Um ano depois do álbum Ultraleve, o rapper paulista Edgar volta à carga com artilharia crítica redobrada, no EP Ultravioleta, com quatro faixas que dizem mais sobre o tempo presente do que discografias inteiras. Sobre uma base de recursos eletrônicos mais um forte batuque de candomblé, as primeiras frases do EP já surgem cortantes, em “A Hierarquia do Pecado“: “Reintegração de posse e reivindicação do dízimo/ os nativos processam na Justiça todo o mal que a religião fez em nome de Cristo/ todo o ouro do Vaticano voltando pro solo africano/ chega de se contentar com o bronze da medalha do judoca/ nas próximas Olimpíadas ou nos Jogos Americanos/ se toca, Europa, devolve tudo que é nosso”.
Daí por diante, o multiartista afrofuturista Edgar só compra brigas de foice, uma atrás da outra. Tudo que precisa ser nomeado é nomeado, ainda na mesma “A Hierarquia do Pecado”, inspirada na “festa com tema escravagista” da revista Vogue em 2019 e contaminada de pressa, mas também de autocrítica: “O homem não muda mesmo com esforços/ o dono é machista, a dona é racista, a estrutura é sempre fascista/ sou só mais um preto que estampa revista/ virando uma máscara pseudo-ativista/ esperar por mudanças me dá preguiça”.
O fundo de candomblé eletrônico (por Pupillo e Alexandre Kassin) persiste em “Bíblia, Boi e Bala”, aberta com um som de berrante, num refrão inequívoco: “Agrupe o seu gado usando o livro sagrado/ a ovelha sempre cala quando o pastor fala/ porque nesse país é só Bíblia, boi e bala”. O eletro-rap chega acompanhado de videoclipe psicodélico em animação, dirigido por Alexandre Nitzsche (também ilustrador das cenas) e Rodrigo de Freitas, a partir de argumento de Edgar. A animação parte de tempos pré-cabralinos e chega até à apocalíptica cena presente, entre imagens de um templo onde se cultua uma grande cabeça de touro, objetos religiosos e revólveres são feitos de ouro e anjos brancos e loiros com distintivos verde-amarelos enforcam e apontam arma para gente de pele amarela. “A palavra indígena fica muito perto da palavra indigente”, lembra o rapper, que já viveu como andarilho, perambulando por grande parte do Brasil (menos sete estados), e costuma iniciar várias músicas com referências aos “nativos” daqui, grupo que ele acredita também integrar. “Minha família, se você for ver, é afro-indígena”, afirma.
Mais direta, a versão apenas musical de “Bíblia, Boi e Bala” começa com um som de berrante, a tanger gados bovinos e ovinos, dos politizados aos “apolíticos”. Aqui, a metralhadora giratória aponta para o agrobusiness e os agrotóxicos, o crente pop que ostenta “seu braço repleto de pulseirinhas de festivais” e uma carta de tarô em que o Louco é caracterizado como o palhaço Bozo vestido com uniforme nazista, portando uma bandeira dos Estados Unidos e arrastando um cidadão não-branco acorrentado pelo pescoço. O touro se metamorfoseia em jogador de futebol de uniforme verde-amarelo, juiz de tribunal, político, soldado armado de metralhadora, marombeiro musculoso seminu. “A culpa religiosa não nos deixará ser salvo”, conclui o rap afro-indígena-futurista.
Sem trégua, a terceira faixa é a pesada “Fake News“: “Quem assume a culpa?/ quem foge da luta?/ quem para na lista da milícia?”. “Justiça vendada e vendida” e fake news “atravessando os muros do WhatsApp/ invadindo os grupos de família”, resta ao cidadão-narrador a constatação de que “todo cidadão carrega no peito um coração de granada”. O refrão expõe a angústia constante de Edgar frente aos avanços tecnológicos (por exemplo, em “Saia da Máquina“, de 2021, “Saúde Mecânica” e “Print“, de 2018): “Caô, caô/ qual mentira é verdade/ caô, caô/ só quem cria que sabe/ caô, caô/ entre memes e views/ fabricar fake news”. O caô se dissolve, por fim, em “kaô kabecilê”, saudação ao orixá Xangô.
Única não-inédita, a última faixa é um dubmix viajandão de “Prêmio Nobel“, lançada em 2021 apenas como single, de retórica totalmente afinada com Ultravioleta: “Em toda favela tem/ um Prêmio Nobel/ que a polícia caça e mata”. “O 7 a 1 desestabilizou a burguesia”, zomba. A medula da denúncia que Edgar desdobra em muitas é sintetizada em “A Hierarquia do Pecado”: “No final é sobre consumir mais/ e separar nós de nós mesmos”.
Ultraleve é ferino, mas apenas aprofunda a veia que Edgar, hoje com 28 anos, persegue desde a adolescência, inicialmente em uma série de produções artesanais independentes em EP (Progeria Atípica, de 2013, Protetora dos Bêbados e Mal Amados, de 2017), álbum (Paralelo 22S, de 2015), álbum audiovisual (o pioneiro O Novíssimo Edgar, em 2017) e muitos singles. O tom alto vem desde sempre, como nas letras e videoclipes de “Enquanto as Freiras de Divertem” (2017), sobre alcoolismo, com participação de Juçara Marçal e Kiko Dinucci, e “Carro de Boy” (2020), com Rico Dalasam, com o refrão “era um carro de boy, era um carro de boy/ que atropelou duas criancinha/ uma era filha da minha vizinha”). Temas delicados e provocadores jamais foram evitados, em raps como “Ainda Tenho a Morte Inteira pela Frente” (2013), “Só Morra se For Deixar Saudade” (2015), “A Sagrada Família” (2017, sobre miséria, violência e um pai alcoólatra), “Black Sheep” (2017, sobre racismo) etc.
