Belchior entre livros, em São Paulo, em 1986 - foto Homero Sergio/divulgação

Em 2005, dois anos antes de iniciar seu projeto pessoal de desaparição, Belchior foi a Florianópolis para dar a partida em uma aventura totalmente independente, anticomercial e ousada: criar ambiências sonoras em torno de poemas do poeta simbolista Cruz e Souza (1861-1898), o Dante Negro.

Na ocasião, o poeta cearense que foi obcecado pelo Dante florentino, o Alighieri, gravou em um CD master 8 poemas do Dante insular, Cruz e Souza, registro que trouxe a Santa Catarina para que os músicos conhecessem a melodia sugerida. Em novembro daquele ano, chegou a fazer 10 shows por 10 cidades catarinenses, nos quais cantava eventualmente duas ou três das suas interpretações de Cruz e Souza – um dos shows da excursão (denominada Uma turnê catarina), em Brusque, a 100 km da capital catarinense, foi gravado. Já o CD master com as bases originais ficou guardado durante 16 anos em uma gaveta da ilha.

Ouvidas agora pela primeira vez, algumas das interpretações de Belchior parecem contrapor mundos perdidos, do cantochão gregoriano de Vida Obscura à crueza rocker de Supremo Verbo. Também parecem prenhes daquela qualidade meio premonitória dos versos do próprio cantor.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro

Nada que já não estivesse contido na própria obra pregressa de Belchior, que explorou caminhos entre o arcaico e o contemporâneo como se toda a cultura fosse feita de um fluxo contínuo (basta ouvir Panis Angelicus em sua voz, no disco Vício Elegante, que já se tem uma amostra dessa sensação).

Nesta terça-feira, a viagem de Belchior, artista renascido nos tempos atuais, rebatizada como Belchior canta Cruz e Souza, também experimenta a ressurreição: está sendo lançada nesse momento uma campanha de financiamento coletivo para a prensagem de um CD com as interpretações inéditas de Belchior, o que vem encorpar a sua discografia. O CD base original, mantido e agora restaurado pelo parceiro catarinense de Belchior, o escritor, produtor e professor José Gomes Neto, está tendo a voz do bardo separada da instrumentação para que o contrabaixista, arranjador e produtor João Mourão, que foi da banda Radar (que acompanhou Belchior durante uma década), preencha de novo com a sonoridade de uma banda. Que é um dos procedimentos de gravação mesmo de um disco – bacana mesmo seria se houvesse também a prensagem de um disco de vinil, mas isso poderá até ser considerado futuramente, diz Gomes Neto. O momento é de atender à curiosidade dos fãs.

José Gomes Neto, então professor da Universidade Federal de Santa Catarina, usava as letras de Belchior em suas aulas de literatura. Belchior soube do fato e buscou conhecê-lo. Começou uma longa amizade de quase 40 anos, período no qual o artista se hospedou diversas vezes na casa do amigo e fez questão de presenteá-lo com elementos de sua produção (desenhos, objetos, anotações, telas). Quando se decidiram a gravar Cruz e Souza, ambos fizeram, separadamente, uma seleção pessoal. No momento em que se encontraram para cotejar as listas, eram praticamente gêmeas. “Dos quinze sonetos, 13 eram idênticos”, lembra o professor. “Nós conversávamos por telepatia”, brinca. “Sabíamos o que deveria orientar a seleção. E brincávamos com declamações teatralizadas. Uma festa!”.

Belchior concentrava sua atenção, no começo dos anos 2000, em um trabalho de aproximação radical com a literatura (além de se dedicar também à pintura). A reverência a Cruz e Souza aconteceu um ano depois de lançar a caixa As várias caras de Drummond, na qual musicou 31 poemas do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, acrescida de caricaturas originais que fez do autor.

Gomes Neto lançou, em 2019, o livro Cancioneiro Belchior, no qual alinhava as letras das canções conhecidas compostas pelo artista, além de desenhos de sua autoria. No site Benfeitoria, onde foi aberto o financiamento coletivo, os fãs podem escolher o quanto podem ou querem investir e recebem recompensas. O CD será a cereja do bolo, mas é possível receber também o livro Cancioneiro Belchior, e Cruz e Sousa: Travessias, obra de Celestino Sachet e do próprio Gomes. Também será oferecido um bottom com a imagem de Belchior e acabamento em ouro.

Hoje, a Universidade Estadual do Ceará (Uece) anunciou que apoia institucionalmente o projeto de Gomes Neto. Para entrar nessa nova viagem em torno do legado do bigodudo de Sobral, esse é o caminho (só vai até julho):

www.benfeitoria.com/belchiorcantacruzesousa

A gravação máster do material inédito de Belchior, anotada com a letra do cantor cearense
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4 COMENTÁRIOS

  1. Belchior para nós é o compositor com sua linguagem cortante , não como outros cantores , ele foi muito além de simplesmente cantar uma música.
    Falava a realidade da classe popular e com coragem , com muita certeza do que dizia.
    Alguém já tentou cantar alguma canção dele?
    Tem música que muda para o modo como se falasse umas duas ou três frases, num fôlego só, como se fosse até um rap, muito antes do rap, só que com conteúdo…
    Somos apaixonados por Belchior💙

  2. Belchior o eterno poeta ….me criei ouvindo a voz poética e lirica deste grande cantor e poeta… demais este trabalho q está sendo realizado parabéns o povo de Belchior vai lucrar muito.

  3. Muito bacana e genial a proposta de manter viva a verve do grande artista que foi o Belchior. O Zé Gomes é um poeta arretado, nosso conterrâneo aqui de Mossoró ( RN) que teve a felicidade de conviver com um dos maiores cantor e compositor do nosso País.

  4. tenho 51 anos e minha adolescência e juventude,fui um grande seguidor de bel,sou um fã de carteira desse eterno ídolo. esperava todo ano o projeto no teatro do parque em recife PE.e nunca perdi e um show dele.fico muito feliz e ansioso por esse projeto inusitado que será uma relíquia.

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