O diálogo de Rafa Noleto com a música brasileira e a re/invenção do que existe

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"Cantositor". Capa. Reprodução
"Cantositor". Capa. Reprodução

A invenção das coisas que já existem parece ser, por si só, um ato de subversão: em uma sociedade extremamente imediatista e narcisista, estamos sempre em busca do novo e não ter visto aquilo que todo mundo viu nos transforma imediatamente em seres estranhos, a lógica das redes sociais determinando a vida real.

Isto retoma a teoria do tropicalista Tom Zé, que vaticinava o fim da era do compositor quando lançou “Com Defeito de Fabricação” (Luaka Bop, 1998): segundo o baiano, tudo o que havia para ser inventado em música já havia sido feito e estaríamos vivendo a era do plagiocombinador.

O maranhense Rafa Noleto, sediado em Pelotas/RS, onde dá aulas na Universidade Federal, antropólogo de formação, cantor e compositor, nesta ordem, por vocação, tem a exata noção dessa reinvenção. “Cantositor” (Vitrola Play, 2023), título de seu álbum solo de estreia, que acaba de chegar às plataformas de streaming, brinca com isto. Ele é um cantor que compõe, não um compositor que canta, como é mais costumeiro.

A ideia de invenção, em Rafa Noleto, se inspira no antropólogo inglês Roy Wagner (1938-2018), autor de “A Invenção da Cultura”, conceito aprofundado na faixa-título do trabalho, que encerra o álbum, com uma máquina de escrever percutida enquanto o personagem da letra redige o verbete-chave do disco.

Um dos destaques do disco é “Musa”, homenagem do maranhense a Gal Costa (1945-2022), sua maior influência, artista determinante em sua trajetória, seja nos estudos acadêmicos sobre gênero e sexualidade, seja no fazer musical: foi após ouvir a baiana que aquele menino gay na década de 1980 decidiu ser cantor.

Ao longo das 14 faixas autorais de “Cantositor”, Rafa Noleto (voz e composição) passeia por gêneros como blues, valsa, bolero, bossa nova e samba rock, demonstrando versatilidade e maturidade, acompanhado por Mini Ribeiro (baixo), Gabriel Soares (bateria) e Bruno Chaves (guitarras e sintetizadores), com quem divide a produção do álbum, responsável ainda por sua gravação (no Estúdio Quarto Laranja, em Pelotas), mixagem e masterização. A sonoridade se completa com as participações especiais de Gustavo Ostelbegue (violão em “Mar Profundo”), Gabriel Redü (guitarra e sintetizador em “Lua”) e Gustavo Mustafé (guitarra em “Por Todas As Noites” e “Madrugada”).

Rafa Noleto conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.

O cantositor Rafa Noleto. Retrato: Marcus Negrão. Divulgação
O cantositor Rafa Noleto. Retrato: Marcus Negrão. Divulgação

ENTREVISTA: RAFA NOLETO

ZEMA RIBEIRO: O conceito de teu álbum de estreia parte de algo aprendido na antropologia, teu outro ofício: a invenção de coisas que já existem. Quero que você aprofunde um pouco o assunto.
RAFA NOLETO: Costumo dizer que “Cantositor” é uma palavra que sempre existiu, mas nunca foi inventada. Não fui eu quem criei a palavra em si, nem fui a primeira pessoa a utilizá-la, mas propus a formulação de um conceito em torno dessa palavra e fiz disso uma obra artística. Eu me inspirei no livro “A Invenção da Cultura”, do antropólogo Roy Wagner, em que há um debate sobre como os antropólogos escrevem seus textos etnográficos inventando as culturas. Ou seja, nós antropólogos estudamos questões culturais, sociais e políticas que já existem na vida concreta das pessoas. E o nosso trabalho consiste em reorganizar essas informações em textos nos quais essas culturas são inventadas de um ponto de vista conceitual e antropológico. Isso significa inventar, conceitualmente, coisas que já existem. Os compositores fazem a mesma coisa. Por exemplo, o amor, a esperança e a tristeza são emoções concretas que já fazem parte da vida das pessoas, mas os compositores inventam esses sentimentos de um ponto de vista artístico, dando-lhes uma roupagem estética, colocando novas questões que vão, talvez, redefinir a percepção que as pessoas têm desses sentimentos cotidianos. Busquei fazer a mesma coisa com a palavra “Cantositor”. Trata-se de uma palavra que já existia e eu propus inventá-la, nos termos de Roy Wagner, como um conceito através do qual eu pudesse pensar sobre quem eu sou como cantor e compositor. Meu compromisso é com a formulação ou invenção de um conceito e não com a criação de uma palavra. Então, fiz uma composição musical em que o conceito de “Cantositor” é inventado como se fosse um verbete de dicionário, que é declamado em voz alta por um professor enquanto escreve suas próprias palavras numa máquina de escrever. Quis brincar com o fato de eu ser cantor, compositor, antropólogo e professor, misturando essas identidades todas num personagem parcialmente fictício, uma espécie de alter ego, que está escrevendo um conceito que ele mesmo diz ser transitório.