A exposição pública só cresceu em 2018, quando Edgar secundou Elza Soares no manifesto “Exu nas Escolas” (de Kiko Dinucci e Edgar), do disco Deus É Mulher, e pela primeira vez lançou um álbum por um selo institucionalizado (Deck). Ultrassom foi produzido por Pupillo, da Nação Zumbi, pernambucano como os pais do eletro-rapper. “Na mídia, aparentemente, Ultrassom é o meu primeiro disco. Falha da pesquisa, né?”, ironiza.
A maior visibilidade não fez baixar o tom, como se pode ouvir em “Print” (“cuidado com o histórico/ print não some”, num clipe que aborda o fanatismo religioso) e “Plástico” (ambas de 2018), o poema “Sem Preguiça pra Fazer a Revolução (Acorda Amor)” (2020, “nos dias de hoje, rimar amor com democracia/ é rimar amor com ficção”), “A Procissão dos Clones”, “A Teologia da Violência”, “O Último Peixe do Mundo” (todas de 2021)… “Todo dia nasce uma favela/ dentro dela um diamante/ todo dia nasce um prédio/ com seu privilégio constante”, dispara nessa última, de Ultraleve, segundo álbum pela Deck, que agora lança Ultravioleta, mantendo a parceria com Pupillo e com a Deck.
Da época do lançamento de Ultraleve é a entrevista telefônica abaixo, inédita até agora, onde Edgar fala sobre vida andarilha, origens e direitos indígenas, sexualidade e a desigualdade social brasileira, que o inflama ao falar sobre indústrias e empreendimentos imobiliários corrosivos. “Esse é um lugar de fala de todo mundo, você nasceu no Brasil, então bem-vindo, a culpa também é sua”, provoca.
Pedro Alexandre Sanches: Qual é sua origem familiar?
Edgar: Meus pais são migrantes nordestinos, de Pernambuco. Vieram para São Paulo há uns 40 anos para tentar a vida aqui, mas na região de Guarulhos.
PAS: Você nasceu em Guarulhos?
E: É, nasci aqui. Nascemos eu e meu irmão aqui, o resto é tudo de Limoeiro e Bom Jardim. Tenho cinco irmãs. No Nordeste, anos 1960, fome, sede, esses bagulhos, minha mãe foi numa cartomante e descobriu que ia aparecer um cara que ia mudar a vida dela. Era o terceiro casamento, com 21 anos ela já estava acho que com quatro filhos. Aí ela conhece meu pai na feira, e a brisa é que meu pai, na primeira vez que vê minha mãe, fala: “Estou indo para São Paulo tentar a vida lá, comprei uma passagem a mais. Você não está a fim de ir?”. “Estou.” E aí se jogam para cá, ela deixa as quatro filhas que já tinha com minha avó, em Bom Jardim. Em São Paulo consegue uma casa, faz o corre, no ano seguinte volta – tudo isso de busão -, vai voltando e vai trazendo um por um. Depois, nos anos 1980, nasce meu irmão, e eu nasço nos anos 1990, em 1993. Aqui, pelas fotos e a ideia que minha mãe dá, era uma grande fazenda, um grande matagal. E foi virando uma invasão, o pessoal foi chegando, mesmo esquema, comprando terreno, sem escritura, o que faz totalmente parte da história do bairro e da minha mãe, dona Maria.
PAS: Como se chama o bairro?
E: Aqui é Santa Emília, Favela do Coqueiro. Hoje já tem avenida, paralelepípedo, passa busão, está supertranquilo, bem legalzinho. A favela virou comunidade. Mas antigamente era uma barreira.
PAS: E sua ligação com música, como nasceu?
E: Desde pequeno, meu pai toca discos, toca vinil. Ele era meio acumulador, tinha bastante coisa. Por exemplo, tinha três carros e não sabia dirigir. Um carro não funcionava, outro era bonito, mas não tinha motor, umas paradas assim. E ele sempre escutou muito som, muito forró, muito forró mesmo. Cresci regado no baião, bastante coco, mourão voltado, cordel, um monte de coisa. E no auge dos anos 1990 meu irmão estava escutando rock, grunge, punk, bastante The Prodigy, estava clubber total. E meu quarto era entre o quarto do meu irmão e a sala do meu pai. Então eram o L e o R, um lado tocando toda a minha ancestralidade nordestina e o outro toda a invasão cultural norte-americana. E bem no meio eu, absorvendo tudo. Minha mãe sempre incentivou desenho, pintura de azulejo. Ela costurava, fazia barra de calça. Meu pai era metalúrgico.
PAS: E o rap?
