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Em sua 29º edição, o Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade faz justiça ao nome na mostra competitiva de filmes brasileiros, a começar pela diversidade geográfica, com sete produções de artistas nascidos ou radicados em São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul. No total, são 117 filmes de 28 países.

Demonstração particular de força e sintonia com o tempo presente é dada pelo paulista Gustavo Vinagre e pelo pernambucano Fábio Leal no documentário Deus Tem Aids, provocativo e contundente desde o nome. O filme acompanha seis pessoas que convivem com o vírus HIV, num quadro heterogêneo formado por artistas, homens gays brancos e negros, uma mulher negra soropositiva desde o nascimento, um médico pediatra e outros.

Com cenas filmadas antes da escalada da covid-19, Deus Tem Aids ganha atualidade desconcertante no contraste entre duas pandemias, a do HIV e a do coronavírus. Como lembra o filme, o HIV existe há 40 anos e ainda não há cura, nem sequer uma vacina. As dúvidas sobre os porquês dessa diferença chocante em relação ao coronavírus ficam no ar, mas expostas a cada momento. O filme trata de homofobia, sorofobia, depressão, sobreposição de discriminações (nas personagens negras, entre elas um homem egresso do meio “falocêntrico” do hip hop), repressão sexual e, sobretudo, o dilema sobre sair ou não do armário quanto à condição sorológica.

O médico Carué Contreiras fala dos estigmas enfrentados por um soropositivo no exercício da profissão: “Não existe médico com HIV fora do armário no Brasil”. Ele afirma que o Brasil contabiliza 12 mil mortes por ano decorrentes do HIV, uma estatística tão silenciosa quanto a de grande parte dos 610 mil mortos pelo coronavírus. Contreiras lembra que cerca de 400 pessoas transexuais e travestis são assassinadas por ano no Brasil. Em sua opinião, existe “um desvio de discurso por parte do movimento LGBT”.

Micaela Cyrino, contaminada na gestação, explica que foi “criada para a morte”. Mas, viva aos 33 anos, faz performances pelas ruas de São Paulo com dizeres como “soropositiva” e “eu não vou morrer”. “O HIV é um problema biológico, mas o racismo me devasta diariamente”, contrapõe a artista. Outros personagens lembram que quase não há artistas fora do armário no país, ou que não existem coletâneas de poetas soropositivos porque não há poetas soropositivos fora do armário. Enquanto isso, o atual presidente da República se refere aos pacientes do coronavírus (e, consequentemente, aos do HIV) como “um país de maricas”.

Dois filmes abordam o lado trans da diversidade sexual. Um é o pungente Deserto Particular, do baiano radicado paranaense Aly Muritiba, filme indicado para representar o Brasil na disputa pelo Oscar. O outro é Madalena, de Madiano Marcheti, em torno do assassinato de uma mulher trans no interior do Mato Grosso do Sul. Envolto numa atmosfera opressiva, com caráter quase de documentário, Madalena se desenrola entre a vastidão dos desertos de soja (aparentemente habitados apenas por emas) e a estreiteza comportamental de agroboys e agrogirls.

Cena de "A Primeira Morte de Joana", de Cristiane Oliveira
Cena do gaúcho “A Primeira Morte de Joana”

Também às temáticas femininas são dedicados dois filmes. O gaúcho A Primeira Morte de Joana, de Cristiane Oliveira, retrata a descoberta da homossexualidade feminina na adolescência, no ambiente repressor do Sul ao mesmo tempo europeizado e provinciano. Até o Fim, de Glenda Nicácio Ary Rosa, mostra três irmãs negras reunidas pela iminência da morte do pai, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Uma das três desenvolveu carreira no cinema e, num lance de ironia do filme, celebra o fato de ter ganho um Oscar.

"Até o Fim", de Glenda Nicácio e Ary Rosa
“Até o Fim”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa

O média-metragem Vênus de Nyke, do pernambucano André Antônio, gira em torno do fetiche por pés do protagonista (interpretado por ele mesmo). A lista se completa pelo extraordinário documentário Máquina do Desejo, de Joaquim Castro e Lucas Weglinski, sobre as seis décadas de história paulistana do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa.

Impressionante pela coleção de imagens em movimento e pela multidão de artistas importantes que passaram pelo Oficina, Máquina do Desejo traz como trunfo a mais o fato de ir muito além das montagens sempre lembradas do grupo, como O Rei da Vela (1967) e Roda Viva (1968). Assim, traz à tona a grandeza do Oficina nos mais diversos momentos históricos do Brasil, inclusive os menos felizes. Por um lado, resgata-se a importância crucial das montagens de Pequenos Burgueses (1963), de Máximo GorkiGalileu Galilei (1968) e Na Selva das Cidades (1969), ambas de Bertolt Brecht. Por outro, emergem do esquecimento momentos agudos como o incêndio que destruiu o teatro em 1966 e culminou na montagem de O Rei da Vela; a construção do Minhocão na porta do espaço; a prisão e tortura de Zé Celso; o desaparecimento cênico/político dos atores Samuel da Costa Henrique Maia; o assédio constante do empresário Silvio Santos ao endereço da Rua Jaceguai, 520; a morte do irmão de Zé Celso, Luís Antônio Martinez Corrêa, em 1987, com 107 facadas, num crime de homofobia…

Máquina do Desejo mostra o exílio e a participação de Zé Celso e do Oficina na redemocratização de Portugal e na libertação de Moçambique do colonialismo português, nos anos 1970; os 17 anos vividos criativamente nos escombros do espaço; a demolição da maloca querida dos artistas por eles mesmos, em 1983, para dar lugar à reconstrução com projeto de Lina Bo Bardi; os sonhos (por enquanto irrealizadas) de erguer o Parque do Bixiga no espaço entre o Oficina e o Vale do Anhangabaú… Oswald de Andrade ecoa na proposição de concentrar todas as revoltas numa só, o que se faz também um belo retrato do próprio Teatro Oficina.

"Máquina do Desejo", de Joaquim Castro e Lucas Weglinski
Cena do paulista “Máquina do Desejo”, sobre o Teatro Oficina

São inúmeros os destaques do festival para além da mostra brasileira competitiva. Benedetta, novo filme do holandês Paul Verhoeven, puxa o comboio das longas-metragens internacionais vindas de Alemanha, Argentina, Camarões, Canadá, Colômbia, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, França, Geórgia, Holanda, Noruega, Panamá, Reino Unido e Romênia. Aos 80 anos recém-completos, Ney Matogrosso será homenageado com o troféu Ícone Mix e uma mostra com os filmes Caramujo-Flor !(988), de Joel Pizzini Depois de Tudo (2008), de Rafael Saar, Olho Nu (2014), de Joel Pizzini, Ralé (2015), de Helena IgnezNey à Flor da Pele (2020), de Felipe Nepomuceno.

Cena de "Depois de Tudo" (2008), com Ney Matogrosso
Cena de “Depois de Tudo” (2008), com Ney Matogrosso

29º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade. Até 21 de novembro. Gratuito. No CineSesc, Centro Cultural São Paulo, Museu da Imagem e do Som, Centro Cultural da Diversidade e online, com apresentação obrigatória de comprovante de vacinação. Programação completa aqui.

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