Em show de pré-Virada Cultural, Racionais MC mostram que estão em forma e com o discurso afiado

Fotos Thiago Coelho

Mano Brown respira fundo atrás das cortinas do palco da casa noturna Chapéu Brasil, em Sumaré, 115 km a oeste de São Paulo. São 3h15 da madrugada do domingo, 12 de maio de 2013. Vai começar o último show dos Racionais MC’s antes da apresentação de volta ao centro da capital onde eles nasceram, que acontecerá na Virada Cultural, na tarde do próximo domingo.

Compenetrado, Brown faz movimentos de alongamento e de ginástica. Está em forma, musculoso. Veste um pulôver preto sobre camiseta alaranjada de mangas curtas. Usa boina e óculos escuros e tem um crucifixo pendurado no pescoço. Ao seu lado, Ice Blue também se alonga, pula, se concentra para entrar no palco. Veste boné e agasalho estampado de rap e ostenta longos dreadlocks de reggae.

Edy Rock e KL Jay também estão à espera da hora de entrar em ação, mas há tempos os Racionais não são só os quarto. Helião (do pioneiro grupo RZO), Lino Krizz, Boy Killa, Big e o DJ Ajamu também fazem silêncio concentrado enquanto a discotecagem lá fora encerra a última música antes da chegada do grupo. Nove Racionais estarão no palco o tempo todo – sete vocalistas, mais os DJs KL Jay e Ajamu.

A Chapéu Brasil está cheia, mas não lotada. Grupos da região, como o Realidade Cruel (de Hortolândia), se apresentaram antes dos Racionais. Os integrantes do Realidade Cruel chamam à celebração espectadores de Sumaré, Santa Bárbara d’Oeste, Americana, Hortolândia, Campinas. O locutor anuncia a vinda de Emicida e Criolo no próximo dia 13 de junho. Um corredor nos bastidores dá dimensão do ecletismo da casa: há fotos das participações de Zeca Pagodinho, Leonardo, Banda Calypso, Frank Aguiar, MC Serginho & Lacraia – além de um Cristo crucificado no alto da porta que dá acesso à plateia.

A concentração da banda é a concentração do público, e/ou vice-versa. Há álcool nos copos e fumaça no ar, mas a lucidez parece ser o bem comum maior dos presentes. Os Racionais são artistas profissionais com, no mínimo, 15 anos de estrada. A plateia, diferentemente, é de maioria bem jovem. No camarim ao final do show, misturado aos fãs que os Racionais atendem um por um, consigo trocar três palavras com Brown, e ele ressalta esse contraste: “É um público novo. Eles estão conhecendo a gente, eu estou conhecendo eles também. Muita gente aí nunca me viu antes. A renovação está acontecendo debaixo do meu nariz”. Ele não parece contrariado com isso, ao contrário. “O novo é o novo”, celebra, quando faço essa pergunta.

O horário previsto internamente para entrada dos Racionais é 2h45, mas é às 3h20 que o grupo entra em cena. O nome Racionais, escrito em letras entre góticas e grafiteiras, se ilumina de vermelho na plataforma onde ficam os DJs e Edy Rock, este paramentado com boné, óculos escuros e um lenço laranja que protege ora o pescoço, ora o nariz e a boca. Dois grandes cartazes pendem nas laterais do palco. Num deles, à nossa esquerda, está representado o rapper paulista Sabotage (1973-2003). No outro, embaixo do qual Brown se coloca diversas vezes durante o show, está o jamaicano Bob Marley (1945-1981).

Edy Rock faz sua parte do alto do set dos DJs, mas diversas vezes desce à altura do palco e recita versos ao lado de Brown, ou de Ice Blue.

As conhecidas divergências com as forças repressoras da sociedade são parte da constituição e da empatia do grupo. “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial”, diziam em “Capítulo 4, Versículo 3” (1997), deixando evidente qual é a questão de fundo do conflito. No show atual, o embate é menos explícito que alegorizado no trabalho dos DJs. Sons de sirenes frequentam vários dos raps, mantendo sempre um nível de tensão no ar. A nova “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)” (2012), de forte discurso político, é seguida pelo protesto dramático de “Crime Vai e Vem” (2002). Sons assustadores de metralhadora encerram o rap, enquanto todos os artistas se retiram do palco e a sonoplastia evolui pelo ruído de um helicóptero que vai e vem para os gemidos desesperados e desesperadores de um cachorro.