E: Conheço o hip-hop um pouco mais tarde, graças aos amigos de rua, quando começo a sair. Os meninos do bairro estavam fazendo umas rimas. Eu sempre escrevi, sempre fui do texto. Quando rolavam as rodas de rimas com os moleques, a galera não gostavam muito, não, não batiam muito bem as ideias. Eu não tinha muito flow, não tinha tanta levada, mas já tinha ideias diferenciadas, falando de coisas que não estavam no padrão do contexto dos MCs da época. A galera não gostava porque eu não tinha muito ritmo, “pô, parece uma palestra, cara” (ri). Aí comecei a fazer um curso de percussão no Adamastor, que é um centro cultural de Guarulhos, com Beto Montag, um xilofonista que gravou nuns discos, um grande musicão aí. Me deu uma baita expandida na questão da levada, de entender a voz como um instrumento e a palavra como uma métrica. Isso destravou de uma maneira que não teve volta. Eu tinha uns 17, acho.
PAS: Quando você participou da Nômade Orquestra?
E: Participei depois. Foi engraçado quando Beto Montag me viu fazendo performance na Nômade Orquestra, viu que tinha dado certo a aula, acho. Fui convidado para fazer parte da Nômade Orquestra em 2016, para fazer parte da dupla de performers. Renan Alves assumiu a direção de arte da banda, não queria ficar sendo performer, então me convidaram para ser o performer. Fiz uns dois anos, até 2018.
PAS: Ali você não cantava nem fazia rap?
E: Não, não fazia rap. Eu entrava em uma música num momento específico e falava uma poesia, um trecho. É uma banda instrumental, né? Para não ir contra o conceito da banda, era um momento performance mesmo. Às vezes era uma coisa de corpo, dança, às vezes um figurino, às vezes ficar escondido no palco o show inteiro sem ninguém perceber e no final se revelar.
PAS: Nisso então você já era poeta, performer, dançarino e figurinista. Foi para todas as direções ao mesmo tempo?
E: É, porque é muito intrínseco, muito natural, igual aquelas pessoas que falam dormindo. Elas não controlam a necessidade de se expressar. E foi um resgate também, minha mãe sempre fez eu pintar azulejo quando criança, agora que estou um pouco mais crescido por que não escrever um projeto em que vou pintar 1.189 azulejos e fazer uma parede? Agora tenho uma cabeça um pouco mais artsy para essa brincadeira de criança, sabe? Acho que sempre, porque minha mãe ia me bater às vezes e eu me jogava no chão, virava o olho e fazia um baita teatro. Meu pai quis me colocar no futebol aos 12, se ele tivesse me botado para fazer teatro tinha estourado, porque eu sacava da encenação.
PAS: Mas você considera que a música é sua expressão principal?
E: Sim, a música é um carro-chefe. Sempre fiz as outras artes, esculturas, máscaras, roupas. Em 2014 percebi que eu podia juntar tudo. Falei: porra, por que fazer só a performance na rua, às vezes fazer clown no centro, ônibus, transporte coletivo? Por que no palco tenho que vestir um outro figurino e não continuar com o figurino da performance, ou ir de palhaço? Comecei a experimentar mais isso.
PAS: Em 2014, você já tinha feito seu primeiro álbum?
E: Comecei a gravar ele em 2010, 2011, 2012. Acho que foi lançado em 2013, mas por singles. Depois fiz um compilado com todas e soltei. Aí em 2015 eu faço o que a galera acha que é meu primeiro disco, o Paralelo 22S.
PAS: Por que é o que a galera acha?
E: Porque na mídia, aparentemente, Ultrassom (2018) é o meu primeiro disco. Falha da pesquisa, né? Meu trabalho eu estava fazendo, era fazer as músicas e os discos. Não tinha uma pretensão de gravadora, fonograma, premiação, festivais. Eu não estava nesse circuito, estava num rolê totalmente underground, de expressão. Precisava expressar, tirar esses pontos de vista da minha cabeça, colocar essas críticas e performances em prática. Era uma coisa muito orgânica que estava acontecendo ali.
PAS: Um começo de consolidação foi quando você participou do disco da Elza Soares (Edgar aparece em “Exu nas Escolas“, de Deus É Mulher, 2018)?
E: Sim, isso para o mercado (ri). Para mim foi em 2017, quando fiz meu primeiro disco audiovisual sozinho, sem quase ninguém, só os amigos mesmo ajudando e fazendo sem grana, sem porra nenhuma. Foi uma grande realização. Ali, para mim, eu já teria parado, para você ter uma ideia. Lancei isso em 2017, parei e falei: vou sair fora. Eu estava indo para a Colômbia, não ia nem ficar no Brasil. E aí tudo aconteceu, rolou a participação com a Elza, entrou na gravadora Deck, nossa, da hora, nível dois. Mas para mim eu já tinha contribuído o suficiente com a música brasileira. Quem me conhece tá ligado, valeu?, valeu. A gente já estava na produção do Ultrassom desde 2016, e quando lança, na minha cabeça de artista que sou, fiquei pensando: caralho, estou dando dois passos atrás para dar um passo para frente, porque acabei de lançar dois discos em 2017 que ninguém deu a mínima, ninguém nem viu, e eu também não tenho uma noção de fazer as pessoas verem, não tinha essa pretensão. Mas era um disco que, quando você fazia download, todas as capas dos singles viravam um livrinho e no final do disco no YouTube virava um curta-metragem de 25 minutos que eu fiz, um documentário.
