“, mas a parceria mais eloquente é o rockão “Hino dos Malucos“, de Rita e Roberto com Fernanda Young e Alexandre Machado e versos divertidos e fortes como “nós, os malucos, temos um lema/ tudo na vida é um problema/ mas nunca tente nos acalmar/ pois um maluco pode surtar” ou “malucos, somos iguais na diferença/ e todos temos uma crença/ seguir a lei jamais compensa/ malucos, somos a mola desse mundo/ mas nunca iremos muito a fundo/ nesse dilema tão profundo”. Nove anos mais tarde, “As Loucas” virá complementar o “Hino dos Malucos”, em clave feminista: “Para um jantar, as educadas/ para um noivado, as comportadas/ para um negócio, as poucas/ para uma sacanagem, as loucas”.

Os rocks de maldizer

Em 2009, mais um álbum ao vivo, para o canal Multishow, incorporou apenas três composições inéditas, as muito expressivas “Insônia” (de Rita e Roberto), “Tão” (de Rita sozinha) e “Se Manca” (dela com Beto Lee). A primeira faz bossa pop latina a partir de um padecimento terrível: “Insônia, minha namorada/ insônia de madrugada/ rolando na cama, estou tão cansada/ mas ela me chama/ (…) insônia, my dear/ eu preciso dormir”.

Mais ásperas, “Tão” e “Se Manca” se inspiram nas cantigas de maldizer que vinham sendo lançadas por Caetano Veloso, como “Não Enche” (1997) e “Odeio” (2006). Abandonando os lacinhos cor de rosa que a MPB abraçara com todo furor depois dos anos heróicos, Rita vai na veia no rockão “Tão“: “Tão boazinha/ tão certinha/ tão discreta/ tão correta/ tão modesta/ tão honesta/ tão decente/ tão boa gente/ tão cordata/ tão sensata/ tão, tão, tão, tão, tão/ chata, chata”. É impossível não pensar em Sandy, embora não faltem donzelas e donzelos para vestir a carapuça sob medida.

Se Manca” vai na mesma direção: “Se manca, neném,/ gente mala a gente trata com desdém, se manca,/ não me vem falar de Jesus/ você é pecador”. Os rocks de maldizer de Rita soam como uma mudança pronunciada de atitude, 100% rock’n’roll, 100% “Ovelha Negra”.

“Reza” (2012)

“Concebido e realizado por Rita Lee & Roberto de Carvalho”, aquele que viria a ser o derradeiro álbum de Rita Lee, o inspirado Reza (2012), confirma a tendência aos rocks de maldizer em momentos como a pseudo-devota faixa-título: “Deus me proteja da sua inveja/ Deus me defenda da sua macumba/ (…) Deus me imunize do seu veneno/ (…) Deus me perdoe por querer que Deus me livre e guarde de você”.

A balada “Tô um Lixo“, mais uma vez alegorizando depressão, aponta a flecha do maldizer para a primeira pessoa: “Parei de fumar/ parei de beber/ parei de jogar/ (…) nem banho tomo mais/ trabalho tanto faz/ a cabeça tá um jazz/ eu vivo pelos cantos feito bicho/ eu tô um lixo”. Não ganhou muitos likes, mas o gênio pop estava todo ali, inteiriço. O auto-maldizer se repete em “Vidinha“: “Não uso mais droga/ tomo ansiolítico/ em estado crítico/ na crise de pânico/ propofol orgânico/ vidinha besta/ vidinha furreca/ vidinha chinfrim/ ô, vidinha de merda”. Como transformar uma juventude aventurosa num final de vida pacato? Rita Lee confessou não saber a resposta.

