Rappin’ Hood & Geraldo Vandré, um (breve) encontro

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Rappin' Hood

“Continue caminhando e cantando”, aconselha o paraibano Geraldo Vandré, que hoje completa 89 anos, na abertura da mais nova gravação do rapper paulistano Rappin’ Hodd, de 52 anos. “É nóis, meu mano, é tudo no meu nome, forte abraço, tamo junto”, responde Rappin’, reverente.

Não é um diálogo banal, apesar da economia de Vandré nas palavras. Calado desde a época do nascimento de Rappin’, Vandré conversa com um artista que, afinal, também não tem sido dos mais frequentes na discografia brasileira. Rappin’ Hood tem publicado apenas singles desde dois álbuns solo, Sujeito Homem (2001) e Sujeito Homem 2 (2005), e um tardio e brilhante lançamento de Revolusom – A Volta do Tape Perdido (2004), de seu grupo original Possemente Zulu.

A nova gravação do protesto melancólico mitológico “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (Caminhando)” (1968), lançamento do selo independente pernambucano Estelita sob produção de Thiago Barromeo, é o encontro simbólico de dois caras que não desperdiçam palavras, perdidos num descampado palavroso em que o papo furado costuma se alastrar feito fogo ateado por senhores do agropop global.

Após o diálogo telefônico aparentemente ligeiro com Vandré, Rappin’ introduz um coro feminino lírico e suave sobre uma levada de nyabinghi, som celebratório da comunidade Rastafári da Jamaica – outra turma que não costuma soprar palavras ao vento. A atmosfera sonora evoca a de um candomblé cubano, um afoxé baiano, um maracatu pernambucano, um candombe uruguaio, uma trova chilena, um lamento borincano dos indígenas da ilha de Porto Rico, uma coladeira de Cesária Évora em Cabo Verde, um samba-rap de Rappin’ Hood na Vila Arapuá. Evoca a meteorologia não da emergência (devastação humana) climática, mas dos deserdados da sorte, da terra, do teto, da insanidade capitalista. A bandeira cinzenta do Brasil sangra (e ganha uma rosa) na capa do single, e não é por acaso ou descuido.

Em 2005, com autorização de Vandré, Rappin’ já havia gravado “Disparada Rap”, no qual Jair Rodrigues reinterpretava mansa e dolorosamente o galope sertanejo original “Disparada” (1966), de Vandré e Théo de Barros. O rap-canção de pai e mãe fazia conexão com a “Dona Maria” da Possemente Zulu, interpretada em 2004 com a adesão de Leci Brandão, que fazia dos versos libertários de “Deixa, Deixa” (1986) cama macia para um pungente samba-rap. Desde 2005, Rappin’ Hood tem interditado um rap-iê-iê-iê criado por cima da voz de Roberto Carlos em “História de um Homem Mau” (1965) – talvez porque o ouro verde anti-ecológico tenha falado mais alto aos ouvidos do cantor de “O Progresso” (1976), “As Baleias” (1981), “Apocalipse” (1986) e “Amazônia” (1989).

O último álbum inédito de Geraldo Vandré é Nas Terras de Benvirá, gravado no exílio e lançado no Brasil em 1973, como último ato musical antes da desistência definitiva de Vandré em integrar a indústria musical brasileira, hoje dramaticamente desindustrializada. Há duas décadas, Rappin’ Hood gravava com Sabotage (“A Cultura”, 2001), Zélia Duncan (“Desconforto”, 2001, parceria de Zélia com Rita Lee), Instituto (“Dia de Desfile”, 2002), Sandra de Sá (“Se Liga, Brother”, 2002), Monobloco (“Cirande em Frente”, 2002), Os Originais do Samba (“Tenha Fé, pois Amanhã um Lindo Dia Vai Nascer”, 2003), Cidade Negra (“Homem Que Faz a Guerra”, 2004), Charlie Brown Jr. (“Cada Cabeça Falante Tem Sua Tromba de Elefante”, 2005), BiD (“Maestro do Canão”, para Sabotage, 2005), Nuno Mindelis (“Tenho Medo” e “Mas Que Nada”, 2005), Edvaldo Santana (“Pra Viver É Sempre Cedo”, 2006), Max Viana (“Vilarejo”, 2007, também com Djavan), Fabiana Cozza (“Malandro” e “Andar com Fé”, 2009) etc.

Dos anos 2010 para cá, Rappin’ tem se limitado a participar de gravações com NX Zero, Fiuk, Marília Barbosa, Martinho da Vila (“O Sonho Continua”, 2018), Hyldon, Bossa & Soul (o fortíssimo “Sistemão”, 2021), Marcelinho Freitas (“O Samba É Foda”, 2020), Emicida (“Da Estação São Bento ao Metrô Santa Cruz”, 2018), Camila Roman, Planta e Raiz (numa versão reggae de “Rap du Bom”, 2001), Leo Gandelman, Samba de Dom, Um Toque a Mais, Laura Santos, Kalango… “Sistemão”, composto pelos parceiros, grita alto contra o status quo: “Foi o sistemão que me jogou na rua na Praça da Sé”.

Rappin’ Hood num samba-rap anti-sistemão

As exceções, compostas e gravadas por Rappin’ Hood sozinho, são da pesada: o indignado “João Pedro e George Floyd” (2020), uma regravação de “É Tudo no Meu Nome” (2001), o sensacional “Sou Negrão 2” (2021), “Neguin com Skate no Pé” (2022). A celebração da negritude comanda o funkeado “Sou Negrão 2”, uma espécie de “Festa de Arromba” (1965) do rap nacional, em amplo diálogo com “Sr. Tempo Bom” (1996), dos pioneiros Thaíde & DJ Hum. Em rara aparição na década de 2020, Jorge Ben Jor compôs e rimou “O Guerreiro da Capadócia” (2020) com Rappin’.

As fusões em tempo de rap-MPB de Rappin’ Hood fazem falta ao Brasil esfumaçado de 2024, como para sempre fará falta a voz de Geraldo Vandré desde o endurecimento da ditadura civil-militar brazileira. Abençoada por Vandré, a regravação de “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores” por Rappin’ Hood mostra que nunca é tarde demais para ser(mos) feliz(es). Se a fumaça agrotóxica permitir.

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