ZR: A grande homenageada do disco é Gal Costa, para quem você compôs “Musa”, ela também a inspiração que te “ensinou” a cantar. Você conheceu a baiana em 2010. Pode lembrar esse momento e dizer o que ele significou?
RN: Fui um menino gay que cresceu na década de 1980, período de grande popularidade da Gal Costa. E Gal foi minha referência, minha força para viver num mundo homofóbico, meu refúgio de beleza e música. Com ela, e por causa dela, descobri a minha voz, sonhei em cantar. Estudei piano e harmonia para entender musicalmente o seu repertório. Sua voz me conduziu a tudo o que hoje sei – e ainda vou aprender – sobre música brasileira. Quando me formei em Música, fiz um TCC sobre sua obra. Depois Gal esteve presente em minha pesquisa de mestrado em Antropologia – sobre homens gays que são fãs de cantoras da MPB – e, por fim, a frase “Brilham estrelas de São João”, de uma canção famosa de seu repertório [“Festa do Interior” (1981), de Abel Silva e Moraes Moreira (1947-2020)], dá título à minha tese de doutorado em Antropologia na USP. Gal está, literalmente, em toda a minha vida, em cada detalhe da pessoa, do cantor, do compositor e do antropólogo que sou. Eu a conheci em 2010 num show em São Paulo, era o dia do meu aniversário, e eu fui entregar a ela o meu TCC sobre sua obra. Foi uma noite mágica porque Gal me recebeu com tanta generosidade, conversou comigo, recebeu meu TCC e disse que o leria. Depois desse dia, eu a encontrei algumas outras vezes em camarins de shows e sempre fui muito bem recebido. Quando compus “Musa” em 2008, eu ainda não a conhecia pessoalmente e a letra começa com uma frase que diz “Quem sabe um dia, minha musa, ainda te encontro”, fazendo referência aos versos de “Errática” (Caetano Veloso) que dizem: “Quem sabe, talvez um dia, ainda te encontre, minha musa” [a música foi gravada por Gal Costa em “O Sorriso do Gato de Alice” (1993)]. E hoje percebo que, após o seu falecimento, a letra de “Musa” ganhou outro sentido. Lancei vários singles entre 2022 e 2023, mas essa composição é tão especial pra mim, que deixei para lançá-la junto com o álbum completo. Infelizmente, não foi possível lançar “Musa” com Gal ainda fisicamente viva. Mas sei que ela estará sempre viva em tudo o que eu fizer. É como nos versos que escrevi na letra da canção: “Musa, que se desgarra na amplidão, permanecerás intacta, provocarás sempre a minha canção”.

ZR: Além de Gal Costa, que outras referências são fundamentais para você?
RN: Eu sou influenciado por muita gente da MPB. Na minha voz, as influências mais nítidas são Gal, Maria Bethânia, Elis Regina [1945-1982], Joyce Moreno, Marina Lima, Angela Ro Ro e Marisa Monte. Todas essas mulheres foram fundamentais para minha formação musical porque, ao longo dos anos, fui aprendendo a cantar e a compor com elas. Na área mais específica da composição, também sou muito influenciado pelo Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil, Tom Jobim [1927-1994], [Dorival] Caymmi [1914-2008] e muita gente incrível. Mas o Caetano Veloso tem um lugar especial no meu trabalho artístico. Muita coisa do que faço é influenciada por sua obra. No meu álbum, compus canções que dialogam com algumas composições do Caetano. Em “Musa”, faço um paralelo com “Minha voz, minha vida” [1982]. Quando escrevo “guarda a vida em sua voz” estou homenageando o verso “é somente porque eu trago a vida aqui na voz”, que o Caetano tão lindamente escreveu pra Gal cantar. E a própria sonoridade do meu álbum foi, em alguma medida, inspirada nos discos “Cê” [2006], “Zii e Zie” [2009] e “Abraçaço” [2012], uma trilogia de trabalhos do Caetano que considero fantásticos.

