O que Godard quis dizer com aquilo?

Há dois dias, essa questão vai e volta na minha cabeça.

O vídeo tem pouco mais de 40 segundos, e a princípio parece apenas um capricho pueril – a exibição de um prazer terreno, o último charuto (como o concedido a um condenado), acompanhado do subtexto de um recado póstumo simplista (“morremos sós, aproveitem o dia”). Mas seria muito pouco para o tamanho do personagem, Jean-Luc Godard, tão empenhado em cunhar mensagens em forma de filmes.

Foi um sobrinho de Godard, o cineasta Paul Grivas (diretor de Filme Catástrofe, de 2018), que postou no domingo (25), na plataforma Vimeo, o derradeiro vídeo em que o célebre diretor franco-suíço aparece olhando para a câmera e fumando um charuto em sua casa. As imagens estão sendo consideradas o último registro audiovisual do artista, feito por ele mesmo. Godard morreu aos 91 anos, no último dia 13, por meio de suicídio assistido, um recurso legalmente admitido no País em que vivia, a Suíça.

No vídeo, Godard elemesmo, de óculos de aros espessos, gira um charuto na boca, entorta a boca e solta grossas baforadas de fumaça. Algumas chegam a insinuar um fade out. Então ele se levanta e se vê seu movimento em direção à câmera (seria celular?), para desligá-la. Parece uma cena muda, mas não é: há som de fundo, e esse som é aquele de uma máquina de projeção de cinema em funcionamento (ou emula aquele som).

Godard parece vigoroso e com grande consciência no vídeo, não parece um homem doente de 91 anos. Aos nove segundos do vídeo, ele bufa algo cujo significado meu francês castiço não captou (“la gruyère boeuf?”). O vídeo veio com um título que insinua uma obra fechada em si: Oh! Revoir (Oh! Rever), que por sua vez sugere um trocadilho com Au revoir! (Adeus).

O charuto e o posterior suicídio de Godard, logo após a gravação do vídeo, me levaram a pensar imediatamente em Sigmund Freud (1856-1939), um notório viciado em havanas. Acometido de um câncer de boca, Freud se deu conta de que não tinha mais muito tempo e a qualidade de sua vida degringolara. Em setembro de 1939, chamou seu médico e amigo Max Schur para ajudá-lo a cometer eutanásia. Schur administrou duas doses de morfina em dois dias. No terceiro dia, Freud estava morto. Parece um desfecho em sintonia com o de Godard, que alegou “múltiplas patologias incapacitantes” para pedir um suicídio assistido na Suíça.

Pode-se inferir outros significados ligados a Freud nesse video de Godard. O tom de blague é evidente e lembra a tentativa de bullying a que um psicanalista amigo de Freud o submeteu. Cansado das interpretações orais e fálicas do papa da psicanálise, o amigo o questionou sobre o charuto que ele sempre ostentava ereto. “Às vezes um charuto é apenas um charuto”, foi a resposta de Freud. Godard o replica divertidamente: às vezes, um charuto é apenas um charuto, não há interpretação possível nessa sessão de fumo.

Mas nada parece irrelevante nesse contexto. Godard prezava como poucos a possibilidade de comunicação. Tanto que fez um documentário chamado Le Dernier Mot (A última palavra, de 1988). O filme trata da execução do jovem filósofo Valentin Feldman, francês de origem russa, comunista e integrante da Resistência, e sua reação diante do pelotão de fuzilamento, em 1942. “Imbecis, é por vocês que eu morro!” bradou Feldman. Quarenta anos mais tarde, os filhos do executor de Feldman e do próprio Feldman se encontram em Paris.

A curiosidade que me causou o video de Godard está, é evidente, na intenção que porventura carregue, mas também no seu minimalismo elegante. Godard não está ali somente como o diretor de sua última imagem, mas também como o ator dela. E ele interpreta o personagem com rigor. O ator Godard foi instruído para mostrar, em sua derradeira atuação, charmosa displicência, impaciência calculada, zero culpa, zero interesse nas opiniões alheias, total crença na potência criadora da expressão artística, mesmo na mais episódica. Eu exagero? Possivelmente.

 

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