O guitarrista, cantor e compositor norte-americano Tom Verlaine

Morreu em Nova York o cantor, compositor e guitarrista Tom Verlaine, aos 73 anos. Verlaine era líder da banda setentista Television, que emergiu junto com a cena punk de Nova York e foi um dos aríetes da chamada blank generation. Seu disco Marquee Moon, de 1977, está entre os maiores de todos os tempos na lista de 2021 da revista Rolling Stone (é o 107º), e seu estilo influenciou um leque amplo de músicos, de The Edge, do U2, a John Frusciante, do Red Hot Chili Peppers.

Verlaine foi parceiro e amigo de Patti Smith, com quem fez canções como Space Monkey (1978), e veio ao Brasil algumas vezes, a primeira delas para tocar no extinto Tim Festival. Também se apresentou no Sesc Pompeia e num club da Rua Augusta, em show memorável, e de onde saiu para tomar um chope no antigo Bar Genésio. A história de sua época e seu grupo foi contada em 2017 no livro Everything is Combustible: Television, CBGB’s and Five Decades of Rock and Roll: The memoirs of an Alchemical Guitarist, escrito pelo parceiro de Verlaine no Television, Richard Lloyd.

De uma das últimas vezes que se apresentou no Brasil, em 2013, o FAROFAFÁ publicou uma resenha do seu show, que republicamos abaixo:


Contam que o famoso produtor Ahmet Ertegun, fazendo uma audição com o Television para a Atlantic Records, voltou-se para um colega da gravadora e disse: “Eu não posso contratar essa banda. Não é música da Terra”.

Essa música de outra galáxia desembarcou nos Baixos da Augusta na noite de ontem, no Beco 203, para um show único – e põe único nisso.


Tom Verlaine tá a cara do David Carradine em Kung Fu. Um sábio on the road. No lado esquerdo, o guitarrista dele, Jimmy Rip, era a reencarnação de Hellboy (o personagem vivido pelo ator Ron Perlman). O Beco 203 era open bar na noite de ontem, um perigo, e não tinha gente demais, até que era bem pouca gente (bom, os espertos foram, como o grupo gaúcho Cachorro Grande e o mítico vocalista dos Mickey Junkies, Rodrigo Carneiro).

O DJ, antes de o show começar, só tocava punk rock: Johnny Rotten, Ramones, por aí. Quando o Television, que é considerada uma das bandas geradoras do punk, apareceu, na virada das 23h, o equívoco do DJ ficou mais claro: o Television não tem absolutamente nada a ver com o punk rock. Seu som circular e mântrico – amarrado a uma sintaxe única, que está na guitarra erudita de Tom – parece mais conectado a uma tradição dervixe do que a um ato de rebeldia primal.

Verlaine abriu com Prove It, a sétima canção de Marquee Moon, seu disco mais famoso (um dos 10 maiores da História, segundo assegura o Nuno). Conforme a plateia berrava o refrão, Tom – que não é conhecido por mostrar as gengivas com facilidade – sorria timidamente, demonstrando uma vaidade mínima. Como é que esse cara atravessou quatro décadas empunhando solitariamente um manifesto de tanta integridade e beleza?


A versão alfabetizada de Johnny B. GoodeLittle Johnny Jewel (do disco Blow Up, outro clássico) me soava como um redemoinho que ia sugando os ouvidos conforme as duas guitarras se alternavam em um solo concêntrico, um duelo de espadas de laser em uma ponte holográfica.

“Como posso argumentar com o espelho?”, cantava Tom Verlaine em Glory, que quando vai terminando faz a guitarra parecer uma procissão de um milhão de gaitas de fole escocesas. Verlaine e seus colegas fizeram um bom pacto com o tempo, não tingiram os cabelos, não usaram as maravilhas da medicina cosmética. Na bateria, Billy Ficca parece algum velho zagueiro oitentista do São Paulo, Bezerra ou Getúlio. Fred Smith, no baixo, tem pinta de taxista de ponto e vibra com os acertos múltiplos nas improvisações.

Quando o Television tocou Persia, um trem soltando fumaça de incenso começou a atravessar o Oriente dentro do Beco 203, e as harmonias orientalizadas fundiam-se com o legado libertário do rock (mais de meio século libertando moleques da opressão da razão e da autoridade). Foi por esse caminho também que The Doors abriu uma nova picada no gênero, mas com um pé na lama do Mississippi e do blues. Tom Verlaine não teve medo de ir até o Irã.

Estávamos quase na porta para sair antes quando ele começou a afinar a guitarra e eu reconheci imediatamente que era Marquee Moon. Matt abandonou no ato sua pesada valise que continha o Código Penal para voltar à pista, eufórico. Então, ficamos só nós dois ali quase na porta, dançando uma dança que fingia que estávamos no metrô de Nova York, repetindo a frase: “Stand clear of the closing doors, please!”. Endoidamos de dançar.

Entrevistei o Tom Verlaine por email na semana passada. Esqueci de mencionar algumas coisas, o dever profissional me fez buscar informação “útil” para os fins jornalísticos. Esqueci, por exemplo, de contar a ele que quando entrevistei The Edge, do U2, em 1997, este me disse: “Adoro Robert Johnson e Muddy Waters, mas um cara que decididamente me influenciou foi Tom Verlaine, do Television”.

Esqueci também de mencionar (mas isso também não tinha a menor importância) que, quando tinha 17 anos, passando pela subterrânea Galeria Julio Moreira, em Curitiba, parei como de hábito em uma loja de discos que tinha ali na época. Tinha pouca grana no bolso, só dava para um vinil. Comprei Marquee Moon, do Television (essa história eu quase conto no livro Noite Passada Um Disco Salvou Minha Vida, da Geração Editorial).

A entrevista que fiz com Tom Verlaine foi publicada no Caderno 2 do Estadão no sábado. Ele falou de sua nova paixão, a poesia chinesa da Dinastia Tang (618-907). Fiquei intrigado, fui procurar na internet para conhecer algo sobre tal literatura. Achei uma tradução de O Livro Melancólico, de Tao Li. Tao Li é o mesmo T’ao Lei a que Ezra Pound se referia. Achei um poema dele que poderia definir parcialmente a arte de Tom Verlaine:

“Me demoro a olhar meu companheiro único, / o fogo/ Mas seu verão fictício / Não se espelha no meu inverno”.

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