ZR: Você é maranhense de nascimento, hoje sediado na Pelotas de Vitor Ramil, um compositor gravado por Gal Costa. Eu queria que você refizesse essa trajetória, da infância na terra natal às salas de aula no sul do país, em uma universidade federal.
RN: Minha vida sempre foi conduzida pela música. Foi a música que me levou de Imperatriz, minha cidade natal no Maranhão, até Belém do Pará, onde dei continuidade aos meus estudos de piano, fiz graduação em Música na UEPA. Quando entrei na graduação, comecei a trabalhar com música profissionalmente. Cantei em todos os teatros de Belém, fiz shows em casas noturnas e participei de alguns festivais de música. E assim fui acumulando uma experiência musical. No final da graduação, eu já estava pesquisando a obra de Gal Costa com interesse no campo dos estudos de gênero e sexualidade e, por isso, fui fazer mestrado em Antropologia na UFPA. Após concluir o mestrado, fui morar em São Paulo, onde cursei Doutorado em Antropologia na USP. Foi lá que conheci diversos amigos que também eram antropólogos e músicos e decidimos formar a Banda Nã. Fiz parte da primeira formação da banda e gravamos juntos um álbum, chamado “Farpa” [2016]. Cantei em praticamente todas as faixas desse álbum e gravei uma faixa solo chamada “Marcado de Lutas”. Logo depois de gravar esse álbum, fui ser professor de Antropologia na UFT e morei no Tocantins por três anos. Mas eu sentia necessidade de voltar a trabalhar academicamente com música e foi assim que vim para Pelotas para ser professor do Bacharelado em Ciências Musicais da UFPEL, curso voltado para uma formação específica de pesquisadores em Música na área de Etnomusicologia, que é sinônimo de Antropologia da Música. Além disso, sou professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPEL. Então, hoje trabalho academicamente com minhas duas áreas de interesse: a música e a antropologia.

ZR: Que vínculos você ainda mantém com o Maranhão e com que frequência visita o estado? E em se tratando de música, o que tem ouvido daqui que te chama atenção?
RN: Eu tenho familiares no Maranhão. Minha mãe e irmãs moram em Imperatriz e, anualmente, eu visito minha cidade natal nas férias. Quando estou lá, procuro ficar integralmente ao lado de minha mãe e familiares de quem sempre sinto muita saudade. Em termos musicais, eu gosto de ouvir muita coisa da música maranhense. Ultimamente tem me chamado a atenção o trabalho de artistas como Afrôs, Marcos Lamy, Paulão, Núbia e Ari Sousa. Acho que é uma nova geração muito criativa que está renovando a música maranhense. Além desses artistas mais novos, eu sempre volto a ouvir os trabalhos da Rita Benneditto e do Zeca Baleiro, especialmente seus primeiros discos, porque são trabalhos fundamentais pra minha formação musical. E nunca é demais destacar que também gosto muito dos trabalhos clássicos do Papete (in memoriam) [1947-2016] e também curto compositores do sul do Maranhão como o Erasmo Dibell, Zeca Tocantins, Henrique Guimarães e tanta gente incrível dessa região do Estado. Minha vida musical se desenvolveu principalmente em Belém, cidade que amo e que tem um movimento musical muito interessante e diverso. Mas também tenho muita vontade de construir parcerias artísticas com músicos maranhenses. Nasci no Maranhão, que é um estado muito rico musicalmente e, por isso, tenho essa vontade de fazer música com artistas que são meus conterrâneos. Aliás, seria incrível poder cantar no Maranhão levando meu repertório autoral. Fica aqui registrado o meu desejo para, quem sabe, se tornar realidade.

ZR: “Quando ele chega” é uma canção de temática assumidamente homoafetiva, com uma citação sutil a “Esse cara”, clássico de Caetano. Vários personagens na história da humanidade eram homossexuais e perseguiam seus pares em nome da moral e dos bons costumes. Você acredita que o outing, o sair do armário, nos ajudaria, enquanto sociedade, a superar a hipocrisia e o moralismo barato reinantes?
RN: Sair do armário é um passo super importante porque, ao assumir uma identidade política, você tem a possibilidade de reivindicar direitos, criminalizar atos discriminatórios, demandar políticas públicas, fomentar a produção de uma memória positiva da produção intelectual, artística e política de toda uma comunidade de pessoas. Mas o passo mais importante na luta por direitos, e na requalificação do respeito à diversidade, é a ocupação dos espaços de poder. Não é possível haver transformações sociais efetivas sem que os cargos políticos, especialmente no âmbito do Legislativo, sejam ocupados por pessoas LGBTQIAPN+, negras, indígenas, periféricas, deficientes etc. As universidades brasileiras e os demais espaços de formação educacional também precisam ser ocupados pela diversidade para que, aos poucos, construamos uma sociedade menos hierárquica, racista, classista, etnocêntrica, sexista e capacitista. Sobre a minha música, ao compor “Quando ele chega” eu estava pensando que precisamos povoar a MPB com mais canções de amor que contemplem a diversidade. E essa música traça um diálogo com “A mulher de cada porto” (Edu Lobo/ Chico Buarque), pois recupera esse ambiente portuário do mar, da praia, do homem que chega e vai ao encontro de uma mulher que o espera. Na minha música, esse homem vai ao encontro de outro homem e, assumidamente, traz em sua boca “outros beijos de outros amores”. E no final de “Quando ele chega” eu dialogo com “Esse Cara” do Caetano Veloso a partir de uma inversão daquilo que é dito nessa música. A personagem da música do Caetano diz “ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”. Enquanto a personagem da minha música diz “ele é um deus e eu sou apenas um homem”. Foi uma maneira que encontrei de dialogar com o Caetano e, ao mesmo tempo, subverter o que é dito na sua canção.

