O som político do amor e da esperança

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Fotos: Coma Lá em Casa. Divulgação
Fotos: Coma Lá em Casa. Divulgação

Os ex-Móveis Coloniais de Acaju André Gonzales (voz), Beto Mejía (voz, percussão, violão, programação, synth, teclado, flauta e assobio), Esdras Nogueira (saxofones, clarinete e flauta) e Fernando Jatobá (guitarra, baixo e violão) se uniram a Gustavo Dreher (teclado, synth, programação, guitarra, percussão, voz e mixagem), formaram a Remobília e acabam de lançar “Ponto final”, primeiro disco da banda – que em 2020 lançou o EP “Janelas”.

Ponto final. Capa. Arte de Joy Ballard e André Gonzales. Reprodução
Ponto final. Capa. Arte de Joy Ballard e André Gonzales. Reprodução

“Ponto final” tem várias participações especiais: Marcelo Callado (bateria em “Nosso nome é agora”), Txotxa (bateria e percussão), Moreno Veloso (voz em “Novo delírio” e violoncelo em “Janeiro”), Kimani (voz na faixa-título) e Frank Jorge (voz em “Viver de outro modo”), entre outros.

A sonoridade, como não poderia deixar de ser, evoca a Móveis; as letras falam em esperança, sob o título apenas aparentemente contraditório. A Remobília desde os singles que anteciparam o álbum, espécies de cartões de visita, traz uma lufada de alegria, em um Brasil atual, ainda sob o signo do prolongamento indefinido de uma pandemia, sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro.

Os músicos Esdras Nogueira e Beto Mejía, com quem Farofafá conversou com exclusividade, reconhecem que a música da Remobília é mais explicitamente política. Os artistas não se furtam a tocar o dedo nas feridas, fazendo um álbum sobre amor e respeito, sentimentos que nos tornam humanos.

ENTREVISTA: ESDRAS NOGUEIRA E BETO MEJÍA

ZEMA RIBEIRO – Ao longo da pandemia vocês lançaram alguns singles e um ep. Este primeiro álbum do Remobília se chama “Ponto final”, uma apenas aparente contradição. Queria ouvi-los sobre isso.
ESDRAS NOGUEIRA – Pois é, “Ponto final” é recomeço pra gente, depois do fim do Móveis, a gente foi fazer um trabalho com alguns ex-integrantes da banda e também é um recomeço porque a gente passou dois anos de um momento muito difícil, perdendo gente querida, no meio de um governo genocida, e agora estamos recomeçando e espero que cada vez melhor.
BETO MEJÍA – A letra de “Ponto final”, o nome do disco é “Ponto final”, mas acho que a letra da música que dá nome ao disco dá muito essa perspectiva do que a gente está pensando para o futuro, de poder olhar, mesmo com toda a barbárie, tentar essa possibilidade de olhar um outro tipo de sofrimento, como resolver esse sofrimento, na verdade. É difícil mesmo, mas a gente tem que caminhar, tem que caminhar na esperança, porque se não, não vale estar por aqui para continuar nesse ódio, nessa violência e é um pouco isso mesmo, e isso dialoga com todas as perguntas que você faz em relação ao futuro, em relação ao olhar esperançoso, então é um pouco isso. Eu acho que a letra de “Ponto final”, simbolicamente, é a que mais traduz essa vontade que a gente tem, de como a gente se posiciona dentro do mundo, usando a música como política.

ZR – A gente percebe no repertório ecos do Móveis Coloniais de Acaju, somados a experiências particulares de vocês em carreira solo, além das diversas participações especiais que povoam o disco. Como foi trabalhar essa equação?
EN – É inevitável o som do Móveis não estar presente no trabalho da Remobília, porque afinal de contas temos alguns ex-integrantes na banda. É isso, somos as mesmas pessoas fazendo som, é um outro trabalho, mas somos as mesmas pessoas. Mas eu acho que o som da Remobília ele vem também de um amadurecimento de nossa relação, mesmo a gente tendo feito à distância, cada um de sua casa a maioria das coisas, teve uma unidade que foi colocado quando chegava no Dreher, que o Dreher foi montando tudo, mixando, juntando as ideias na casa dele, mas tudo foi sempre feito muito junto e tudo com opiniões sempre muito abertas de todo mundo. Tanto o trabalho do Móveis, quanto os nossos trabalhos individuais, que a gente está envolvidos juntos, quanto o trabalho da Remobília, a gente sempre tenta ser aberto e é um trabalho em conjunto que todo mundo participa e o resultado é esse aí.
BM – O disco foi feito todo à distância, é um processo totalmente diferente do que foram todos os discos que a gente já fez, eu imagino que todos os artistas nesse momento fizeram mais ou menos desse jeito. Algumas coisas foram gravadas em estúdio, mas a maior parte, realmente, foi tudo feito à distância e trabalhando dessa maneira. Trabalhar com os artistas, os convidados, foi muito legal, trabalhar com a Kimani foi demais, cada um na sua especificidade. A Kimani escreve muito bem, gravar com o Moreno Veloso foi demais. Acho que a equação foi sempre da soma super positiva de como todo mundo topando, todo mundo se reforça como artista e entendendo que esse processo de trabalhar um com o outro e fortalecer o trabalho do outro não atrapalha ninguém, só ajuda, eu acho que essa é uma coisa interessante do mundo musical. A competição talvez não seja o que direciona dentro de uma estrutura, é interessante a gente tratar simbolicamente como isso vai totalmente contra o pensamento neoliberal de que você precisa estar sempre melhor e mais que o outro. Na música, não necessariamente isso deveria fazer parte. Então, trabalhar e unir todas essas referências solos, com essas participações, foi meio dentro dessa ideia.

