Entre as muitas sensações e comparações suscitados pelo show de Madonna no Brasil, uma é especialmente desconcertante: por contraste, ela traz à superfície a ausência de humor e alegria que é uma marca de ferro nas gerações atuais da música pop (Anitta é exemplo flagrante; Pabllo Vittar, feliz feito xoxota no lixo levando mammy no colo, não). Do alto de sua história maiúscula, a senhora de 65 anos dá um olé de deboche, ironia, perspicácia e riso em Beyoncé, em Taylor Swift, em dez entre dez artistas da avalanche trapper que a indústria pós-musical impõe ao Brasil de hoje.

Seminário Aberto: Sabotage Maestro do Canão – Portal RAP NACIONAL
Sabotage (1973-2003)

Tal como Madonna, o rapper paulistano Sabotage (1973-2003) provoca esse mesmo tipo de reação alérgica ao mau humor depressivo da maioria dos artistas que também lotam arenas na cena pop atual. Lançado há pouco, com a adesão de nomes do presente como Don L, Luedji Luna, Rincon Sapiência, Djonga, Kamau, N.I.N.A, Filipe Ret e outros, o tributo Sabotage 50 retoma o imaginário do moço preto vindo da Favela do Canão que buscou libertação da vida no tráfico pela música e foi estupidamente assassinado 29 anos. E, como fazia Sabotage, Sabotage 50 coloca o dedo na ferida de várias das mazelas da geração 2020.

Quem acende a reação química são dois artistas contemporâneos baianos de contracorrente, o multi-artista baiano de Feira de Santana Russo Passapusso, do coletivo BaianaSystem, e o rapper baiano de Salvador Vandal, que prefere a velocidade do grime, do drill e do brime (versão brasileira, povoada de funk antigo, drum’n’bass, funk carioca e, no caso de Vandal, pagode baiano) ao amortecimento, ao marasmo e à choramingação do trap industrial. Ouça e leia abaixo o que Vandal diz sobre a cena atual, na enérgica intervenção que ele e Russo fazem, de modo respeitoso E iconoclasta, sobre o “Aracnídeo”(2002) de Sabotage.

“com sentimento como disse SNJ/ com compromisso como disse Sabotage”, apregoa Passapusso em “Aracnídeo”

“[Vandal]
Meu maestro, te peço desculpa
Não existe mais rap, acabou a verdade, agora é só trap
É topa tudo por dinheiro, se contar cê não acredita
O trap fecha com a polícia, fecha com a milícia
Eu não fecho com eles, maestro, senão desanda
Eu posso ser preso pelos polícia que são segurança

Meu maestro, eles tão rico, mas o ego enoja
Eles só falam de África, mas só pisam em Europa
É bala e fogo nos racista, não importa se é artista
Mas por dinheiro e mídia vários fecha com racista

Tem uns cara no rap fazendo tudo que quer
Xenofobia, homofobia, uns agressor de mulher
Tem uns preto verdadeiro, umas preta verdadeira
Mas só os cheio de falha eles abraça

Meu maestro, olha que doideira
Cabeça de nego, candomblé gurmetizou do nada
Hoje é conta personalizada, Exu sem patuscada

Uma escravidão moderna, forjada por brancos
Temos indústria do rap na mão de senhores de engenho
Acredite, musicalidade não existe
É sempre o mesmo flow, mesma letra e mesmo beat

Se alguém fala em inveja, o rap tá no divã
Uns não sabem o que fazem, outros batem em fã
Eles só rimam pra playboy, rimam pra enganar mulher
Hipocrisia dos herói que hoje toda a molecada quer

Todo mundo agora é rap, o compromisso acabou
Basta ser famoso, mentiroso ou apenas influenciador
Rap é compromisso, não é viagem
Mas os cara deixou esquisito, desculpe, Sabotage

Mídia de rap é comprada, é meme, kkk, kikiki
Imagina, Sabotage, se você tivesse aqui
De verdade, até a morte, minha caneta nunca falha
Excluído pela cena, tipo Tom Zé na tropicália

Rap sujo nordestino, vim pra sabotar seu raciocínio
Filme de terror, aracnofobia ([Sabotage] Aracnídeo)
Desculpa por ter vindo, público burguês
Mas vivo no país que vaiaram KL Jay

Meu maestro, rap de trincheira, esse é o proceder
O melhor sempre será você, sempre será você

[Russo Passapusso]
Com sentimento, como disse SNJ
Com compromisso, como disse Sabotage”

Vandal mesmeriza em trabalhos como a mixtape “Phodi$mo” (2021) e o recente “Violah” (2024)

(Leia mais sobre o show de Madonna no Brasil aqui.)

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