ZR: Quero te ouvir um pouco sobre processo de composição. “Cantositor” foi gravado entre 2021 e 2022, mas traz canções feitas há muito mais tempo. Hoje em dia é cada vez mais raro artistas lançarem álbuns, preferindo formatos como singles e EPs e a gente percebe, ouvindo as faixas de teu disco, a passagem do tempo, com manhãs e noites aparecendo ao longo das canções. Quando você percebeu que tinha um disco pronto nas mãos?
RN: Eu venho compondo essas músicas ao longo dos anos e meu intuito era, desde sempre, reunir um repertório para fazer um álbum todo autoral. Muitas dessas composições trabalham com a ideia de que, às vezes, a passagem do tempo pode trazer mudanças significativas de humores, de perspectivas e expectativas. Compus grande parte das canções com base nessas passagens de tempo que se dão a curto prazo como, por exemplo, a chegada da manhã que busquei retratar em “Delicadamente”, o pôr do sol presente em “Entardecendo” e as madrugadas que surgem em “Lua”, “Noctívago”, “Por todas as noites” e “Madrugada”. São transições de tempo externas que, possivelmente, nos estimulam a pensar em nossas transições internas, emocionais, psicológicas. Além dessa questão das mudanças de tempo, o álbum traz paisagens marítimas e praieiras como em “Mar Profundo” e “Quando ele chega”. Tem também “Cromática”, que é uma faixa que traz toda uma paisagem tropical em tonalidades de verde para falar de como nossos sentidos podem nos induzir a ilusões visuais ou auditivas. “Cantositor” foi um álbum que se construiu com o tempo e o surgimento da pandemia de covid-19 me fez perceber que eu não deveria mais adiar esse projeto. Logo quando a pandemia começou eu pensei que poderia morrer sem ter gravado as minhas composições. Isso me fez entender que viver e realizar sonhos é algo sempre urgente.

ZR: Você se equilibra entre a vida musical e acadêmica. Como está a agenda de divulgação do disco, levando em conta esse aspecto?
RN: Minha vida musical precisa, necessariamente, se encaixar na minha vida acadêmica. Eu sou um professor universitário, um pesquisador com uma alta demanda de trabalho, oriento pesquisas de estudantes de Graduação em Música e de Pós-Graduação em Antropologia, ministro muitas disciplinas e, por isso, tenho uma rotina muito intensa de atividades docentes. Por exemplo, eu gravei as músicas de “Cantositor” em períodos de férias, aos fins de semana, feriados ou datas específicas que não comprometessem, de modo algum, as minhas atividades como professor. E eu penso em divulgar este álbum de uma forma tranquila, escolhendo com muita calma os trabalhos que posso fazer futuramente em decorrência do lançamento do álbum, fazendo shows somente quando e se for possível dentro de minha agenda como professor. Atualmente, estou em processo de ensaio para estrear um show com o repertório do álbum em Pelotas e também para levar o espetáculo até Porto Alegre. Possivelmente, devo ir para outros lugares, mas isso requer muito planejamento para que sejam apresentações pontuais, interessantes para minha trajetória artística e que não interfiram, de nenhuma forma, em minhas atividades docentes. Como bom libriano, prezo por esse equilíbrio.

ZR: Uma curiosidade extra: você tem algum parentesco com o compositor maranhense Norberto Noleto?
RN: Eu costumo dizer que “Noleto” é uma família só. Então, não é impossível que possamos ter algum parentesco, mas creio que não seja uma relação de parentesco próximo. Há muitos “Noletos” espalhados pelo Brasil e é sempre bom encontrar esses “parentes”! Melhor ainda quando são artistas porque o parentesco se expande para o campo da criação.

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Ouça “Cantositor”:

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