ZR – Remobília não é apenas uma mudança de nome. Que diferenças e aproximações vocês estabelecem entre a banda e o Móveis Coloniais de Acaju?
EN – A Remobília não é Móveis Coloniais de Acaju, mas temos alguns ex-integrantes que eram da banda, então de alguma forma o Móveis está inserido na Remobília. A gente resolveu colocar nos shows as músicas do Móveis, para aproximar do público que já gosta de Móveis, já conhece Móveis, já é fã de Móveis, e está com saudade. A gente também gosta de tocar as músicas do Móveis e tocando também o “Ponto final”. O show é isso, tem os dois repertórios, digamos assim.
BM – São bandas diferentes. Remobília vem depois de, imagina, o último disco do Móveis saiu em 2013 [“De lá até aqui”], a gente está quase 10 anos de diferença, então esteticamente vai ter diferença, as pessoas que estão ali fazendo vão ter os backgrounds diferentes também. Eu acho que a grande diferença passa por esse temporal ser um pouco já mutável, já mudou muita coisa. E eu acho que a aproximação é mais pelas pessoas mesmo, por a gente já ter mais intimidade, mais facilidade de trabalhar, e já saber como se trabalha um com o outro. Esteticamente é totalmente diferente, quer dizer, totalmente não [risos], mas acho que passa por um ponto ali que muda, principalmente pelo Dreher mixar, o Dreher que é o tecladista também, ele mixa, então a gente busca uma sonoridade diferente, eu acho que o processo de construção do disco, por ter sido feito diferente do que o Móveis fazia também, leva para outros lugares. E no Móveis a gente colocava talvez as nossas posições políticas um pouco mais sutis, aqui a gente entende que é para ser desse jeito e tem que estar na cara mesmo.

ZR – Como diversos trabalhos lançados no período, “Ponto final” também reflete o atual momento vivido, particularmente no Brasil, em meio à pandemia de covid-19, mas sempre com um olhar esperançoso, apontando para o futuro. O que foi mais fácil e mais difícil ao longo do processo de realizar este álbum?
EN – Não só do trabalho, mas de estar juntos, de não estar trabalhando, as pessoas estarem paradas, as perdas, falando de Brasil, teve gente que morreu quando não precisava ter morrido, com um governo inapto, com um governo que brincou com as vidas das pessoas, isso foi muito difícil mesmo. Eu acho que a gente se apoiou na música, um no outro, no conforto, no abraço, ainda que à distância, de fazer música juntos, de estar criando juntos e trazer isso pra nossa vida de uma forma, até mesmo com uma terapia, e uma forma de ficar bem e não surtar. É muito legal, é claro que todo mundo surtou, mas como a gente estava fazendo um trabalho juntos, quando um tinha uma barra o outro ia lá e segurava a onda. Isso foi muito legal. É um disco que é isso, foi feito todo nesse modelo, à distância, a gente teve que aprender a, particularmente eu, os outros já sabiam, eu tive que aprender a trabalhar e gravar e produzir de casa, pra poder acompanhar o ritmo da galera, que o povo é muito profissa, faz, manda coisa, manda base, manda beat, manda gravação, manda voz, manda tudo de longe, aí eu falei, putz, tenho que me agilizar aqui com essa galera [risos].
BM – Eu acho que o mais difícil para mim especificamente foi trabalhar com a dor da perda mesmo. Eu perdi meu pai, perdi alguns amigos, e a música é isso, ela serve como um processo de cura, pra mim foi um processo muito de cura, de me encontrar em espaços de conforto que me ajudassem a continuar caminhando. Um dos processos foi isso, mas ao mesmo tempo foi difícil e bom, para poder ter forças para continuar caminhando.

