Fazia muito frio no Morumbi, tanto frio que Seu Jorge teve de descer as escadas do seu sobrado para dar partida e “esquentar” sua Lamborghini na garagem. Casa no Morumbi e Lamborghini na garagem? “Burguesinho, burguesinho, burguesinho, só no filé…”, era o sarro mais óbvio que todo mundo queria tirar do anfitrião. Mas respeitemos o homem, era o aniversário dele, 41 anos, e o cantor esperava por visitas. Na sala da casa do músico, instrumentos musicais cobriam os móveis – mais instrumentos que móveis.

 

As visitas começaram a chegar por volta das 9h30 da noite de quinta-feira, e não eram visitas comuns. À frente da comitiva de 12 músicos (e agentes, e tour managers), vinha a cantora Sharon Jones, 55 anos, uma das mais celebradas intérpretes do soul e do R&B norte-americanos. Ela e Seu Jorge se conheceram em Paris, no ano passado, durante o festival Rock en Seine. Trocaram figurinhas, tocaram juntos (numa noitada que teve ainda o cantor Raúl Midón) e acabaram revelando admiração mútua. Ao chegar a São Paulo para seu primeiro show aqui, ela quis rever o colega.

“Ela é uma lenda da música preta. E é muito humilde. Porque é assim que é, não? Os bons não precisam se exibir”, dizia Seu Jorge minutos antes, enquanto vistoriava na cozinha o corte de cebolinha para a feijoada que tinha preparado. De prontidão, havia uma caixa térmica cheia de Brahmas e dois bolos, um na sala, outro na cozinha. O maior era um bolo “fake” (Seu Jorge explicou que era um artefato que sua gravadora enviara para festejar o lançamento de seu mais recente disco, Música para Churrasco). O segundo bolo era de verdade.

Quando finalmente chegou ao Morumbi, Sharon Jones sacudia as tranças como uma colegial curiosa. Vestia um moletom com capuz onde se lia, nas costas: Meredith Supernatural Amphitheatre, nome de uma fazenda que abriga um Woodstock australiano, perto de Melbourne.

De cara, Sharon quis saber porque Seu Jorge não iria ao seu show, e ele explicou que tinha de ir a Goiânia, tinha um show já marcado lá. Havia ainda uma timidez mútua. Mas, quando Sharon Jones e os Dap-Kings chegaram à cozinha, todos os receios desmoronaram. O povo caiu na farra. Ao lado da coifa e do fogão, improvisaram uma pista de dança. Seu Jorge tava com o laptop aberto na mesa e dava uma de DJ, programando as músicas da festa. Sharon Jones e suas vocalistas não fizeram forfait e “dublaram” a interpretação de Cheryl Lynne para a canção Encore, que sabiam de cor e salteado. Elas puxavam o povo para a roda e o cara dançava no centro, e todo mundo participava.

Jorge fez questão de mostrar o vídeo no qual ele cantava com o U2 no Morumbi, em abril. Jorge macaqueava sua própria performance em The Model, do Kraftwerk, sob risos gerais. Queriam saber detalhes: quanta gente tinha lá, se Bono tinha ligado pessoalmente para a casa de Jorge. O cantor contava de seu assombro ao descobrir que o U2 mantinha no backstage um estúdio inteiro para pesquisar com sons e gravações demos, e que mais impressionante ainda era ver que eram “apenas quatro caras” sob aquele palco imenso. “Apenas quatro caras, entende?”, repetiu.

Na escrivaninha, uma garrafa de pinga Germana aberta, e todo mundo já parecia devidamente relaxado. Até demais: a banda tinha compromissos logo cedo, e beirava a meia-noite e ninguém tinha pressa. Sharon deveria tocar no domingão, de graça, no Ibirapuera, às 17h30, para cerca de 10 mil pessoas. “A coisa mais importante é que as pessoas dancem. Não importa se é para 10 mil ou para 100 pessoas, se é um lugar onde podem dançar, a gente curte. Se os seguranças no teatro deixarem as pessoas dançarem, então nós estaremos realizados”, disse Binky Griptite, um dos multi-homens dos Dap-Kings (no palco, toca guitarra e atua como MC, mas toca tudo que puserem na frente dele).

Mas trabalho só na hora certa. Bosco Mann (codinome sob o qual se abriga o multi-instrumentista e produtor Gabe Roth, cérebro dos Dap-Kings) pareceu incomodar-se com a pergunta “seu próximo disco vai seguir na mesma direção?”. Que direção?, ironizou, em desafio. Bom, nos discos de Sharon Jones & the Dap-Kings há um sabor de R&B vintage, bem anos 70. “É o som moderno de ontem hoje”, rebateu Bosco. Essa retomada da linha evolutiva tem novo capítulo em setembro, quando entram em estúdio para gravar novo CD.

Foi então que começou a vir uma sonzeira lá da sala, um funk emprenhado por uma batida de samba rock. A trupe começou a migrar de volta, e lá estavam Bosco Mann no baixo, Binky na guitarra, Jorge na bateria, Dave Guy no trompete e a cantora Sandra Williams perguntando a todo mundo que instrumento era aquele que ela tinha nas mãos, um insólito… pandeiro. Sharon Jones assumiu o órgão. Seu Jorge subiu as escadas e voltou com uma caixa de madeira (como aquela de charutos cubanos) cheia de apitos, de caça, indígenas, o diabo. Cada um foi apanhando um daqueles e entrando na roda.

Até ali, os músicos da banda de Seu Jorge só sentiam a temperatura esquentando. “Deixa rolar, hoje não tô na obrigação”, disse Pedro Baby (filho de Pepeu Gomes e Baby do Brasil). Mas qual! Não deu um minuto e lá estava o Pedro no pandeiro, e mais 5 minutos e lá estava ele na guitarra. Duas horas de improvisação. Seu Jorge filmou no celular e depois pôs no laptop, e lá foi todo mundo para a cozinha dançar de novo. Foi um momento raro, jam de verdade, dessas que os músicos não fazem mais porque andam tão apressados e vorazes que não têm nem mais saco nem tempo pra isso.

* Versão ampliada do texto publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, dia 12 de junho, e extraída do blog de Jotabê Medeiros

PUBLICIDADE

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome