“O primeiro recital foi com quatro anos e toquei um monte de coisas. Era um pot-pourri. Nasci em Boa Esperança, Sul de Minas, e estudei piano primeiro em Varginha. Depois das primeiras aulas, meu professor disse que não tinha nada mais a me ensinar e em 1950 nos mudamos, a família toda, para o Rio. Foram obrigados a se mudar por minha causa. Mas eu não me ligo muito nisso de ‘topo de carreira’ não”, me disse Nelson Freire, o mais destacado pianista brasileiro – morto hoje no Rio aos 77 anos – em uma entrevista em março de 1994, no café do antigo Hotel Ca’D’Oro, em São Paulo.

A cada movimento de Nelson Freire, fosse nas salas de concerto de São Paulo em que o víamos, Sala São Paulo, Sociedade de Cultura Artística ou Auditório Claudio Santoro (de Campos do Jordão), ou em alguma de suas raras entrevistas, essa disposição do pianista em rejeitar o culto à personalidade parecia cada vez mais evidente. Isso foi bem capturado pelo filme de longa-metragem sobre sua trajetória filmado por João Moreira Salles, entre maio de 2000 e agosto de 2001, em sua roda viva pelo Rio, São Paulo, França, Bélgica e Rússia.

O filme de Moreira Salles sobre Nelson Freire dispensou aquela profusão de depoimentos que ajudam a compor um retrato multifacetado – apenas uma exceção foi feita, à pianista argentina Martha Argerich, que manteve com Nelson uma amizade e uma parceria musical de mais de quatro décadas. A vontade de escapulir da bajulação, no entanto, contrastou com o incomensurável talento do pianista, que o tirou da casa em Minas ainda criança e impeliu a percorrer as maiores salas de concertos do planeta, ao lado das mais afamadas orquestras: Filarmônicas de Berlim, Londres, Nova York e Israel, Orquestra Real do Concertgebouw de Amsterdam, Gewandhaus de Leipzig, além das Orquestras de Munique, Paris, Tóquio, São Petersburgo (a Orquestra Mariinsky), Viena, Boston, Filadélfia, Cleveland, Los Angeles, Chicago, Montreal e Osesp.

Em 1952, ficou patente para a família, que tinha vindo de Boa Esperança para a fervilhante Ipanema em plenos anos 1950, que era preciso continuar a expandir as fronteiras do menino, algo que as circunstâncias logo tornariam realidade. Em 1957, Freire foi finalista do 1º Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, interpretando o primeiro movimento do Concerto No.5 “Imperador”, de Beethoven. Como prêmio por sua participação nesse concurso, Nelson ganhou uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar na Europa. “Bom, eu ganhei o 1º Concurso Internacional de Piano do Rio quando tinha 12 anos. Era um concurso do governo brasileiro e eu ganhei uma bolsa com a minha apresentação. Juscelino (Kubitschek) estava na plateia e me cumprimentou pessoalmente, e eu tenho a foto desse dia”, contou, naquela entrevista de 1994.

O pianista mudou-se para a Europa, e mais adiante começou a estudar com o austríaco Bruno Georg Seidlhofer, na Academia de Música de Viena (que também lecionou para outros gigantes, caso de Rudolf Buchbinder). O garoto Freire passou a viver um período de papa-prêmios. Fixou-se em Paris e, em 1964, ganhou o concurso Dinu Lipatti (dedicado ao pianista romeno que foi um mestre em Chopin, como Freire), em Londres. No mesmo ano, ficou em primeiro lugar no prestigioso  Vianna da Motta Music International Competition, em Lisboa (que dividiu com o soviético Vladimir Klainev). Pela gravação dos 24 Prelúdios de Chopin, Freire ganhou um prêmio Edison. A gravadora Philips o incluiu na sua coleção Great Pianists of the 20th Century.

Na década de 1960, destacam-se suas gravações, pela CBS/Sony, de obras como o Carnaval de Schumann, a Sonata Op.5 de Brahms, a Sonata de Liszt e a Sonata Op.58 de Chopin, e concertos como os de Grieg e Tchaikovsky. “Sou contra essa palavra (especialista). A sorte do intérprete é a de passar de Beethoven a Debussy ou a Rachmaninov. O intérprete pode penetrar em mundos diferentes, quase como um ator”, dizia.

