Madiano, a paisagem da minha infância também foi a soja. Assim como você, cresci na aridez do Centro-Oeste brasileiro, justamente em Dourados e em Bonito, onde seu filme Madalena (2018) foi rodado. Não me espantam, então, as imagens portentosas das plantações que cobrem o cerrado plano, planíssimo, e sem fim. A fotografia do seu longa, porém, atormenta antigos afetos, porque existe uma beleza plástica nas estradas sul-mato-grossenses tomadas pelo agronegócio que, não obstante, nos mata aos poucos, envenenados, sufocados ou, não raramente, na bala. A gente sabe, Madiano, como os grandes produtores lidam com os povos indígenas e com os movimentos sociais pelo direito à terra, por exemplo. A eles, não cabe nem o direto à morte lenta.
Madalena, sua protagonista, também é uma vida matável. Não há afagos para a população LGBTQIA+ em uma das regiões mais fascistas do Brasil. Isso mesmo, fascista. Não sei como pensas, Madiano, mas eu não acho que “conservador” seja uma alcunha justa para quem já exibia adesivos de carro exaltando o antipresidente Jair Bolsonaro muito antes de ele deixar de ser apenas uma piada de mau-gosto, muito antes de colocar em prática seu pendor genocida anunciado ao longo de toda sua vida pública. Acho que você provavelmente concorda comigo. Nesse sentido, não há nada mais preciso, Madiano, do que representar Madalena, transmulher assassinada e largada nas planíssimas lavouras de soja, como uma figura ausente, cujo desaparecimento é encarado ora com indiferença, ora com resignação.
É interessante como você nos faz transitar por esses diferentes graus de compaixão a partir das relações estabelecidas entre Madalena e as três personagens que de fato conduzem a história. Luziane (Natália Mazarin) nutre afeto pela amiga, mas o interesse pelo seu sumiço repentino, pelo menos em um primeiro momento, parece priorizar o pagamento de uma dívida em detrimento de outras justas preocupações. Em um segundo bloco narrativo, observamos como o herdeiro Cristiano (Rafael de Bona), futuro dono da fazenda onde jaz o corpo inerte de Madalena, quer tão somente se desfazer de um contratempo capaz de ameaçar a campanha política da mãe. Bianca (Pamella Yule), também transmulher, vela, sozinha e quase conformada, o que resta dessa vida perdível e não enlutável: um colar de contas e um punhado de suas memórias. Um enterro no rio, já que das terras cultiváveis do Mato Grosso do Sul não pode vir nenhum acolhimento.
Para além dessas personagens individuais brilhantemente interpretadas, Madiano, é muito potente a construção cinematográfica dos tipos sociais. Gostei especialmente de como você retrata a expressão máxima da masculinidade regional, os agroboys, com seus tecnocorpos esculpidos à base de anabolizantes. Mais do que nas manifestações explícitas do sexismo que funda essa entidade antropológica, a síntese da virilidade centro-oestina está muito bem elaborada na cena dos jovens se encabritando com as motos. Quando param com os pinotes para, em roda, acelerarem os motores dos seus falos motociclísticos, parece que estamos diante de uma punhetagem coletiva, visualmente maximizada pelo fluxo orgásmico da fumaça branca.
Também me chamou atenção, Madiano, o fato de nosso agroboy em destaque, Cristiano, morar em um dos condomínios de luxo de Dourados. Quem não é de lá não deve saber muito sobre esse fenômeno imobiliário recente. Nos últimos anos, as classes mais abastadas da cidade têm migrado para os spa residences arborizados, de arquitetura contemporânea e ruas largas. As crianças brincam soltas na segurança que só os muros altos e cercados podem dar à elite douradense. Você deve ter visto, Madiano, é muito muro. Quase tão intermináveis quanto das plantações de soja que abrem esplendorosamente a sua obra. Lá, vive-se a fantasia da bonança, enquanto as Madalenas morrem em campos abertos.
Inclusive, Madalena é um nome que veste bem sua protagonista. Encarna a abjeção absoluta de quem se pode apedrejar. Não sei se nos debates e reflexionamentos críticos sobre seu filme o seu final foi acusado de condescendências, já que não há revolta diante da perda, tampouco resistências aguerridas, que extrapolam o simples desejo – que vemos em Bianca, por exemplo – de continuar existindo. Se foi o caso, já lhe digo que discordo. Acho que Madalena tem o final que é possível em um território de desesperança. A região da Grande Dourados, afinal, é um dos lugares que mais mata indígenas no Brasil. Lá, as crianças das aldeias batem nas nossas portas pedindo pão velho, porque não acreditam merecer comida fresca. É de onde várias pessoas que eu amo precisaram sair para poderem amar mais livremente. É de onde eu saí, Madiano, e, de certa forma, você também. Mas você retornou para salvar madalenas do esquecimento. Já é muito. Se, por um lado, almejamos figurações mais positivas e auspiciosas dos sujeitos espoliados, também não podemos perder de vista a importância da denúncia.
Não sei você, Madiano, mas já escutei uma porção de vezes o apelido carinhoso que se dá ao estado: Mato Grosso do Céu. O cenário planíssimo que nos deixa ver os tapetes de soja também transforma magicamente o horizonte: não há pôr do sol mais bonito. Já notou? Quisera o céu ser o melhor atributo dessa nossa terra. Debaixo dele, o que nos resta?
Madalena, de Madiano Marcheti, foi exibido em diversos festivais e mostras internacionais, como o Festival de Roterdã (Países Baixos) – onde estreou em fevereiro de 2021; Festival de San Sebástian (Espanha); New directors/New Films do MoMA (Estados Unidos); Festival de Istambul (Turquia); Festival de Lima (Peru); Ásia Tapei Film Festival (Taiwan); Biarritz Amérique Latine Festival (França); OFF Camera (Polônia); Festival Internacional de Cinema de Innsbruck (Áustria); e Bogotá International Film Festival (Colômbia). O filme está sendo exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ficará disponível, online, até 4 de novembro. Contou com exibições presenciais no Cine Marquise, no Espaço Itaú da Frei Caneca e no Reserva Cultural, em São Paulo.
A obra é produzida por Clelia Bessa, Marcos Pieri, Sérgio Pedrosa, Beatriz Martins e Joel Pizzini, cineasta que realizou, entre outros filmes, o importante 500 Almas (2004), sobre os indígenas da etnia Guató. Ou seja, alguém que já conhece as agruras que assinalam a região retratada em Madalena. O roteiro, assinado a quatro mãos pelo próprio Marcheti e por Thiago Gallego, Thiago Ortman e Tiago Coelho, contou com a consultoria da escritora transfeminista Helena Vieira. Há uma bela equipe por trás do filme, como não poderia deixar de ser.
Madalena. De Madiano Marcheti. Brasil, 2021, 85 min. Até 4 de novembro, no Mostra Play.