ZR – “Ponto final” está disponível nas plataformas de streaming. O disco tem ou terá edição física? Vocês têm preferência por formato na hora de ouvir música?
EN – Eu confesso que eu não tenho preferência. Eu gosto de ouvir num fone bom e numa caixa de som boa. Mas eu queria muito que o disco saísse no formato de vinil. Acho que pro grupo, principalmente falando de Brasil, não faz muito sentido lançar em cd. Se a gente fosse lançar em outro país, principalmente na Europa, conseguisse fechar com alguém de lá, acho que o cd ainda é válido, mas eu acho que ia ser lindo lançar isso em vinil. Eu acho que vai acabar rolando, uma hora ou outra.

ZR – Voltando à pandemia: lá no início de 2020, quando a emergência sanitária foi decretada, a gente achava que isso tudo ia passar muito rápido e que sairíamos melhores, enquanto seres humanos, da experiência, mas o que vimos é um acirramento do egoísmo e da individualidade em detrimento do coletivo. Vocês concordam com essa avaliação? Eu pergunto isso porque o lançamento de vocês vai na contramão, é um disco que fala sobre amor e respeito, sentimentos, afinal, que garantem que somos humanos.
EN – A gente acredita no poder transformador da música. Eu concordo contigo que, de fato, as pessoas, a gente tinha aquela fé na humanidade, que as coisas iam sair muito melhores, mas na verdade não rolou isso, pelo contrário. A gente precisa de abraço, da voz amiga, se não a gente está lascado. E pensando nesse lado não muito bom da humanidade, a gente está ferrado. Tem muita coisa boa rolando e vai rolar mais e coisa boa atrai coisa boa, a gente pensa muito nisso.
BM – Em relação ao contraponto do amor, eu acho que não tem outra saída, a não ser fazer desse jeito. Eu sou otimista ainda, eu acho que existe todo esse cenário realmente de individualismo, de falta de capacidade realmente de conversas e possibilidade de conexão, mas eu sou otimista, porque o que a gente trabalha, dentro da produção mesmo, de entregar uma música e poder sensibilizar com isso. Ela tem que ser feita dentro de um cenário que você imagina que a pessoa vai se sensibilizar, independente do histórico dela. Ali tem uma posição política, ali tem uma mensagem, uma história, mas é isso, a gente tem que falar disso, não dá para falar de outra coisa. Enquanto a maldade está acordada o tempo todo [risos] a gente tem que estar sonhando imensamente sem parar para que ela não reine. É simbólico isso que eu falo, mas não precisa ter essa dicotomia, mas é mais como uma posição mesmo de ação no mundo.

ZR – Diante da permanência do quadro de crise sanitária, embora hoje num momento de menor gravidade, como está a agenda da banda e o trabalho de lançamento e divulgação do disco?
EN – A gente está fazendo shows aos pouquinhos, começando a rodar. A gente ganhou um edital de viagens da Secretaria de Cultura do DF, do FAC [Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal], foi muito legal, porque nos permitiu fazer oito apresentações em quatro estados brasileiros, a gente fez dois shows em São Paulo, fizemos um e vamos fazer mais um em Goiânia, vamos fazer agora em novembro em BH, fizemos Uberlândia, fizemos Ouro Preto, estamos rodando. Estamos viajando, com um repertório que a gente gosta muito de fazer e estamos encaixando a Remobília também junto dos outros trabalhos que a gente já tem e que já estão no nosso dia a dia.

ZR – Hoje é o segundo turno da eleição que talvez seja a mais importante da história do Brasil em todos os tempos. Que recado vocês têm para dar ao eleitor brasileiro?
BM – Eu gosto muito do lema do esperançar. Eu sei que é também super difícil falar isso nesse momento, mas eu espero especificamente, na hora que a pessoa entre ali, talvez um olhar meio utópico, mas para teclar o número na urna, que ela pense além dela, além do universo do umbigo dela, que ela possa imaginar e perceber que ela viva dentro de uma sociedade que tem desigualdade, que tem disparidades e, enfim, que isso foi construído historicamente, e que ela pode pensar sem só olhar pra ela, que eu sinto que é muito o que está acontecendo, isso, até na pergunta que você falou, individualismo, egoísmo. Que isso de alguma maneira possa proporcionar ação. Sei que é difícil, mas é o que eu gostaria. O recado é que a gente possa pensar no outro. É utópico, eu sei, gente, mas é isso.
EN – Meu recado é o seguinte: se você for eleitor do Bolsonaro, gente, tenta, faz um churrasquinho domingo, bebe pra caramba no sábado, fica de ressaca, não acorda pra votar. Agora, se você for eleitor do Lula, vamos botar aquela camisa vermelha do Barba, levantar a bandeira e vamos nessa, votar pra botar o Lula no governo aí pra presidente, tirar esse genocida e vamos ser felizes. A gente não tem outra opção. Foco total para botar o Lula na presidência.

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Ouça “Ponto final”:

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