“Enquanto existe música dentro de cada um existe liberdade”

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"Luiz Melodia - No Coração do Brasil" - frame/ reprodução
"Luiz Melodia - No Coração do Brasil" - frame/ reprodução

A frase que tomo por título é uma das primeiras ditas pelo protagonista de Luiz Melodia – No coração do Brasil [Brasil, 2024, 75 minutos], documentário de Alessandra Dorgan que estreia nesta quinta (16), nas salas de cinema brasileiras.

O filme cobre um arco que vai mais ou menos até o lançamento de Estação Melodia (Biscoito Fino, 2007), seu primeiro álbum inteiramente dedicado ao samba, mais de 30 anos depois de sua estreia com Pérola Negra (Polygram, 1973), incluindo o disco de ouro por seu Acústico Ao Vivo (Universal Music, 1999).

A história é por demais conhecida: após conquistar ouvidos e corações brasileiros (daí o subtítulo, verso de “Magrelinha”, 1973) nas vozes de Gal Costa [1945-2022] (“Pérola negra”, 1971) e Maria Bethânia (“Estácio, holly Estácio”, 1972), a expectativa da gravadora era por um disco de samba.

Os executivos achavam que era apenas o que podia fazer um negro, vindo do Morro de São Carlos, no Estácio, berço do samba e suas escolas. Logo após o disco de estreia, ele rompeu o contrato com a gravadora: seu arco de interesses estava muito além de rótulos, limites e racismos. Apesar de hits como os já citados e “Juventude transviada”, do álbum seguinte, Maravilhas contemporâneas (Som Livre, 1976), veio daí a pecha de “maldito”, com que costumeiramente se carimbam artistas que não se adequam às exigências do mercado.

“Minha única panela na música brasileira foi Sérgio Sampaio [1947-1994]”, diz Luiz Melodia (1951-2017) a certa altura, referindo-se, além do amigo, à própria independência; Jards Macalé (que gravou “Farrapo humano”, de Melodia, em seu álbum de estreia, de 1972), Waly Salomão (1943-2003) e Torquato Neto (1944-1972) também estão na área. Noutra cena, o capixaba aparece cantando “Doce Melodia”, com que homenageou o carioca, faixa que registraram juntos no último disco que Sampaio lançou em vida, Sinceramente (independente, 1982; reeditado em cd pela Saravá Discos, de Zeca Baleiro, em 2008).

Outra cena comovente é o dueto com Itamar Assumpção (1949-2003) – para citar outro “maldito” – em “Diz que fui por aí” (Zé Keti e Hortênsio Rocha). Brincando com suas semelhanças, da cor da pele à “maldição” apregoada, Itamar Assumpção dedicou a Melodia “Quem é cover de quem?”, registrada em Bicho de 7 Cabeças – vol. 1 (Baratos Afins, 1993). Em cena ilustrada pelo dueto com Elza Soares (1930-2022) em “Fadas”, revela ainda o enorme prazer que tinha em tocar com Perinho Santana (1949-2012) e Renato Piau, este, seu mais constante e fiel escudeiro.

Os roteiristas Alessandra Dorgan, Patricia Palumbo (que também assina a direção musical do filme) e Joaquim Castro (também montagem e desenho de som) foram felizes em suas escolhas: aqui e acolá um ou outro depoimento realçando a importância de Luiz Melodia, quase sempre imagens de arquivo (Gal Costa, Maria Bethânia, Sérgio Sampaio). Mas é o próprio Luiz Melodia quem conta sua história.

Ele lembra que, apesar das gravações seminais de Gal e Bethânia, as coisas não estavam dando certo para quem não queria ser nem da polícia nem do bicho: estava quase pegando a marmita e encarando algum emprego formal quando surgiu a oportunidade de gravar o álbum de estreia. Seu pai, Oswaldo Melodia (autor de “Maura”), sambista e compositor, é flagrado em contradição: a montagem esperta mostra o filho dizendo que o pai, diante das incertezas, já lhe recomendava procurar estudar ou trabalhar, para depois exibir o pai, orgulhoso, dizendo que sempre acreditou e respondendo que dele o filho herdou também o sobrenome artístico.

A inclusão de “Juventude transviada” na trilha sonora da novela global Pecado capital (1975-76), de Janete Clair (1925-1983), alçou Luiz Melodia a um sucesso que ele mesmo não esperava. Com o assédio impedindo-o a frequentar um prosaico botequim, ele resolve tirar férias e se muda para a Bahia, onde lança Mico de circo (Cast/ Sigla, 1978) com uma enorme festa pelas ruas de Salvador.

Sobre a matemática básica de poucos álbuns para tantos anos de carreira, Melodia responde a uma repórter estar satisfeito por sempre ter feito o que quis. Sua trajetória teve altos e baixos, mas o cantor, compositor e ator nunca perdeu a essência, a elegância, a rebeldia e a dignidade. Foi, antes e acima de tudo, um artista livre.

"Luiz Melodia - No Coração do Brasil" - cartaz/ reprodução
“Luiz Melodia – No Coração do Brasil” – cartaz/ reprodução

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Veja o trailer:

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