PAS: Foi você que fez tudo?
E: Foi, fiz tudo na loucura. Não fiz a produção musical, mas o curta-metragem, o conceito, o enredo do disco, a ideia de virar quadrinho, todas essas coisas partiram de mim, isso em março de 2017. Em agosto de 2017, eu já estava lançando um outro, que era totalmente audiovisual. Eram sete faixas, todas de clipes acontecendo, lançado também em 2017. Esse estava pronto desde 2016, eu não estava com coragem de lançar porque a galera não ia sacar. Quando lanço, em 2017, já tinha saído o da Luiza Lian, de não sei mais quem. Já rolou uma abertura. Mas eu estava fazendo as coisas e tendo essas sacadas fazia muito tempo. Agora é que estou conseguindo voltar a tomar a rédea do meu trampo e colocar as imagens que quero, os símbolos que quero, em colaboração com Pupillo, uma pessoa maravilhosa de produzir, por dar essas liberdades. Mas, quando lança o Ultrassom e falam que vai ser só um disco, que depois a gente faz os clipes, penso: nossa, eu já estava lançando clipe audiovisual, pensando totalmente em dar um pulo cinematográfico, e agora tem que ser vinil, CD… Demorou, vamos aí.
PAS: O EP de 2017 tem uma música fortíssima, “A Sagrada Família”. Quando você investe nesse tipo de tema, você vai bem fundo…
E: É, essa faixa é um roteiro. Era uma proposta que eu tinha com (o poeta sergipano) Pedro Bomba, de fazer um filme. Mas ficou hipercaro o orçamento para rodar uma coisa assim, e a gente falou: vamos cantar o roteiro. E vira essa música.
PAS: Como você define com os quais temas vai lidar?
E: Ah, como eu disse é muito orgânico. Os temas que quero lidar nunca consigo, não dá ainda para lidar. Acho que as pessoas ainda não estão preparadas. Isso é bem verdade. São assuntos totalmente delicados, as pessoas não querem falar sobre eles. E o problema é exatamente esse, não falar sobre eles.
PAS: O que seria, por exemplo?
E: Ah, um exemplo, tem uma faixa que nem sei se vai existir, já conseguiram fazer virar uma outra coisa, ninguém mais fala sobre o assunto. Mas era sobre abuso infantil. É um tema totalmente delicado, um dia consegui mandar a letra ao vivo, um pedaço, uma galera entendeu, outra galera ficou meio preocupada, outra meio confusa. E todas as pessoas que converso já sofreram abuso ou têm uma pessoa que abusou alguém próximo. São coisas que a gente precisa real expor logo, tocar nessa ferida de fato. Não vai ser agora, tentei fazer, mas ficou forte, ficou polêmico. Por isso eu penso no cinema, ali posso tentar expandir mais esse lado. A música às vezes pede uma leve dose de soro, de anestesia, umas outras coisas. O cinema consegue ser um pouco mais agressivo. E me cai até num breque da vida, que eu vivo: não vou ficar cantando música de amor neste momento porque a pessoas precisam escutar política, críticas, a verdade real, de fato, que acontece. Acaba virando ópio do povo, sabe? Nada contra a galera que faz, parabéns, ela é necessária. Mas é um momento muito delicado, em que as pessoas estão virando massa de manobra muito fácil, muito fácil.
PAS: Ultraleve (2021) tem críticas ao mundo virtual que está tomando nossa vida inteira, como em “Que a Natureza Nos Conduza”, por quê?
E: “Que a Natureza Nos Conduza” fala que o ser humano é a própria cura do câncer ao mesmo tempo que é a célula cancerígena. É um feat com (o rapper indígena guarani) Kunumi MC.
PAS: Por que o começo indígena dessa música?
E: Essa pergunta quase se auto-responde. Porque é o começo. Estou tentando chamar, convidar, elaborar, transformar em plataforma de fato. Eu só falo depois… Sabe aquela grande ideia de que quando uma mulher preta fala o mundo muda? É tipo isso, quando um nativo conta a própria história a história muda. Não queria fazer uma coisa de refrão, como o rap sempre fez com as mulheres, de colocar a mulher no refrão e vamos que vamos. Não, deixa ele falar na língua dele, sem tradução. É sobre essa falta, essa lacuna que se gerou na história, na sensibilidade do povo nativo. É pela ausência.
PAS: Você fala nessa música que no futuro vão existir cemitérios virtuais e vai haver mais gente morta do que viva nas redes sociais. Qual é essa ideia?
E: (Ri.) Isso é resquício do Ultrassom. Esse trecho responde completamente aquela pergunta que você me fez sobre os assuntos delicados. É um tema de uma lista que eu tinha feito comigo mesmo, de temas que eu queria tratar, de pensar em músicas, elaborar sons para isso. Mas são temas tão complexos que às vezes a síntese deles é melhor do que elaborar e fazer a dissecação toda da parada. E aí entra de uma forma. A minha vontade de fazer uma música é como se essa música tivesse uma outra música, como se ela estivesse grávida. Esse disco todo está grávido. Pena que não consegui ir muito a fundo, ia ficar muito ficção, muito treta, só animação ia conseguir exprimir um sentimento assim. Então é mais fácil a sinopse mesmo da ideia, o argumento. Imagina o Orkut, uma galerona que mexia no Orkut, que faleceu. Se você for pensar filosoficamente, são várias pessoas que não existem mais. Aquelas pessoas mudaram. É um acesso a uma lápide de um eu, um eu antigo.