Os Racionais voltam com as roupas modificadas – Brown agora veste boné e camisa de malha branca com mangas compridas, por baixo de um colete. “Homem Invisível” (2011) visita a soul music. O cão volta a ganir. Num intervalo entre músicas, Brown inicia o discurso que já é quase tradição em seus shows, de diálogo direto com a plateia presente – hoje, o tema praticamente exclusivo é RENOVAÇÃO.

O discurso acaba ao som da voz de uma cantora antiga de samba ou MPB, indecifrável porque em rotação acelarada, em versos de “Modinha” (1958), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, uma das canções inaugurais da bossa nova na voz da mestiça Elizeth Cardoso: “Vai, triste canção, sai do meu peito e semeia emoção/ que chora dentro do meu coração”. Sirenes, a modinha antiga e “Diário de um Detento” (1997) se fundem e confundem: “Minha vida não tem tanto valor/ quanto seu celular, seu computador”.

São 4h15 quando o show termina. Os Racionais se fecham no camarim enquanto cresce a fila de gente implorando por uma palavra e/ou uma foto com eles. O momento pós-show se desenrolará até 5h30, quando finalmente a van partirá levando o grupo para um hotel na via Anhanguera. Consigo trocar palavras apressadas com Edy Rock, que se demonstra feliz não só em voltar à Virada com os Racionais, mas também com o show solo que fará no palco A Rua É Show, às 2h30 da manhã (KL Jay também estará ali, às 23h50 do sábado). “Estou com disco solo no forno, saindo para as lojas nesta semana. O show da Rio Branco vai ser o lançamento”, comemora. Na enxurrada emotiva dos fãs, não consigo chegar a Ice Blue nem a KL Jay.

É hora de voltar para São Paulo, com o coração em sobressalto, mas estranhamente tranquilo. Estrada adentro, ribombam as palavras do discurso de Brown, que transcrevo sob o risco de um ou outro erro devido à gravação precária do aparelinho anos 1990. Fala, Mano Brown.

“O dia que eu sentir que não sou útil, o dia que eu, com o meu senso crítico, meu senso autocrítico, perceber que eu não sou útil, vou tomar meu boné. Porque eu vejo que a geração é nova. Estou olhando o rosto de vocês: outras pessoas, outras visões, outras mentes, outras inteligências. Os novos: vocês são os novos, e os novos sempre vencerão, porque o novo sempre há de vir. O caminho deve ser aberto para os novos. Mas veja bem, veja bem, veja bem: não adianta os novos repetir os erros dos velhos, porque aí a novidade foi pra casa do caralho. Repetir o mesmo erro não vale. O novo tem que trazer proposta nova, ok? Não é reclamar de velhos problemas: propostas novas, para velhos problemas. Precisamos de vocês: propostas, propostas. Internet é um veículo para organizar a paz e a guerra, o abuso. Você pode usar a internet como bem entender. Eles estão votando a maioridade penal. Eu quero ver você entrar na internet e bater de frente. Entrar na onda daqueles que usam a internet pra mediocridade? Quero ver você assumir sua posição: o novo, o novo. Nós estamos em 2013. Eu estou velho. Vocês são novos. Quero ver você. Repetir o erro dos velhos não é evolução, é acomodação, ok? Nós erramos pra caralho. A minha geração errou demais, tanto que tem poucos vivos. Certo, meu parceiro? Estamos em Sumaré, e eu vim aqui há 20 anos. Eu lembro como era Sumaré há 20 anos. Mudou pra caralho. Mudou pra melhor, morou? Mudou pra melhor. E nós estamos aqui. Precisamos de vocês. Precisamos de você. Quero ver vocês. Nós temos que fazer sabe o quê? Desconstruir toda a nossa noção de celebridade, de fama, de riqueza. Nós temos que desconstruir tudo isso, mano. Mas vocês têm que fazer isso: desconstruir, acabar com isso. A caça às celebridades é coisa pra otário. Tem que desconstruir isso. Vocês vão começar do zero, começar do zero. A geração nova tem que começar do zero. Porque o que foi feito de errado não cicatriza, não está cicatrizando. Você tem que recomeçar. Vida nova. Vida nova.”

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