João Gilberto com Tom Jobim na praia em 1959

No princípio era a bossa nova. Em três discos fundadores, entre 1959 e 1961, João Gilberto se afinou com Antonio Carlos Jobim & Vinicius de Moraes (“Chega de Saudade”, “Brigas, Nunca Mais”, “O Amor em Paz”, “Insensatez”),  com Antonio Carlos Jobim & Newton Mendonça (“Desafinado”, “Samba de uma Nota Só”, “Meditação”, “Discussão”), com Antonio Carlos Jobim sozinho (“Só em Teus Braços”, “Corcovado”, “Outra Vez”, “Este Seu Olhar”). Lançou os compositores Carlos Lyra & Ronaldo Bôscoli (“Lobo Bobo”,  “Saudade Fez um Samba”,  “Se É Tarde Me Perdoa”), Carlos Lyra (“Maria Ninguém”), Roberto Menescal & Ronaldo Bôscoli (“O Barquinho”), Carlos Lyra & Vinicius de Moraes (“Você e Eu”,  “Coisa Mais Linda”), até um tal de João Gilberto (“Hô-Bá-Lá-Lá”, “Bim Bom”, “Um Abraço no Bonfá”).

A gênese bossa-novista ocupou cerca de metade do tempo de Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961). Espelhada, a outra metade era feita de reinterpretações em clave nova de repertório mais antigo, dos antecipadores samba-canção Dorival Caymmi (“Rosa Morena”,  “Doralice”, “Samba da Minha Terra”, “Saudade da Bahia”) e Ary Barroso (“Morena Boca de Ouro”, “É Luxo Só”), de Marino Pinto & Zé da Zilda (“Aos Pés da Cruz”), de Geraldo Pereira (“Bolinha de Papel”), de Bide & Marçal (“A Primeira Vez”).  Gravou versão de standard gringo (“Trevo de Quatro Folhas”, ou melhor, “I’m Looking Over a Four Leaf Clover”). Iluminou compositores que a história não faria questão de eternizar, como Jayme Silva & Neuza Teixeira (“O Pato”), Roberto Guimarães (“Amor Certinho”), Lauro Maia (“Trem de Ferro”), Nelcy Noronha (“Presente de Natal”).

Então aconteceu a diáspora. Como todo movimento revolucionário, a bossa nova se estilhaçou em mil pedaços, em mil países. Getz/Gilberto (1964), gravado nos Estados Unidos com Stan Getz e Tom Jobim (e outra sumida da história, Astrud Gilberto), era já um canto de cisne do repertório propriamente bossa-novista. “Desafinado”, “Corcovado”, “Só Danço Samba”, “O Grande Amor” e “Vivo Sonhando” eram de Tom, mas, veja bem, João gravaria moderadamente o parceiro primordial no futuro: “Ela É Carioca” e “Esperança Perdida” (1970), “’Águas de Março” (1973), “Wave (Vou Te Contar)”, “Caminhos Cruzados”, “Triste” e “Zingaro (Retrato em Branco e Preto)” (1977), “Garota de Ipanema” (1986), “Eu Sei Que Vou Te Amar”, “Fotografia”, “Se É por Falta de Adeus” (1994), “Você Vai Ver” (2000), além de regravações constantes do mesmo material lançado no triunvirato original de LPs.

Do resto da trupe bossa-novista, da patota de Copacabana e Ipanema, João se manteve para sempre afastado, pelo menos em gravações. A própria parceria Tom-Vinicius se aposentou jovem demais, em 1964.

O primeiro disco solo de João pós-diáspora, En México, só aconteceria em 1970. O repertório era completamente outro. Misturava o influenciador samba-canção Lúcio Alves (parceiro de Haroldo Barbosa em “De Conversa em Conversa”), o primo gêmeo acreano João Donato (“O Sapo”), mais versão (“Trolley Song”), standards latino-americanos em espanhol (“Farolito”, de Agustín Lara, “Besame Mucho”, de Consuelo Velásquez, “Eclipse”, de Ernesto Lecuona), os bossa-novistas errantes Pingarilho & Marcos Vasconcellos (“Astronauta (Samba da Pergunta)”).

