André Porciuncula, que está à frente da retirada da cultura bolsonarista do governo, e seu mentor Eduardo Bolsonaro, rezam durante campanha eleitoral

Após 4 anos de foco na intensa guerra cultural para exterminar o “inimigo” (presumivelmente a esquerda, os artistas “mamateiros” do incentivo cultural e a “negrada vitimista” – segundo o principal enunciado de Sérgio Camargo, ex-presidente da Fundação Palmares), a brevíssima era Bolsonaro termina sem deixar nem sequer um projeto concluído. Os dois principais projetos “novos” alardeados pela gestão Mário Frias, por assim dizer, não andaram nem um milímetro.

A cultura bolsonarista teve 6 secretários em 4 anos – a ex-titular Regina Duarte ficou apenas dois meses na função. Mario Frias, que se licenciou do cargo para disputar as eleições, dirigiu a Cultura federal durante dois anos (o maior tempo de permanência de um secretário da área no cargo) e deixou um único projeto, que ninguém sabe em que ponto está, em andamento: o Casinha Games. Um outro programa, batizado como Nossa História, anunciado pomposamente pelo próprio Jair Bolsonaro, tinha fundamentos didáticos (distribuição de leitores digitais para escolas) e era mais uma carona num plano do Ministério da Educação, mas também não andou – o próprio governo só divulgou o nome de uma única cidade do País que teria recebido os e-readers, Ipuaçu, em Santa Catarina (cinco equipamentos Kindle).

Quem coordenou todo o aparelhamento e direcionamento dessa atividade da cultura bolsonarista foi o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, com a supervisão ideológica do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, que morreu em janeiro. Um dos principais ativistas do negacionismo e do extremismo religioso a encabeçar essa guerra cultural dentro da Secretaria Especial de Cultura foi o ex-PM baiano André Porciuncula, braço direito de Mario Frias em sua gestão. Porciuncula retornou à secretaria logo após perder a eleição para deputado federal. Ele é atualmente o número 2 da secretaria, mas hoje, sexta-feira, 4, foi nomeado substituto em eventual ausência do titular, Hélio Ferraz de Oliveira.

A movimentação de fim de mandato tem sua explicação em um esforço para dificultar ao próximo governo reconstituir os passos que foram dados por essa equipe durante os últimos anos. Além de implantar um regime fundado no autoritarismo, no total isolamento em relação à sociedade, na estratégia de assédio permanente no âmbito interno e, não raro, lançando mãos de atos de censura e perseguição ideológica, o politburo de Frias não poupou as redes sociais de diatribes, difamações e agressões verbais. A repercussão dessas ações deverá ser examinadas pela Justiça, assim como o desempenho da secretaria, um dos piores da história da gestão cultural recente.

Somente um levantamento minucioso da situação no patrimônio histórico, nos museus e, particularmente, no audiovisual, poderá conduzir a um diagnóstico preciso do que será necessário reconstruir em uma nova estrutura – o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu refundar o Ministério da Cultura. O nome da cultura do governo eleito para a transição será anunciado nesta segunda-feira, 7 de novembro. A transição na área cultural terá duas frentes antagônicas: a tentativa do governo atual de ocultar diligentemente seus passos nos últimos anos e a busca do governo eleito de recuperar as estruturas desmontadas.

Chegou-se a ventilar, em organismos do governo federal, a renomeação de Mário Frias para conduzir as artimanhas de transição em relação ao governo eleito. Eleito deputado federal pelo PL de São Paulo, apesar de sua gestão pavorosa, Frias conhece melhor o que não foi feito e como não foi feito, e teria maiores condições de preparar a retirada das suas tropas e a futura estratégia de defesa desse time em relação às denúncias que certamente sobrevirão. Essa possibilidade, a reintegração provisória de Frias, não foi confirmada pela reportagem.

O atual Secretário Especial de Cultura, Hélio Ferraz, está indicado por Jair Bolsonaro para ocupar uma vaga de diretor da Ancine (Agência Nacional de Cinema), um local que os bolsonaristas julgam que possa ser um refúgio para a enxurrada de exonerações que seu aparelhamento provocará (o outro refúgio seria a frondosa estrutura de equipamentos culturais de São Paulo, onde o bolsonarismo ganhou o governo com Tarcísio de Freitas). Mas a sabatina de Ferraz está parada no Senado e provavelmente a boquinha na Ancine subiu no telhado – o ex-produtor de TV de Mário Frias não apenas não será sabatinado após a derrota de Bolsonaro como também toda a direção da Ancine deverá ser trocada a partir do ano que vem. A Ancine foi avaliada como a segunda pior gestão pública de uma agência em 2021 pelo Índice Integrado de Governança e Gestão Pública 2021 (IGG21), um indicador do Tribunal de Contas da União (TCU).

Em busca de uma sobrevida, as estruturas que foram mais afáveis ao bolsonarismo nesse período buscam mudar de postura ou então radicalizar nesse fim de mandato. Na Ancine, por exemplo, que chegou a retirar cartazes de clássicos do cinema brasileiro de sua sede em 2019 (além de dados sobre os filmes em seu site), já aparecem diretores que agora reclamam de divulgação do filme nacional em face do cinema estrangeiro. O presidente da Ancine, Alex Braga Muniz, depois de ter se negado a participar de audiências públicas no Congresso para debater questões relativas ao cinema brasileiro durante dois anos, agora milagrosamente ressurgiu para um colóquio na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O problema em querer limpar a biografia agora é que não dá para contar com a desmemória de todo mundo. Por exemplo: os atores e diretores Wagner Moura e Lázaro Ramos provavelmente ainda não esqueceram o que se passou com seus filmes Marighella e Medida Provisória. Isso entre dezenas de outras ações dessa natureza.

Há outros servidores do cartel de extrema direita do governo que estão chutando o balde. É o caso da presidenta do Iphan, Larissa Peixoto Dutra, extremista religiosa, que se dedicou ensandecidamente à campanha de Bolsonaro nas redes sociais e, após a derrota, tuitou: “A voz do povo não é a voz de Deus. Teocracia não é democracia”. Após tal declaração, a situação do patrimônio histórico nacional parece requerer ainda mais urgência.

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1 COMENTÁRIO

  1. Pode acrescentar meu filme “Pixinguinha, Um Homem Carinhoso” como uma das “vitimas” da gestão da Ancine. Não conseguimos receber o FSA depois do filme entregue e lançado. Além da enorme dificuldade em distribui-lo fora do Brasil, devido à péssima imagem internacional do País no exterior. Carlos Moletta, Produtor.

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