Cena de "Pente Quente", HQ sobre mulheres negras às voltas com alisamento dos cabelos, de Ebony Flowers

Há um vídeo muito disseminado no Instagram e outras redes sociais que mostra o ator Denzel Washington explicando das diferenças entre o cinema feito por pretos e por brancos. Denzel, em meio a um grupo de pessoas negras, interpelado por uma mulher negra, diz o seguinte: “Não se traga de cor, mas de cultura. Veja: Martin Scorsese dirigiu Os Bons Companheiros. Steven Spielberg dirigiu A Lista de Schindler. Scorsese certamente faria um bom trabalho dirigindo A Lista de Schindler. Spielberg dirigiria bem também Os Bons Companheiros. Mas há diferenças que são culturais. Eu sei, você sabe, todos nós sabemos, o que é passar um pente quente na cabeça no domingo de manhã e o cheiro que tem. Então: isso é cultural”.

Pois bem: a cartunista e antropóloga norte-americana Ebony Flowers acaba de lançar no Brasil (pela Veneta Editora) um gibi que vai fazer com que todos saibamos precisamente a que Denzel Washington se refere. Pente Quente é, muito provavelmente, um dos mais profundos trabalhos gráficos já publicados sobre o universo cultural da mulher negra – mais precisamente nos Estados Unidos, mas universalmente reconhecível. Partindo do tema do alisamento capilar e dos produtos específicos para o cabelo dos negros, Ebony esboça um grande estudo de diferenças (daquelas às quais Denzel Washington se referia) que caracterizam a vida cotidiana da mulher negra em sua luta de inserção no mundo de regras majoritariamente brancas e do autoreconhecimento de todo um espectro social.

Ebony Flowers é uma pesquisadora e ativista que elaborou a sua dissertação de doutorado, em 2017, em forma de história em quadrinhos, e foi professora em Luanda, Angola. Nas 8 histórias de Pente Quente, ela mistura ensaio autobiográfico de sua infância, na época dos 11 anos de idade, e um bom talento para contos fixando como espinha dorsal de toda a narrativa a questão do cabelo da mulher negra. Ambientados em subúrbios de Baltimore, nos Estados Unidos, na infância da autora, a questão do cabelo acaba sendo um pretexto para se introduzir numa perspectiva mais ampla os problemas da afirmação, dos desafios do trabalho, da moradia, do senso comunitário e familiar das células negras da sociedade, e das tensões e ansiedades vividas em torno desses enfrentamentos. Com grande senso de humor e ternura pela humanidade, diga-se de passagem.

Com um estilo de desenho absolutamente fascinante, único, underground, Ebony enlaça as mulheres negras de sua vida (mães, avós, tias, amigas, irmãs) em uma teia de afetos culturais. Os signos culturais são onipresentes nas festas, nos salões de beleza, no transporte público e até em um funeral. O gibi foi vencedor em alguns dos principais prêmios das artes gráficas nos Estados Unidos, como o Eisner e o Ignatz, além de já ter frequentado as listas de melhores livros do ano em publicações como The Guardian, Washington Post, Elle e outras.

Pente Quente tem também um certo sabor de reportagem, com a autora trazendo um caminhão de referências a produtos químicos, cremes, estratégias e repercussões do mundo dos cabelos esculpidos. Com notável lugar de fala assegurado pela pesquisa e pela seriedade com que trata o tema, Ebony amplia consideravelmente um tema que a ficção geralmente só arranha de passagem – um bom exemplo é a família de negros que gerou uma fortuna a partir de um creme de alisamento que é coprotagonista do filme Um Princípe em Nova York (Coming to America), obra-prima de Eddie Murphy de 1988.

Discípula da cartunista (e também acadêmica) Lynda Barry, Ebony trata, no seu traço, a questão do cabelo e suas múltiplas estratégias de alisamento e transformação como uma metáfora em si, enrodilhando as metamorfoses em um desenho que às vezes se dissolve em rabiscos e em outras se reconstroi em uma tipologia de embelezamento típica de adolescente. É uma obra de radical capacidade de desvelamento de um mundo, mas que funciona tanto como espaço de reconhecimento quanto de esclarecimento (a despeito do termo parecer tão deslocado aqui).

PENTE QUENTE - HQ de Ebony Flowers. Lançamento Editora Veneta (69,90 reais, 180 páginas)
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