Com sua reputação o precedendo, não demorou para o então jovem Freire (o “Horowitz brasileiro”, como alguns já anunciavam, em referência ao lendário pianista russo Vladimir Horowitz) enfrentar o grande teste do público norte-americano. Em 1º de janeiro de 1970, Harold C. Schonberg escrevia no New York Times: “Um dos mais consistentes ganhadores de prêmios musicais da última década tem sido o pianista brasileiro Nelson Freire. Ele tem agora 25 anos de idade e muito se fala dele, e ele foi lançado neste País por um álbum de gravações de concertos. Na noite passada, ele finalmente fez sua primeira aparição em Nova York, tocando o Concerto para Piano nº 4 de Rachmaninoff, acompanhado da New York Philharmonic sob regência de Rafael Frühbeck De Burgos”.

A partir dali, as salas de concerto do mundo todo passaram a acolhê-lo com avidez. Apresentou-se ao lado de Seiji Ozawa, Pierre Boulez, Riccardo Chailly, Charles Dutoit, Eugen Jochum, André Previn, Lorin Maazel, Rudolf Kempe, Rafael Kubelik, David Zinman, Kurt Masur, Valery Gergiev, Yuri Temirkanov e Sir Colin Davis.

Em 1973, gravou um disco com obras de Villa-Lobos para a Teldec, com a Prole do Bebê No.1 (1922) e o Rudepoêma (1921/1926), consolidando sua convicção de consagrar às obras de Villa uma parte significativa de suas performances públicas. “Na minha opinião, ele é o maior compositor latino-americano do século 20. Ele tem coisas geniais, embora reconheça que nem tudo que produziu foi excelente. Villa-Lobos tem altos e baixos. Mas o que produziu de qualidade é fora de série. Ele é um compositor que resta ainda a ser descoberto e é isso que eu quero fazer”, afirmou. Em 2012, gravou o álbum Villa-Lobos & Friends, que incluía, além da obra de Villa, outros brasileiros como Alexandre Levy, Henrique Oswald e Barrozo Netto, Lorenzo Fernández , Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e Claudio Santoro.

Nelson Freire atuou tanto à frente das plateias quanto nos bastidores. Foi responsável por levar para a Europa outros notáveis talentos brasileiros, como o pianista José Carlos Cocarelli. Arrumou tributos e gravações em memória de mestras como Guiomar Novaes, que conheceu e admirou. Reconhecido, foi sagrado doutor honoris causa pelas universidades federais do Rio de Janeiro (2011), Rio Grande do Sul (2014) e Minas Gerais (2016).

Ao longo da vida, Nelson Freire tentou escapar também da pulsão política do mundo, adotando uma diligente neutralidade, mas também nem sempre foi bem-sucedido nesse distanciamento. Ainda criança, um dia tocava piano em casa quando irrompeu em sua sala o general Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), um dos presidentes militares do Brasil, que o tinha ouvido da rua, berrando: “Onde está o pianistazinho? Que gracinha o pianistazinho?”. Fascinado pelo talento do menino, o general doou à família uma linha telefônica, um luxo para a época (essa história ele contou à revista Concerto, ao repórter Irineu Franco Perpétuo).

Em 2017, espantado com a situação das orquestras brasileiras, que enfrentam cortes de músicos e fechamento, Freire se disse triste e desalentado com o “estrangulamento” das instituições. Nunca gostou de colocar seu prestígio em jogo, mas não aguentou o cenário e, de forma inédita, protestou.

Ninguém precisava ser iniciado na música de Franz Liszt ou Frédéric Chopin para reconhecer o magnetismo que dominava uma sala de concertos quando Nelson Freire se sentava ao piano para tocar. O gênio calado se transmutava tocando. Mas, na vida pessoal, gostava mesmo era da invisibilidade e de açaí na tigela. “Deixei Minas com apenas cinco anos, mas Minas não me deixou. São aquelas paisagens, o modo de ser das pessoas, os usos da terra, a culinária, tudo isso me marcou de modo muito profundo”, afirmou.

Uma queda e uma lesão no braço, em 2019, teriam lhe provocado depressão, segundo noticiou a imprensa, embora estivesse em recuperação. Sempre se cita uma frase publicada na revista Time, em 1969, sobre Nelson Freire, para referendar seu lugar no universo do piano: “Um dos maiores do mundo, da sua ou de qualquer outra geração”. Pode nem ter sido publicada, mas é uma grande verdade, é mais um ponto de referência da excelência nacional que perdemos.

Cena do filme “Nelson Freire”, de João Moreira Salles
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