O escritor Antonio Prata. Retrato: Renato Parada. Divulgação
O escritor Antonio Prata. Retrato: Renato Parada. Divulgação

A crônica é uma lufada de vento fresco na janela aberta de um ônibus interurbano cujo banheiro alguém empesteou. Mal comparando, o ônibus é a imprensa e o fedor o atual necrogoverno, agora em fase terminal.

Em “Por quem as panelas batem” (Companhia das Letras, 2022, 319 p.), Antonio Prata, colunista dominical do jornal Folha de S. Paulo, reúne 95 crônicas publicadas no periódico, entre junho de 2013 e dezembro de 2021, todas tendo como tema a política, sempre regada por seus habituais bom humor e inteligência.

Por quem as panelas batem. Capa. Reprodução
Por quem as panelas batem. Capa. Reprodução

Prata é um de nossos maiores cronistas em atividade, que diverte-se/nos escrevendo sobre qualquer assunto, de acasalamento de pulgas a atracamento de petroleiros, e engana-se o leitor que pensar em um livro chato ou coisa que o valha por conta da temática escolhida.

Ele mesmo traduz melhor o que tento dizer no início do texto: “O cronista é um cara pago para lubrificar as engrenagens do maquinário noticioso com um pouco de graxa, de despropósito e – vá lá, por que não? – de bobagem”, anota em “Carta a Beatriz”, crônica originalmente publicada no jornal em 13 de março de 2016.

Adiante, no mesmo texto, diz, evocando um dos responsáveis por alçar a crônica à condição de o mais brasileiro dos gêneros literários: “O Rubem Braga atravessou duas ditaduras e seu maior libelo à liberdade não é um texto contra o pau de arara, mas uma carta/crônica ao vizinho que havia reclamado do barulho”.

É com essa graça e leveza típicas de sua prosa que Antonio Prata conduz seus leitores pelos caminhos desesperadores por que andou perdido o Brasil no período da seleta reunida no livro: das marchas suprapartidárias pelos vinte centavos, o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, a ascensão do golpista Michel Temer, a injusta prisão de Lula por obra do juiz parcial (e integralmente corrupto) Sérgio Moro, que pavimentou a vereda para a eleição do neofacista Jair Bolsonaro, de quem se tornaria ministro, e os quatro anos de necropolítica que se seguiram de lá para cá, incluindo a pandemia de covid-19 em meio a tudo isso.

“Estou longe de ser um especialista em política. O que tento, como cronista, é expor minhas sensações, inquietações e suspeitas diante dos fatos, na esperança de que elas encontrem alguma ressonância no leitor”, anota Prata na “Introdução” do volume. E ele quase sempre acerta.

Em 23 de setembro de 2018, em “Imagina eu num pau de arara?”, ele começa: “Caro (e)leitor, cara (e)leitora, se você gosta das minhas crônicas e pretende votar no Bolsonaro, spoiler alert: no caso de uma ditadura como a que já foi mais de uma vez aventada pelo capitão e seu escudeiro Mourão, eu sou o típico sujeito que vai pro pau de arara ou “desaparece”. Como é extremamente difícil digitar de cabeça pra baixo e ter boas sacadas “desaparecido”, talvez seja de bom-tom, enquanto ainda me encontro com os pés cravados no chão e sem balas cravadas na testa, sugerir que mudem de candidato – ou de cronista”.

Não era preciso ser gênio para imaginar o que seria o governo Bolsonaro no que tange ao tratamento dispensado à imprensa, mas alguns insistiram em acreditar que tudo não passava de uma brincadeira ou que o então candidato iria mudar de postura assim que assumisse a presidência caso fosse eleito – o que infelizmente acabou acontecendo, graças ao já citado juiz e à sórdida máquina de disparo de mentiras (fake news é eufemismo), modus operandi de Jair Bolsonaro fazer campanha e governar.

Este é apenas um dos exemplos dos acertos de Antonio Prata, cuja leitura semanal é, para mim, há tempos obrigatória, porém por puro prazer, já que não há uma ditadura da crônica, apesar de um pequeno exército de bons nomes no ofício.

Se o rótulo “crônicas sobre política” pode assustar algum incauto leitor, a graça do texto de Prata reside na ginga com que ele tempera a política com o cotidiano, entre a quarentena em casa, com esposa e filhos, chopes com amigos, o trabalho como roteirista, uma palestra em uma escola pública ocupada em São Paulo e um amplo leque de referências que passa por cinema, música, literatura e teatro, o repertório é amplo, como convém aos bons cronistas.

Outro bom exemplo de sua sagacidade está em “Brasil, sala de roteiro”, em que imagina o gigante pela própria natureza como uma série de tevê ou streaming e tendo os próximos passos (ou capítulos) escritos por roteiristas de ficção. Um exercício ao mesmo tempo singelo e sublime, já que com as trevas nas quais o Brasil mergulhou ao longo do período abordado pelo livro, tornou-se quase impossível para ficcionistas concorrerem com a triste realidade brasileira.

Como o próprio Prata encerra sua “Introdução” do livro, que saiu um pouco antes do último pleito geral, em mais uma acertada premonição sua: “Publico o livro às vésperas da eleição de 2022 para presidente. Mais do que a escolha de um novo mandatário, faremos um plebiscito em que o Brasil decidirá se pretende sepultar de vez sua democracia troncha e mergulhar na barbárie bolsonarista, ou se, elegendo qualquer outro candidato, vai caminhar em direção ao estado de direito. Torço para que, quando este livro vier à luz, o Brasil também esteja dela se aproximando”.

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