Algumas lágrimas, quando se trata de cinema, podem perfeitamente ser premeditadas, enganosas, mas não é possível duvidar das lágrimas de John Travolta na festa do Oscar 2023. Volto a isso hoje porque ontem eu tava com preguiça, mas hoje pensei que, muitas vezes, nossa ênfase vaidosa apenas nos erros, nos deslizes, deselegâncias e nas injustiças da roda-viva do mundo tende a nos afastar de nossa ternura, de nossa humanidade.

John Travolta apareceu na festa do Oscar para anunciar o In Memoriam tradicional da premiação. Mas mal conseguia ler o texto que lhe tinham preparado. Chorava copiosamente. Travolta chorava porque lhe cumpria ali, na ordem tarefeira de Hollywood, anunciar perdas que anunciavam seu próprio crepúsculo, os desaparecimentos daquilo que lhe tinha trazido até a eternidade:  as perdas de suas duas maiores parceiras na carreira, Kirstie Alley e Olivia Newton-John. Para nós, da nossa geração, elas foram dois símbolos da transição de um tempo para outro – a revivalista Olivia dando um banho de glamour no rock’n’roll de nossa infância cultural, e Kirstie projetando as escolhas da maturidade, da maternidade, da compreensão dos ciclos da vida.

“Nessa profissão, nos é dada a rara oportunidade de fazer aquilo que amamos e, se tivermos sorte, com gente que amamos muito. Agora nós vamos celebrar e prestar tributo àqueles que perdemos no último ano, aqueles que dedicaram suas vidas à sua profissão, na frente e atrás das câmeras. Seu trabalho deixou uma única e indelével impressão sobre todos nós. Tocaram nossos corações, nos fizeram sorrir e nós nos tornamos os seus amados, e a quem estaremos sempre esperançosamente ligados”, discursou Travolta, com a voz embargada.

Essa memória cinéfila que se gruda em nós é de fato uma coisa orgânica, viva, constitutiva de nossa personalidade e afetos. Foram-se repentinamente gigantes como Jean-Luc Godard e James Caan, monstros subversivos como Ray Liotta, divas maravilhosas como Raquel Welch e Gina Lolobrigida. Mas o choro de Travolta parecia menos reverente do que íntimo.

Olivia Newton-John, que co-estrelou a escada para o céu de John Travolta, Grease – Nos Tempos da Brilhantina (1978), morreu em agosto de 2022 aos 73 anos, de câncer. Travolta ficou devastado não apenas porque era muito ligado a Olivia, mas porque também perdeu sua mulher, a atriz Kelly Preston, dois anos antes, também do mesmo mal.

Kirstie Alley, que morreu em dezembro, aos 71 anos, também de câncer, disse de Travolta que ele tinha sido sempre o grande amor de sua vida. Ela fez a série de filmes Olha quem está falando (Look Who’s Talking, de 1989), que teve continuações em 1990 e 1993. “Eu o amei, e ainda o amo”, ela revelou, em 2018. “Se eu não tivesse me casado, eu me mandaria e me casaria com ele e eu viveria nas alturas porque ele tem seu próprio avião”, brincou.

Para quem tem a memória da tela, é difícil esquecer o sorriso de scuba diving caribenho de Kirstie Alley e a alegria paroquial de Olivia Newton-John. Ao som de Calling All Angels, tocada ao piano por Lenny Kravitz, assistimos ao tradicional desfile de perdas, que lembra sempre também dos quadros técnicos, dos trabalhadores do cinema, mas sempre nos comove mais pelo que nos traz de pessoal.

Os Oscars ainda mostrariam, de forma quase imperceptível, o abraço suburbano (e redentor) entre Harrison Ford e Ke Huy Quan, outra dupla da formação inapelável de nossa geração – Indiana Jones e o garoto Baixinho (Short Round), de Indiana Jones e O Templo da Perdição, de 1984. Herói de uma única expressão, a do menino atônito, Quan ficou num limbo durante 38 anos até ser resgatado para a redenção do filme acolhido, do filme assimilado.

O Oscar caminhou no território movediço do cinema que só a gente lembra, um cinema transitório, e celebrou a persistência de operários do entretenimento, casos de Brendan Fraser e Michelle Yeoh e mesmo Jamie Lee-Curtis, os protagonistas de alguns filmes que não mudaram a história, nem encetaram revoluções, nem buscaram virar referência, de filmes muitas vezes tolos e inconsequentes. Eles também são parte da História. Estiveram muitos deles por ali. Uma discreta (e quase não notada) Kate Hudson, diva das comédias românticas, teve que corrigir um dos repórteres de celebridades do tapete vermelho lembrando a ele que, ao contrário do que afirmava, ela nunca ganhara um Oscar. Muitos seguem lutando para mudar esse destino, caso de Dwayne Johnson, ou The Rock (da mesma maneira que Brendan Fraser fez). Por isso fez tanto sentido o discurso de Michelle Yeoh, quando ela declarou: “E, garotas: não deixem que ninguém lhes diga que seu tempo passou. Nunca desistam”.

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