O grupo de punk rock uruguaio Trotsky Vengarán, em show na madrugada de domingo em Paraíso do Norte (PR)

As baboseiras do etarismo sempre bateram muito forte no rock’n’roll. Talvez isso se deva à própria reivindicação original do gênero, suas bravatas dos primórdios. “Espero morrer antes de ficar velho”, decretou Pete Townshend em My Generation, há 58 anos, falando do alto de seu vigoroso “windmill” com o braço em torno da guitarra.

Eis que uma banda do Uruguai, em turnê pelo interior do Brasil, se apresenta como um dos atos que têm peito de andar pelo mundo dispostos a dinamitar esse pré-conceito do esgotamento do grisalho. O nome dela é Trotsky Vengarán, e fez um único show na madrugada do domingo, 1° de outubro, numa cidade do Norte do Paraná, Paraíso do Norte, frente a pequena plateia ensandecida no galpão de um inesperado Centro de Tradições Gaúchas.

O punk rock é um eterno menino de bermuda com o pedestal do microfone erguido acima da cabeça com uma só mão na esfera do Trotsky Vengarán. O detalhe é que é um menino de cabelos brancos que celebra há 32 anos no palco (e em 16 discos) a insolência e o poder coletivista do churrasco, do “asado”, de quedar empedo com amigos numa quebrada da estrada. “Yo quiero ver la luna reflejada en el mar/Perder el tiempo con amigos/nada en que pensar“, canta o vocalista da banda em um dos seus hits, Historias sin Terminar.

“Queríamos soar como Ramones e The Clash, porém com a energia do B-52s”, contou o vocalista do Trostky Vengarán, o vocalista Guillermo Peluffo, de 53 anos, sobre os impulsos que definiram o nascimento de sua música lá no remoto ano de 1991. Quando Guillermo entra em cena, é como se tivesse acabado de tomar banho na fonte de Ponce de León. É possível ouvir com clareza o berro de Johnny Rotten em God Save the Queen ou a aceleração sônica de Johnny Ramone em Blitzkrieg Bop. Envolvidos num continuum de descomunal energia, a voz grave e metálica de Guillermo à frente, o arrastão de avanço e recuo de fanfarra do guitarrista Hugo Díaz e do baixista Granito (postados um de cada lado do vocalista), a bola de demolição do baterista Cuico atrás, os uruguaios fazem um show que não fica nem um milímetro atrás de outros atos do punk rock contemporâneo anglófono, como Green Day ou Offspring. Só não estão na rota brasuca dos festivais por causa de outro pré-conceito invisível: o Brasil torce o nariz para a música dos seus vizinhos há décadas. Mesmo com a insistência de alguns notáveis, como Fito Páez e Jorge Drexler, o primeiro impulso tem sido sempre o de rejeição inexplicável ao rock em espanhol, o que sonegou para as grandes plateias totens como espanhol Joaquín Sabina, por exemplo.

Entretanto (e aí é algo que destaca a música do grupo), os Trotsky, de quebra, manuseiam uma poesia altamente refinada, informada.

No traigo flores de papel
Solo estos versos de amor y locura

“El amor y la locura” soa, evidentemente, como um tributo ao conto famoso de Mario Benedetti (1920-2009), um dos mais destacados poetas, escritores e ensaístas uruguaios. Hugo e Guillermo, guitarra e voz do Trotsky, estudaram no mesmo liceu em Montevidéu. Depois, cursaram arquitetura juntos. “Em 1989, comprei uma guitarra sem saber tocar absolutamente nada, para tirar uma onda, e Guillermo me propôs montar uma banda”, disse Hugo Díaz. Dois anos depois, montaram o Trotsky Vengarán. Significa “Trotski vingarão”, mas será que o nome é algum tipo de advertência acerca da fé na revolução permanente? “Não é um nome conclusivo. É condicional, algo que está na esfera do imprevisto. A indeterminação foi deliberada. Pode acontecer”, explica Guillermo durante um churrasco poucas horas antes de seu concerto.

O revolucionário russo Leon Trotski foi assassinado em 1940 com uma picaretada na cabeça por um suposto amigo, Ramón Mercader (que, na verdade, era um agente infiltrado de Josef Stálin, inimigo político de Trotski, em seu círculo de amizades na Cidade do México, onde se exilara fugindo o regime da União Soviética).