No João Gilberto de 1973, o pai da invenção (re)descobriu a tropicália. Pareou os pais Ary Barroso (“Na Baixa do Sapateiro”), Geraldo Pereira (“Falsa Baiana”), Haroldo Barbosa & Janet de Almeida (“Eu Quero um Samba”) e Herivelto Martins & Roberto Roberti (“Izaura”, dividida lindamente com a então esposa – recém-falecida – Miúcha) com os filhotes baianos Caetano Veloso (“Avarandado”), Gilberto Gil (“Eu Vim da Bahia”) e Carlos Coqueijo & Alcivando Luz (“É Preciso Perdoar”). O projeto se repetiria em Brasil, dividido com Caetano e Gil (e Maria Bethânia, na faixa “No Tabuleiro da Baiana”, de Ary Barroso), que de contemporâneo trazia apenas o crucial “Cordeiro de Nanã”, canto de candomblé d’Os Tincoãs Mateus Aleluia e Dadinho.

O pulso entre a saudade do passado algo remoto e a ampliação do repertório latino-internacional seria a tônica dali por diante. Arranjado e conduzido por Claus Ogerman, o sinfônico Amorosoviajou por Estados Unidos (“’S Wonderful”, George e Ira Gershwin), Itália (“Estate”, de Bruno Martino & Bruno Brighetti) e México (outra vez “Besame Mucho”). O ao vivo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (1980) somou presente (“Menino do Rio”, de Caetano) a passado (“Jou Jou e Balangandãs”, de Lamartine Babo, dividida com a tropicalista paulista Rita Lee), com parada no lado negro e mal iluminado da bossa (“Eu e a Brisa”, de Johnny Alf). Live at the 19th Montreux Jazz Festival (1986) fincou pé no repertório de samba-canção e dos conjuntos vocais a que o próprio João fora filiado, com Haroldo Barbosa & Geraldo Jaques (“Tim Tim por Tim Tim”, “Adeus América”), Wilson Baptista & Marino Pinto (“Preconceito”), Geraldo Pereira & Nelson Trigueiro (“Sem Compromisso”), Janet de Almeida & Haroldo Barbosa (“Pra Que Discutir com Madame”, de mensagem definitiva e avassaladora para bossa-novistas e anti-bossa-novistas).

O excêntrico João de 1991 radicalizou essa tendência, com nada de repertório bossa-nova e muito samba-canção obscuro (“Eu Sambo Mesmo”, “Siga”, “Eu e Meu Coração”) e bolero (“Málaga”, “Una Mujer”). A visita aos precursores prosseguiu com Noel Rosa (“Palpite Infeliz”), Hervielto Martins (“Ave Maria do Morro”) e o Garoto fundador do esquecido projeto visionário chamado Trio Surdina (“Sorriu pra Mim”). Seguiram-se, na mesma levada, mais dois discos ao vivo, Eu Sei Que Vou Te Amar (1994, com as sertanejas “Da Cor do Pecado”, de Bororó, e “Guacyra”, de Hekel Tavares & Joracy Camargo) e o derradeiro In Tokyo(2004, com “Acontece Que Eu Sou Baiano”, de Caymmi), além do semi-abortado João Voz e Violão(2000), dirigido pelo discípulo Caetano Veloso.

Discograficamente, João foi meio Dorival Caymmi, com repertório curto (nem tão curto quanto o do mestre) e sobreposto a si mesmo em circunvoluções sem cansaço. A marca distintiva, que talvez encontre explicação complementar na trajetória de vida acidentada, é a desarmonia (por irônico que pareça) entre o criador do movimento e o movimento em si. Hoje, a bossa nova sai da história, para continuar para sempre na história.

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