Flavio Cavalcanti e Silvio Santos
Rivais na televisão dos anos 1970, Flavio Cavalcanti e Silvio Santos se encontram para uma entrevista conjunta à revista O Cruzeiro - foto divulgação/Matrix

Nos anos 1960 e 1970, o carioca Flavio Cavalcanti (1923-1986) era o apresentador de TV  que representava o status quo por excelência, um papel que nas décadas seguintes seria herdado por gente eternamente jovial como Fausto SilvaGugu LiberatoLuciano Huck etc. Tido publicamente como reacionário e bem mais controverso que os sucessores, Flavio tinha um quê de anti-Huck, à medida que vinha do jornalismo e não da publicidade, não cogitava disputar cargos públicos, não vivia com um sorriso perpétuo no rosto e afrontava os militares no poder após ter apoiado o golpe de Estado desferido por eles em 1964. Mais assemelhado a Luciano Huck era seu filho, Flavio Cavalcanti Junior, que cuidou de relações institucionais entre a TV e a política, esteve presente em bastidores bem menos festivos que os programas de auditório e hoje rememora as trajetórias dos dois flavios no livro Senhor TV – A Vida com Meu Pai, Flavio Cavalcanti.

Na primeira parte, brilha Flavio pai, que segundo as memórias do filho sonhava ser jornalista e compositor e era funcionário público do Banco do Brasil, ao lado do amigo Sérgio Porto, o futuro Stanislaw Ponte Preta. Como compositor, não emplacou mais que um sucesso popular, “Manias” (“dentre as manias que tenho/ uma é gostar de você“), gravado por Helena de LimaDolores Duran Elizeth Cardoso. Como jornalista, sempre segundo seu filho, pulou varanda de edifício para invadir a casa do presidente deposto Getúlio Vargas (que cogitava voltar ao poder por via eleitoral) e entrevistá-lo para o jornal A Manhã. De personalidade estridente, parecido (inclusive fisicamente) com o amigo jornalista e político Carlos Lacerda (principal opositor de Getúlio), Flavio pai galgou posições nos anos 1950, primeiro como radialista e a seguir na nascente televisão.

Flavio Cavalcanti e John Kennedy
O presidente John Kennedy recebe Flavio no Salão Oval da Casa Branca – foto divulgação/Matrix

Na TV, apresentou programas como Noite de Gala, que trazia astros internacionais como Sammy Davis Jr. e Nat King Cole e tinha como maestro à frente da orquestra o ainda desconhecido Tom Jobim, e o folclórico Um Instante, Maestro!, em que quebrava discos de artistas avaliados por ele como de pouca qualidade. Ali, colecionou feitos de repórter, como entrevistar o então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy., interessado em estreitar laços com a América Latina no contexto do avanço de Fidel Castro em Cuba.

No início dos anos 1970, na TV Tupi, o Programa Flavio Cavalcanti ia ao ar nas noites de domingo e teve exclusividade sobre a imagem televisiva de Roberto CarlosElis ReginaWilson Simonal Chico Anysio, em concorrência com Silvio SantosChacrinha, ambos na emergente Rede Globo. “A única ausência que o velho aceitava como inevitável era a de Chico Buarque, que, por divergências políticas, se recusava a participar do programa”, escreve Flavio Junior.

Pelé, Chico Anysio e Roberto Carlos se encontram no "Programa Flavio Cavalcanti"
Pelé, Chico Anysio e Roberto Carlos se encontram no “Programa Flavio Cavalcanti” – foto divulgação/Matrix

Sob o violento governo de Emílio Garrastazu Médici (jamais citado no livro), a Tupi, pertencente aos Diários Associados criados pelo paraibano Assis Chateaubriand (1892-1968), atrasou salários e teve os domingos acossados pela estreia do Fantástico na concorrente, em agosto de 1973. Flavio deixou a emissora em setembro do mesmo ano, rumo à decadente TV Rio. Para o programa de estreia, foram escalados Roberto Carlos e um Geraldo Vandré recém-chegado do exílio – a cena do reencontro desse último com Jair Rodrigues (intérprete de sua “Disparada”) foi censurada pela ditadura e jamais chegou ao público. No ano seguinte, Roberto Carlos tornou-se artista exclusivo da Globo, onde permanece até hoje.

