O cantor, ator e compositor Seu Jorge

Em uma noite de gala na Zona Sul de São Paulo, um show especial para celebrar os 30 anos de uma das mais famosas casas de show da metrópole, o Bourbon Street Music Club, na noite desta quinta-feira, 14, o cantor e compositor carioca Seu Jorge pode se dar ao luxo de montar um repertório mais livre, menos reverente a seu público habitual. Quinze dias após ter sido nomeado, por sua colega Margareth Menezes, ministra de Estado da Cultura, o primeiro Embaixador Brasileiro da Cultura, Seu Jorge parecia celebrar em cena, acima de tudo, seu próprio papel representativo de astro negro que driblou um milhão de adversidades para ser reconhecido no mundo todo como um porta-estandarte da cultura brasileira.

Ao emendar, em sequência, duas canções de grande simbolismo para os movimentos de afirmação afrobrasileiros – Zé do Caroço, de Leci Brandão, de 1978, e declamar Negro Drama, dos Racionais MC’s – Seu Jorge distribuiu aos presentes suas novas credenciais de artista com responsabilidades – a responsabilidade de implodir as narrativas, de denunciar o racismo, de reivindicar cuidados e atenção para o perigo da segregação e apontar os danos da falsa simetria social. É uma reabilitação completa (convém lembrar que Jorge chegou a se aproximar do Cansei, um embrião de golpes enrodilhado em cashmere). Com carreiras consolidadas no cinema, no disco, na TV, enchendo shows seja na praça em São Luís (no Maranhão, onde canta hoje) ou no megafestival The Town, Seu Jorge assumiu um tamanho que talvez tenha surpreendido até a ele mesmo, abarcando a imaginação de artistas de outras esferas, como foi o caso da cantora norte-americana Sharon Jones.

A canção de Leci Brandão no show, rejeitada pela gravadora da artista nos anos 1970 por denunciar um caso de racismo na ditadura, já se tornou um arrecife do repertório de Jorge:

Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira
Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira
Lelelelê lelelelelelelelelê

Negro Drama, de 2002, é mais que um manifesto legado pelos Racionais, é um manual de sobrevivência, um guia para a construção de uma identidade afirmativa, positiva, de orgulho da origem, da luta.

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer

Seu Jorge abriu seu show na cola do soul essencial, com Everybody Loves the Sunshine, um manifesto de Roy Ayers, um dos artistas da música negra dos anos 1970 mais influentes no tempo que se seguiu – uma canção sampleada por Mary J. Blige, Mos Def, Naughy by Nature, entre dezenas de outros. Mergulhou ainda mais fundo nas evocações ao cantar Dindi, de Antonio Carlos Jobim, pedra fundamental da bossa de 1959, feita sob medida para a voz de Sylvinha Telles (1934-1966). Em 2020, Seu Jorge participou, com Daniel Jobim, filho do maestro soberano, de um show-tributo ao compositor, então a familiaridade com o repertório já está consolidada. Ao batizar o show como Soul Jorge, já se esperava que ele optasse por um repertório mais cool, tranquilão (muito embora a versão de Retrato em Branco e Preto, metáfora da divisão racial composta por Jobim com letra de Chico, tivesse sido meio raivosa, punk), mas é difícil segurar muito tempo essa onda.

Parada no ar, havia uma expectativa de suingue que cerca a figura de Seu Jorge, e ele já forjou hits em quantidade suficiente para arregimentar todo tipo de suscetibilidades de plateias. “Está na hora da bagunça”, anunciou o cantor. Assim, foram se sucedendo as canções espalha-comanda-de-garçom: Carolina, Burguesinha, Mina do Condomínio, Sossego (de Tim Maia), entre outras. “O primeiro show aqui, na abertura, há 30 anos, foi de B.B. King, um artista que fez da superação a sua marca, driblando as dificuldades sociais. Achei que Seu Jorge é um artista dessa mesma esfera, com a mesma história de superação”, disse Edgard Radesca, proprietário da casa de shows. De fato, o palco em que Seu Jorge se movia abrigou com reverência, ao vivo, a consciência humanística e racial superior de Ray Charles (em 1996), Nina Simone (1997), Davell Crawford (2007), Cassandra Wilson (2009), Terence Blanchard (2009), Donald Harrison (2022), entre muitos outros. Seu Jorge mostrou-se credenciado para fazer a saudação de uma história desse porte, e não se fez de rogado: tingiu a noite tanto de festa quanto de convocação.

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