PAS: É uma crítica ao nosso modo atual de vida?
E: Pode ser uma crítica, mas acho que é um devaneio, uma filosofia, um pensamento. Não tem um purismo, eu vou ter minha lápide também nesse cemitério. Então é uma crítica de barriga cheia (ri). É tipo: vocês já pensaram sobre isso? É uma porta aberta.
PAS: O futuro é um dos seus temas centrais, tanto musicalmente quanto nas letras?
E: É e não é, sabe? Tem umas paradas bizarras que acontecem comigo, se a galera soubesse, nossa, se acontecesse com a Anitta (ri)… Uma galera tirou um tarô com o Ultrassom de tantos fatos que aconteceram depois, na sequência do disco. E algumas coisas que produzi no Ultraleve também já estão acontecendo. Acontecem de uma maneira mais sutil, e a coincidência é totalmente estranha. No Ultrassom, em “Líquida“, eu falo “como é que deve estar hoje em dia a tia da merenda?”, aí uma pessoa associou, teve a chacina na escola onde a merendeira salvou 50 crianças colocando elas dentro da escola. Como é que deve estar a tia da merenda hoje em dia? Me perguntam por que escrevi isso, eu sei lá, lembrei da minha tia da merenda. “Go Pro” fala “um ser viciado em filmes de guerra rouba um carro e destrói a cidade”, pronto, na Brasilândia um cara pegou um carro, fez uma transmissão live no Facebook e saiu matando geral nas mecas. Associaram o som. “O Amor Está Preso?” (2018), “se sinta podre por dentro, mas estiloso por fora/ felicidade é o agora que fica preso em uma foto”, um moleque morto na passarela da São Paulo Fashion Week. Putz, teve várias, uma pá. “O futuro é lindo como um arco-íris que se forma na poça de água suja de óleo” (de “Plástico“, 2018), os óleos chegando no litoral brasileiro. “O futuro é uma criança com medo de nós” (idem), aí tem uma foto do Jair Bolsonaro segurando uma criança e a criança chorando, aterrorizada. Uma galera foi fazendo várias sacadas, várias brisas. Nem eu percebia, tinha coisa que até eu ficava assustado. Quando chegar em “Saúde Mecânica” e “Antes Que as Libélulas Entrem em Extinção” fodeu, né? E Ultraleve tem algumas faixas que parece que estão prestes a acontecer, ou que já aconteceram também. Tem umas que parece que escrevi porque a coisa aconteceu, mas a faixa eu escrevi em 2018, ia entrar no Ultrassom. Fico de cara, os amigos dizem “caralho, bichão, você é bruxo mesmo”, não, não é falando sobre o futuro. É que pra mim algumas coisas estão tão óbvias que é brincar com a probabilidade. Às vezes acerta.
PAS: Mais que um vidente, você é uma antena captando o que já está acontecendo?
E: É, eu sou uma antena, longe de profeta, não tem profecia nenhuma. Esse bagulho é de jornalista ruim, na real. O bagulho é uma antena, estou percebendo fatos. É nítido, vou colocar numa música: ó, galera que mora no Coqueiral, quando as sirenes tocarem não adianta correr, não vai dar tempo. Quem entender entendeu, quando estourar a porra da barragem do Coqueiral a galera vai falar que Edgar estava prevendo o futuro de novo. Não, gente, vocês estão buscando, teve alarme, trincou duas vezes, a galera está lá ainda, essa sirene não serve para porra nenhuma. Numa faixa (“Manifesto do Azulejo“, que abre Ultraleve) falo “olha como ela vai/ olha como ela vem/ Maceió uma hora cai/ vira um condomínio da Braskem/ uma nova Dubai/ que vai afundar também”. Em Maceió, a Braskem foi construída na beira da praia, é quase uma usina nuclear, mas as bolhas gigantes de concreto que tem lá são de cloro gasoso. Já vazou essa porra, maior galera bateu carro, desmaiou no meio da rua, foi cena de filme doido a galera contando. E o que aconteceu? Ela faz escavações, é uma espécie de mineradora que está atrás de sal, por isso ela está tão próxima ao mar. Tem Braskem em vários estados do Brasil. Ela vai escavando, um bairro inteiro caiu, desabou, papo de 800 metros de profundidade o buraco, e três quilômetros de distância. O bairro inteiro foi interditado, todas as famílias tiveram que sair. O que a empresa fez? Começou a comprar umas casas desse bairro, meio que comprou o bairro inteiro e falou: deixa cair. Vai cair, tá ligado? E outras vão cair. É sobre isso. Só sabe quem vai para Maceió e tem amigos nesses bairros periféricos – e nem é tão periférico assim, a classe média vai se foder também. É um Brasil que São Paulo não vê nem conhece, está de costas olhando a praia de Santos. O Rio de Janeiro também não se importa com porra nenhuma que não seja o Rio de Janeiro. E aí vai. Não pega sinal em Goiás, Tocantins ficou sem luz, preciso me preocupar com o oxigênio que está faltando em Manaus, alagamento no Acre. São tantas coisas que vão se atropelando, cada notificação é uma pazada de terra em cima de outra notificação, e quem está pedindo ajuda lá acaba sendo soterrado. E a empresa está comprando, vai ser dona, vai fazer igual as empreiteiras fazem em parceria com os agrônomos: dissecam a terra todinha com monocultura e depois vendem para empreiteira levantar prédio e fazer condomínio de luxo, porra. Imagina que loucura isso. Pois bem, está prestes a acontecer, parece ficção científica, só que não.