Mais sutil (ou não), “Bagdá” envelopa Osama bin Laden e outras figuras controversas numa celebração ambígua ao outro lado do mundo: “Abu Ghraib Al-Qaeda/ Saddam Hussein pra cá/ aiatolá pra lá/ tabule esfiha kibe húmus vatapá/ eu vou fazer amor/ num tapete voador”. “Tutti Fuditti” parodia o velho Tutti Frutti em tons melancólicos: “Alegro, alegro/ ma non treppo”. E sobra até para a hegemônica Coca-Cola, em “Gororoba“: “Por favor, seu garçom/ me traz um desentupidor de pia/ aquele xarope marrom/ que eu sei que você sabe que vicia/ corrói o dente”.

A acidez só se dilui, em parte, nas menções ao já eterno parceiro (“Rapaz”: “Serei sua escrava/ sua dominatrix/ sua namorada/ sua bitch”), ao espírito hippie (“Bixo Grilo“) e ao país natal, em “Paradise Brasil” (“carnavália, bacanália, tropicália/ muamba, macumba, muamba/ Carmen Miranda”) e “Bamboogiewoogie” (“eu I love you, mas você não me love eu”).

Também a finitude habita Reza de modo marcante. “Estou aqui na matéria/ onde morte é coisa séria/ a eternidade tem seu preço”, começa o rap nordestino carpideiro “Pistis Sophia“. “Quanto tempo ainda tenho no mundo?/ eons?/ milênios?/ milésimos de segundo?”, pergunta “Divagando“. “Vidinha” pensa no fim da vidinha: “Não sei onde estava/ antes de nascer/ não sei pra onde vou/ depois de morrer”. E Rita inseri gracejos suicidas em “Bamboogiewoogie”, “voy a me matar, voy a atirarme de una puente, ay, ay, ay, ay, ay”.

Pra que sofrer com despedida?

Antes do lançamento de Reza, em dezembro de 2011, Rita Lee anunciou sua aposentadoria dos palcos, às vésperas de completar 64 anos. Despediu-se em grande estilo, provocando policiais truculentos (“vocês são legais, vão lá fumar um baseadinho”, disse) no show derradeiro da turnê, em Aracaju, Sergipe, no dia 28 de janeiro de 2012. Terminou o show presa por “desacato e apologia ao crime”, concluindo um ciclo iniciado sob terror com a prisão de 1976 por porte de maconha.

“Fiquei com vontade de viver minha velhice afastada dos palcos, sem dividir isso com o público”, justificou a retirada dos palcos em 2020, em entrevista na Rede Globo. Nessa ocasião, chegou a cogitar um novo disco de inéditas, “se a preguiça deixar”. Além da preguiça, o câncer no pulmão, diagnosticado em 2021, colaborou para que nunca mais houvesse um álbum de Rita Lee. Embora prometesse se afastar dos palcos, mas não da música, ela tampouco apareceu em novas gravações de 2013 até 2021.

Rara em duetos com outros artistas, havia chamado Gal Costa para cantar “Mania de Você” em 1991, no show-disco Bossa ‘n Roll, com citações amorosas a Dorival Caymmi, João Gilberto, Nara Leão e Jorge Ben Jor. No século passado, aceitou participar de duetos em canções de Patricio Bisso, Paulo Ricardo, Golpe de Estado e Velhas Virgens, entre outros. Nos 2000, participou de “No Te Reprimas” (2001), do Menudo, em versão de Edson Cordeiro; “Ojos Rojos”, do argentino Fito Paez; “Tento Entender” (2003), de Otto; “Na Linha e na Lei” (2005), de Dadi Carvalho; “Menininha Tão Novinha“, de Carlinhos Brown, gravada em 2007, mas só lançada em 2022; sua própria “Coisas da Vida” (1976), num álbum dance music de Wanessa Camargo, em 2009; e “PuraBossaNova” (2013), do titã Sérgio Britto.

“Odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando um sertanejo começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito, me deixem desabafar”, provocou Chico César em “Odeio Rodeio” (2005), enquanto Rita fazia a segunda voz numa dupla sertaneja anti-sertaneja.