“A gente tinha uma excelente professora de História da Arte na faculdade, que nos exigia que estudássemos as circunstâncias sociais e políticas das correntes artísticas. Apaixonados pelo modernismo, chegamos a Trotski e sua figura de primeiro dissidente dos planos de Stalin. Sabendo que estávamos para montar uma banda, um amigo nos desafiou dizendo que uma boa banda punk se deveria chamar Trotsky. Pusemos o verbo conjugado no plural (Vingarão) para que não se destacasse como um tipo de missão. Tudo isso em meio à Perestroika e aquilo que parecia que seria uma revisão de toda a história da União Soviética. Nada disso aconteceu. Porém, o nome já estava ressignificado pra gente. A gente sempre dizia: ‘Quando começaremos com Trotsky?'”, contou Hugo Díaz.

Em plena pandemia, a banda uruguaia fez um disco novo depois de quatro anos de hibernação e saiu pelo mundo excursionando. “Não há nada mais bonito do que a chance de lutar”, diz a letra de Todo está por pasar (2022), o álbum que trouxe os uruguaios ao festival Paraíso do Rock. “Na dobra da esquina, se dão as mãos a morte e a vida”, canta Guillermo, um vocalista interessado em sua plateia e seus dramas trabalhistas, antídoto para a cooptação ideológica direitista que o gênero sofre nos últimos anos. Canções “românticas”, na batida do Trotsky, se transformam em abalos sísmicos, como foi o caso de El Tsunami e El Cielo, na qual declaram: “Uma estrela fugaz me concedeu esse desejo/E não preciso mais/Já não preciso mais”.

“Do rock, te posso dizer que vive e luta, por mais que haja cada vez menos lugares para tocar e proliferem as bandas tributo”, diz Guillermo. As pequenas e insanas rodas de pogo na frente do palco lhe davam razão sobre isso no coração do Brasil, assim como aos versos que reiteravam sua notável independência e desapego dos modismos e do hype. “Nem vocês nem eu nascemos para ganhar/Porém, não importa, trata-se de lutar”, cantou ele, na letra de La vida sigue igual.

Depois de um começo badalado nos anos 1990, o Trotsky Vengarán pensou em “jogar a toalha”, dizem seus integrantes. Mas preferiu resistir e hoje, descolado daquele DNA de exclusões do rock (que, não por acaso, passou a viver seu crepúsculo a partir do declínio do frontman macho frente ao novo mundo afirmativo), reencontra relevância naquilo que preservou: a integridade, a informação musical, as artimanhas de fazer um vibrante show ao vivo nas circunstâncias mais adversas. “Sé que no existe un final feliz/Solo historias sin terminar”, berra Guillermo, cuja fleuma parece nos convidar a imaginar como seria um encontro com Joe Strummer hoje, vivo, já em seus 72 anos.

Los rayos nos salpican
Destellos de claridad
Pelear por el empate
Parece un buen plan

Curioso que, na mesma jornada de rock em que pontificou o Trotsky Vengarán, veio uma outra banda, esta argentina, o Bestia Bebé. Rock forjado na esteira de uma outra tradição, de Libertines ou Strokes, o Bestia Bebé é uma banda de garotos, um carrossel de vitalidade e empáfia. Mas é igualmente bacana ver como enfrenta, com classe e talento, precocemente, a “guetização” do rock, hoje apartado do mainstream, reencontrando as pequenas plateias, endereçando a elas seu recado de rebelião e desobediência civil. No Brasil, escalados exatamente ao lado de dois mestres da cultura fundacional brasileira, Maciel Salú (da zona da mata pernambucana) e Mestre Saúva (das congadas de Sete Lagoas, Minas Gerais), os uruguaios e os argentinos pareceram tranquilamente integrados – a cena musical hoje é totalmente híbrida, distante milhas e milhas da perseguição ao “purismo” que havia nos anos 1970 e 1980. Falta agora apenas derrotar a sanha do coadjuvantismo de ativações publicitárias que norteia as grandes festas da música pop atuais.

A reportagem de FAROFAFÁ viajou ao Paraíso do Rock a convite da organização do festival

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