Ainda em 1974, Flavio voltou para a cada vez mais frágil Tupi. “Nilton Travesso, que naquele tempo dirigia o Fantástico, tentou levar meu velho para lá  (para a Globo), mas Boni (José Bonifácio Sobrinho), por motivos que nunca ficaram claros para mim, não quis”, escreve o filho, que nessa fase, muito jovem, trabalhava nos bastidores dos programas do pai.

Na segunda parte do livro, o autor fala de seu “voo solo”, quando se desgarrou do pai e foi trabalhar na Editora Bloch, do ucraniano Adolpho Bloch (que fugira da Revolução Russa em 1917), cujo carro-chefe era a revista de variedades Manchete. Diretor da sucursal da Bloch na Bahia, ficou amigo do comunista Jorge Amado e aproximou-se, em 1979, do governador (e apoiador da ditadura) Antonio Carlos Magalhães. Em seguida, comandando a sucursal de Brasília, esteve no centro das movimentações que culminariam na criação de duas novas redes televisivas nacionais, o SBT, do perene Silvio Santos, e a efêmera Rede Manchete, de Bloch. Demitido do cargo após a publicação de uma entrevista na revista masculina Ele Ela (da Bloch), o porta-voz do então presidente João Figueiredo foi contratado para a nascente Rede Manchete e se transformou no Alexandre Garcia que está por aí até hoje. Flavio filho, por sua vez, se desentendeu com Bloch logo após a conquista da Rede Manchete e rumou para o SBT.

Enquanto isso, Flavio pai abria e fechava a boate carioca Preto 22, retornava ao rádio, via a Tupi encerrar atividades de vez (em 1980) e estreava enfim um novo programa, Boa Noite, Brasil (em 1982), na Rede Bandeirantes, mais uma vez amargando produção precária e atrasos de salário. Nos três últimos anos de vida, até 1986, intermediado pelo filho, tornou-se também funcionário do ex-rival Silvio Santos, em mais um Programa Flavio Cavalcanti. Flavio filho ressurge em 1989, atuando na tentativa de erguer a candidatura de Silvio Santos à Presidência pelo PFL e entrando “de cabeça” na campanha de Fernando Collor. “Foi uma formidável experiência, e me recuso a ser responsabilizado pelo triste desfecho dessa candidatura”, escreve, cândido como qualquer brasileiro que cultiva o hábito de se esquecer dos próprios votos conforme o andar da carruagem.

No livro, Flavio Junior segue a tática bem televisiva de não ter lado nenhum, parecendo estar em todos os lados ao mesmo tempo. Começa escrevendo “sobre os anos da Revolução (ou golpe, como queiram)”, depois muda para “revolução” com “r” minúsculo, afinal tece considerações sobre a exaustão do “ciclo ‘revolucionário'”, revolucionário entre aspas. Em meio a tanta flexibilidade ideológica, não se enxerga o que o autor pensa politicamente. Mas, ao narrar um encontro que intermediou entre Silvio Santos e Tancredo Neves, ele se refere ao candidato a presidente da redemocratização como “uma quase unanimidade nacional”. “Falo quase, porque o PT, claro, não apoiava a sua candidatura, como partido complicado que sempre foi”, conclui. E não diz nenhuma palavra sobre os ciclos pós-2004, “quando a função de diretor do SBT em Brasília foi extinta”. Justifica a saída da emissora de modo prosaico: “Nos dias de hoje, com o fim da inflação galopante com a qual nos acostumamos a viver por décadas, todas as empresas foram obrigadas a se reestruturar, reduzindo radicalmente seus custos”. Ao fim e ao cabo, Senhor TV funciona como um manual intensivo sobre como se manter sob as asas do poder e, um pouco menos, sobre como sobreviver à margem dele.

Senhor TV – A Vida com Meu Pais, Flavio Cavalcanti. De Flavio Cavalcanti Junior. Matrix, 200 pág.,

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