PAS: Não precisa ser profeta para saber.
E: Não precisa ser profeta para saber disso, tá ligado? Basta você não ficar só pagando passagem para ir para São Miguel dos Milagres curtir o Réveillon do I Believe in Miracles e ficar de costas para o que acontece lá do lado. Vai fodendo, no meio da galera. A galera faz uma porra de um heliponto dentro de um mangue de São Miguel dos Milagres, sem respeito nenhum, licença ambiental nenhuma, a porra da galera é tão milionária que é dona de tudo. Vai pedir licença para quem? Faz um heliponto para receber isso daí, aqueles que a gente aplaude, curte e segue no Instagram, que vão curtir o Réveillon lá também e depois vai fazer texto no Twitter falando “meu Deus, precisamos nos preocupar com Maceió, Maceió está caindo, vamos cancelar a Braskem”. Cancelam a Karol Conka, mas quem vai cancelar Braskem, Carrefour, Extra, Habib’s, que matam uma pá de preto? É terror psicológico, fodeu. Por que ninguém vai lá resolver o que o maluco fez, o sertanejo que chutou a barriga da mulher grávida e depois ficou zoando? Isso também é reality show. Essa galera também é reality show, cadê a galera cancelando? É muito foda, muito delicado. Para mim não existe uma profecia que já está caindo, desmoronando debaixo dos pés de quem nem consegue ou não quer ver, está se importando com o que vai fazer no final de semana. Longe de mim ser a pessoa que vai ser o carrasco de quem quer curtir o final de semana em São Miguel dos Milagres, vai que vai, gera renda turística para aquele lugar. Só que é isso, consciência, uma consciência nacional. Tento saber o que acontece no meu país de fato, não só o que acontece dentro do meu quarto, da minha cabeça, do meu celular.
PAS: Fala-se do futuro distópico da ficção, mas na verdade você está sempre falando sobre o presente distópico.
E: Exatamente isso, o futuro distópico de São Paulo é a realidade de Dourados, nas aldeias Jaguapiru e Bororó, onde o alcoolismo e o índice de suicídio dos indígenas Terena, Guarani Kaiowá e Guarani estão sendo gigantescos, está bagunçado. Tem cem igrejas Deus É Amor porque teve uma catequização dos evangélicos de lá ensinando os próprios nativos a fazer o bagulho agora, e cada família com mais de cinco pessoas decidiu abrir sua própria igreja. Geral no alcoolismo, as crianças se matando, dentro de uma plantação de soja de cem quilômetros, um deserto de soja, eles tentando fazer uma agrofloresta lá dentro. Vai para a cidade, já está em situação de vulnerabilidade, de mendigo, em situação de rua, não consegue trampo, não tem um chinelo. O crack está chegando na aldeia. Crianças nativas são vendidas pelos pais para os caminhoneiros na estrada por 500 contos. Sentado numa cadeira escrevendo num notebook é lógico que isso vai ser realidade distópica. Em Copacabana ou rodeado de boi, debaixo de um pé de manga, lógico que vai ser. Sempre vai ser, você não saiu da sua realidade. Então puta que pariu, Brasil é o rei da ficção científica. (Alejandro) Jodorowski passou um carnaval aqui para poder fazer A Montanha Sagrada (1973), afe. Em São Paulo qual é a realidade? Seus prédios, delivery, motoboy, carro no rodízio, no máximo PCC queimou busão. Fica chato, por isso parece uma distopia, não tem nem empatia, não consegue gerar empatia andando pelas ruas de São Paulo. Já está acostumado com uma pá de mendigo pedindo dinheiro, no terceiro que você dá dinheiro você fala: não, o quarto já sou eu pedindo. Isso vai te deixando duro, cara.
PAS: Que papel Bolsonaro faz neste nosso presente distópico?
E: Nada a ver esse cara, mano. Não. Antes de eu descobrir que ele estava 30 anos já dormindo onde ele ficava naquele vampirismo dele, eu estava fazendo o que eu estava fazendo, a milhão. E quando eu morava em Dourados, nesse corre que eu estava da aldeia, já tinha outdoor dele lá em 2017. Você talvez não acredite, mas vi umas 25 pessoas, a maioria mulheres, cagando numa sacola e levando a sacola para jogar na porra do outdoor com a cara dele. Em Dourados, a cidade mais conservadora que eu já vi.
PAS: Você foi se apresentar lá?