Uma surpresa aconteceu em 2008, quando os caminhos de Rita Lee e Roberto Carlos se cruzaram, quatro décadas depois de os Mutantes terem sido vetados no programa Jovem Guarda. Roberto convidou Rita para participar de seu tradicional especial natalino, e juntos construíram um pot-pourri que relevou as muitas diferenças e sobressaltou as poucas semelhanças entre o “rei” do romantismo masculino e a “rainha” do rock feminino.

Num bate-bola, Rita cantou “Papai, Me Empresta o Carro” (1979), para Roberto responder com o rock automobilístico “Parei na Contramão” (1963), sua primeira parceria com Erasmo Carlos; ela veio com o cinematográfico “Flagra” (1982), ele foi de “Splish Splash” (1963, “splish splash fez o beijo que eu dei/ nela dentro do cinema”); Rita cantou as manhas de “Mania de Você” (1979), Roberto contra-atacou com o erotismo de “Cama e Mesa” (1981); depois de reafirmar seu pioneirismo, ele cedeu e deu palavra a ela, na romântica “Baila Comigo” (1980); na brincadeira final, Rita evocou o verso “sou a garota papo firme que o Roberto Falou”, de “A Garota do Roberto” (1968), lançada por Waldirene, e ele encerrou o assunto com um verso de “É Papo Firme” (1966), de seu próprio repertório. O encontro só foi comercializado em 2014, no álbum Duetos 2, de Roberto.

Nos últimos dez anos, Rita Lee só surgiu em “Amarelo, Azul e Branco” (2021), não cantando, mas declamando versos de bênção na canção composta pela dupla feminina Anavitória, neo-Cilibrinas do Éden com perfume folk e ultra-romântico. “Ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância/ (…) que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje?/ não sou escrava dele”, pergunta-responde Rita, condensando o que buscou sem trégua desde o início com os Mutantes, e ainda mais profundamente a partir dos anos 1990.

Outras duas das últimas composições conhecidas durante a vida de Rita Lee foram a balada “Lady Girl“, parceria (sobre musa feminina) com Dadi Carvalho, ex-Novos Baianos e ex-A Cor do Som, gravada por ele no álbum Todo Vento (2021), e o rock “contra tudo isto que está aí” lançado em momento inoportuno “Caos”, em Olho Furta-Cor (2022), dos três sobreviventes Titãs.

Uma única canção, lançada também em 2021, conteve a voz, os versos e a melodia da Rita Lee aposentada. “Mude a pergunta/ por que/ mude a pergunta/ por que não/ porque a vida não é isso ou aquilo”, canta “Change“, em francês, sobre batida eletrônica de Gui Boratto. Em inglês, ela complementa: “Imagine se o universo é uma ilusão/ da vida à morte/ como uma chama ardente”.

“No Natal passado houve confusão/ um cometa abalava a população/ (…) e as pessoas precisavam dele, baby/ pra levantar as cabeças/ yeah, mas olhe bem, baby, baby/ não é preciso cometas”, responderia a Rita Lee de “Eclipse do Cometa” (1974), sobre a fogueira breve de sua própria passagem pela Terra.

“Acontece como tem mesmo que acontecer/ mas o outro lado ninguém percebeu/ o cometa deu um golpe, não apareceu”, brincava com passado, presente e futuro em 1974. “Eu gosto das minhas rugas, são cicatrizes da vida. Respeito as minhas pelancas. Já fui loira, já fui ruiva, fui cabelo cor do sol. Agora os meus cabelos têm a cor da lua”, afirmou poeticamente a Rita de 2020, na entrevista à Globo, tentando nos ensinar a envelhecer. Aprendizes ou não, continuaremos sonhando com a vinda do cometa, até o final dos tempos.

(Leia aqui a primeira parte deste texto, e aqui sobre as homenagens musicais que Rita Lee recebeu durante 57 anos de carreira.)

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