E: Não, mano, fui lá porque eu era meio andarilho. Fiquei em situação de rua uma cota, por alcoolismo, depois melhorei e continuei meio andarilho, vagando. Morei em vários lugares, por isso falo com essa propriedade de coisas que vi, não falo com achismo. Depois que saí da ocupação Ouvidor (no centro de São Paulo), fui para Minas Gerais, fiquei em Três Corações, depois fui para Alfenas estudar um pouco de bioconstrução. Aí fui para Santa Rita do Sapucaí, Itajubá, acabei indo para Belo Horizonte, Uberaba. De Uberaba voltei para São Paulo, fui para Curitiba, desci para Brusque, Porto Alegre, voltei para São Paulo, de São Paulo recebi um convite para fazer uma apresentação em Cuiabá. Fui lá, era uma furada, uma roubada, não tinha apresentação nenhuma, tomei no cu, fiquei em situação de rua de novo, depois explico essa, outro dia. Fiquei lá um tempo fazendo malabares, quando um maluco me achou na rua, me reconheceu porque tinha me visto no programa Manos & Minas, me colocou para tocar de DJ numa rave por 400 contos. Saiu uma foto minha nessa rave, o pessoal da AJI, Associação do Jovem Indígena, de Mato Grosso do Sul, viu e falou: “Nossa, você está pela região, a gente consegue fazer seu transporte, não quer vir aqui fazer uma oficina de rima? Era na mesma aldeia dos (rappers indígenas) Brô MC’s, massa. Fui para lá e nem fiz rima nem nada, os Brô MC’s não estavam lá. Tinha tido uma treta, era molecada muito jovem, de 6 a 18 anos. Só dava para fazer rima com os de 18 e 16, que já fumavam um. Era complexo, acabou virando uma parada mais de artesanato, de ensinar a fazer instrumentinho. Pegava garrafa de cachaça barrigudinha, tinha várias poluindo a aldeia, fazia chocalho, pintava, fazia galinhazinha, vários baguizinhos.
PAS: Tudo isso foi antes do Ultrassom?
E: Muito antes, começo de 2017. Depois disso volto para São Paulo, trombo com uma companheira que estava no Ouvidor, a gente finaliza as mesmas ideias, ela se joga para Natal, eu vou para Recife, começo a morar em Recife. E é aí que tudo acontece. Não, vou te contar essa história.
PAS: Por favor. Foi ver as raízes familiares?
E: Eu estava nisso, fazendo meus bagulhos, minha correria. Em Recife, virei produtor cultural, comecei a produzir evento de brechó, de feira e bregafunk com rap. E aí, fazendo vários eventos, eu estava meio que largando mão, já estava cansado das paradas, não tinha reconhecimento, meu cachê era 200 contos. Não estava conseguindo, não estava gostoso de fazer o bagulho. Sempre diziam: “Você é genial, pega aqui 200 reais, canta aí”. E já tinha parado de beber, a galera queria me pagar com comanda, isso não fazia sentido.
PAS: Você parou de beber sozinho?
E: Ahã. Eu e eu. Vai ouvindo. Estava lá fazendo essas produções, falei: ah, mano, eu vou para Natal. Estava morando em Águas Compridas, num morro lá, cabelo rosa, uma bicha louca da porra. Tinha conhecido um boy maior massa em Natal, surfista, que também fazia uns eventos. Fomos, peguei um barraco com esse boy, ficamos tentando uns negócios. Do nada conseguimos fechar um show em Pipa, isso já era tipo começo de fevereiro de 2018. Aí a magia aconteceu. Reencontrei essa companheira, com o dinheiro que fiz dei para ela, ela voltou para São Paulo, eu voltei de Pipa. Falei: mano, agora é hora, vou me jogar para Roraima e de lá pego carona para Boa Vista e me jogo para a Colômbia, tento a vida lá, aprendo espanhol, faço arte de rua, me jogo. Brasil para mim já deu. Em cada estado é sempre a mesma prosa, “você é genial, me dá um desconto”. Vai se foder, estou cansado. Estava na maior estafa mesmo. Fechando, voltamos de Pipa para Natal, entregamos o barraco na favela, consegui fazer evento foda na favela, lotou, a galera colou em peso, maior massa, fervo, metralhadora para o alto, uma loucura do caralho. E rap, rap, rap, rap, vários grupos de minas, foi uma das coisas mais lindas, foi foda. Eu tinha conseguido fazer uma conexão, juntando a galera de produtoras de Recife, João Pessoa e Natal, uma tríade muito foda. A gente tinha um bonde de DJs de bregafunk, DJ Brisa, DJ Juara, DJ Faraó. Eu ficava na produção, tomando conta da molecada. Na Paraíba era um DJ, um grupo de rap, um grupo de mina de rap e um grupo de mina feminista, Femigang. Em Natal, tinha um DJ eletrônico, uma DJ de trip-hop, a gente organizava a festa, eles vinham no bonde e a gente rachava de igual. Era investimento, às vezes furada, dava tudo errado, mas diversão sempre, e conexão. Às vezes dava 50, 100 reais para cada um, era uma felicidade.
PAS: Você conheceu o Brasil inteiro?
E: Não, faltam uns sete estados. Falta o Norte, Tocantins, Amapá, Roraima. Vou tentar fazer algumas partes.
PAS: Você vê algum traço indígena nessa vida nômade?
E: Tem, tem total. Eu não fiz, não posso ficar falando que sou indígena, não tenho esse cartão verde. De falar que sou preto para mim já foi maior trabalho, maior processo. Mas minha família, se você for ver, é afro-indígena. Por parte de mãe é total indígena misturado com branco, e meu pai é preto misturado com indígena, e tem branco também. A irmã do meu pai é total o índio do Pica-Pau, tá ligado? Total apache. Minha mãe já é diferente, é cabocla mesmo, moreninha do nariz fininho, olho azul e cabelo liso, mas com traços indígenas. Você olha para ela, é indígena, mas mais branquinha. O pai dela é indião, tanto que ela nem fala que é índio, fala que é preto do cabelo liso. Só que não consigo fazer esse resgate, preciso muito trocar uma ideia sobre isso, está com 70 anos, é mais delicado. Mas estou para fazer esse mapeamento, entender de qual região meu avô era. Ele era total, andava descalço, sem camisa, original. Eu só queria saber qual etnia é, se é Pankaruru, Xucuru, Xucuru Cariri, para ver se consigo fazer o resgate dessa etnia, se essa etnia me aceita, me entende como um parente. Em 2019, participei do ATL (Acampamento Terra Livre, em Brasília). As mulheres do Xingu entraram em contato comigo, a gente conseguiu 35 mil reais, conseguiu levar as mulheres do Xingu para o ATL. Participei indo com elas no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília. Eu falei umas poesias improvisadas, elas fazendo uma dança e cantando a música delas, todas as mulheres de todas as etnias presentes juntas, uma coisa muito fantástica, fortíssima. Ali elas meio me deram esse batismo, “você é um parente”, me pintaram. Até hoje converso com todo mundo, com Ana Terra Yawalapti, que participou de um show meu na Virada Cultural, deu um textão muito foda no palco. Ajudei também a fazer a trilha sonora do curta-metragem Gigantes pela Própria Natureza, com as mulheres Yawalapti e com o movimento feminista das mulheres indígenas do Xingu.
PAS: E da militância negra, você participa?
E: Sou preto de olho verde, então eu sempre fui muito branco para ser preto e muito preto para ser branco, fiquei sempre num lugar da porra. Minha mãe nem se considera preta, ela nasceu branca, mas é filha de índio. Ela sabe soprar rapé, conhece os bagulhos, faz umas garrafadas. A parte afro é do meu pai, que era do candomblé, da umbanda, de fazer garrafada também, as mandingas e rezas dele. Reza forte, reza brava, banho de folha, benzer, essas coisas. Meu pai é filho de parteira, fez o parto do meu irmão. Estou nesse resgate também, começando a fazer minhas folhas, minhas rezas bravas, dando atenção a essas pequenas magias, que fazem uma diferença total.
PAS: Em “Também Quero Diversão!” você diz “eu quero diversão e diversidade de gênero”. Você tem cartão verde para falar sobre sexualidade?
E: Ah, digo que sim, porque sou uma pessoa que tem uma sexualidade (ri), que tem passaporte. Se eu não puder falar sobre isso, vou fazer aula de piano (ri).
PAS: A mistura sexual é como a mistura étnica?
E: Completamente. Quando falo das questões étnicas, falo com a propriedade da minha criação. Cresci com a macumba e com questões indígenas que aconteciam dentro da minha casa, garrafadas, frases, palavras, e totalmente uma casa do norte. Então quando eu falo arrastado, sobre cuscuz, terreiro, orixá, tupinambá, caboclo ou sobre a dívida histórica de todo mundo, aí sim tenho o dever de tentar reparar. Esse é um lugar de fala de todo mundo, você nasceu no Brasil, então bem-vindo, a culpa também é sua. É um valor que a gente já nasce culpado, não era para ter privilégio para ninguém. São coisas que passam sobre minha pele, meu corpo, atravessam e atrapalham o batimento cardíaco. Se eu falar de disforia em algum momento, estou sofrendo de disforia. É sobre isso. Isso já mostra que, sim, eu tenho um cartão verde para falar sobre sexualidade.
PAS: “Também Quero Diversão!” também diz que “esse país tá uma guerra e não uma festa”. Esse é o nosso presente distópico?
E: É, total. Uma galera entendeu meio errado, achou que eu estava falando “é isso aí, vamos dançar mesmo, galera!, uhu!, diversão!”. Pena dessa galera, mas não estou com tempo para explicar, segue o baile. Mas aí, sim, é uma baita crítica. Quando fiz essa música, em 2018, queria ter lançado ela como single antes do “Carro de Boy” e não deu. O clipe dela foi feito antes de “Carro de Boy”.
PAS: “Carro de Boy” (2020) também é uma crítica bem direta.
E: Quero simplificar, sabe? Estou cansado de filosofia barata que fica indo para um lugar que não leva a nada, a galera aqui da rua não vai entender. Se eu falar que a simbologia do deboche que aplico dentro dessas frases carrega também o ardor da etimologia coloquial e colonial, porra, brother, nem eu entendo o que estou falando. Minha galera não vai sacar, está muito acadêmico. Eu nem fiz faculdade, no máximo colei no bar mais próximo da faculdade. Então preciso simplificar, e “Carro de Boy” é exatamente isso.
Ultravioleta. De Edgar. Deck.