A cantora e commpositora Elza Soares. Retrato: Daryan Dornelles/Divulgação
A cantora e commpositora Elza Soares. Retrato: Daryan Dornelles/Divulgação

O episódio é bastante conhecido: caloura no programa do compositor e radialista Ary Barroso (1903-1964), Elza Soares (1930-2022) respondeu à altura a pergunta capciosa do apresentador, sobre sua origem: “de que planeta você veio, minha filha?”. “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary: do planeta fome”, respondeu, na lata. A expressão acabou por batizar seu último disco de inéditas, “Planeta Fome” (Deck, 2019) – em 2021 foi lançado “Elza Soares e João de Aquino” (Deck), que apresenta o encontro da cantora com o violonista, gravado em 2007.

"No Tempo da Intolerância". Capa (ilustração e design de Pedro Hansen). Reprodução
“No Tempo da Intolerância”. Capa (ilustração e design de Pedro Hansen). Reprodução

Hoje (23) chega às plataformas digitais “No Tempo da Intolerância” (Deck), álbum póstumo majoritariamente feminino (e feminista), que dá continuidade à série mais política da obra de Elza Soares, iniciada com “A Mulher do Fim do Mundo” (Circus, 2015) – seu primeiro álbum de inéditas ao longo dos 45 anos de carreira que contava na ocasião – e continuada em “Deus É Mulher” (Deck, 2018) e no citado “Planeta Fome”.

“Um dia eu sonhei que teria um país melhor e teria um momento menos cruel do que aquele de 1970, que eu conheci muito bem, foi muito amargo. Então a gente fica muito amedrontado, pedindo pra que a gente possa ver um momento melhor. Mulheres assassinadas, a justiça por favor. Aonde o negro vai chegar? Aonde a mulher vai chegar? A gente não sabe”, diz em “Intro: Justiça” (Elza Soares), traçando um paralelo entre a ditadura militar brasileira (1964-1985) e o governo neofascista de Jair Bolsonaro – que só terminou após a morte da cantora –, cujo legado de destruição não se resolve num passe de mágica: a cantora permanece viva e seu legado atual. A faixa abre o álbum, mostrando logo a que veio, escoltada por Danilo Andrade (teclados, efeitos e elzatron), Paulinho Guitarra (guitarra), Rafael Ramos (omnichord e programação) e Gabriel de Aquino (violão e omnichord) – o último, filho de João de Aquino (1945-2022), do disco em dueto. Curiosidade: elzatron é a voz de Elza sampleada por Danilo Andrade durante a turnê do “Elza Canta e Chora Lupi” (disco ao vivo de 2016, em homenagem a Lupicínio Rodrigues [1914-1974]), em que o músico tocou teclados e fez direção musical.

Como é sabido desde o início de sua carreira, Elza Soares não tinha papas na língua e foi gigante até o fim – e além: artistas com consciência e consistência permanecem vivos através de suas obras e isto faz ainda mais sentido quando o arquivo aberto postumamente não se restringe a mais do mesmo, mero caça-níquel, mantendo a linha e o nível de sua produção recente. “”Como dizia Luther King/ se você quer um inimigo/ é só falar o que pensa”, provoca-começa na faixa-título, parceria dela com Pedro Loureiro, Jefferson Junior e Umberto Tavares, que assinam também “Pra ver se melhora”: “tomate não dá/ iogurte não dá/ tem que sobrar pra comprar sabão/ azeite tá caro, óleo é mais barato/ mas não faz bem pro coração”, canta como a mãe que, no mercado, tem que fazer escolhas diante dos preços altos da cesta básica.

Outra da lava do quarteto é “Coragem”: “Eu nasci pobre, preta, da cor da noite/ acostumada a ver meus ancestrais/ sofrerem no açoite/ se quem cala consente/ a minha boca vai continuar/ sendo uma arma letal/ contra o abuso de poder”. É um disco eminentemente político, como toda a obra mais recente de Elza Soares. Mesmo no bolero “Te Quiero”, também do quarteto, a mensagem está lá, alerta pelo empoderamento feminino e contra relacionamentos tóxicos e abusivos. Para dançar e refletir. “No Tempo da Intolerância”, em suma, é um manifesto dançante – no embalo do samba e da black music – pelo poder dos pobres, dos pretos e das mulheres, quentíssimo e antenadíssimo, em que se sobressaem os naipes de percussão (Felipe Roseno e Kainã do Jêje) e sopros (Carlos Malta, Diogo Gomes, Marlon Sette e Jorge Continentino).

Ao longo do disco aparecem também homenagens e parcerias. Rita Lee (1947-2023) escreveu e Roberto de Carvalho musicou “Rainha Africana” e estão ali, ao mesmo tempo, o “women power” cantado por Elza Soares e o pop radiofônico, marca constante do casal de autores. Com a jovem baiana Josyara (violão, guitarra, programação e vocais na faixa), uma das gratas revelações da MPB deste início de século, compôs “Mulher Pra Mulher (A Voz Triunfal)”, tema cheio de ginga e suingue que aborda diversos níveis de feminismo.

“Feminelza”, que a cantora ganhou de outra baiana, Pitty, questiona as imposições sociais (e não raro machistas e misóginas) a que mulheres (sobretudo mães) são comumente submetidas: “quem você pensa que é pra dizer a alguém que pode parir/ onde ela deve ou não deve ir?/ quem você pensa que é pra dizer a alguém que sabe gerar/ o que ela pode ou não falar?”, questiona/m. A pernambucana Isabela Moraes chega com “Quem Disse”, a abordar os abismos sociais, num tempo em que meia dúzia de milionários em um submarino mobiliza mais a opinião pública que embarcações improvisadas que naufragam vitimando centenas de migrantes africanos (todas as vidas importam mesmo?). A faixa é aberta pelo rapper WJ em texto extraído do filme “Poesia Marginal”.

O álbum fecha com “No Compasso da Vida”, inusitada parceria de Elza Soares e Pedro Loureiro com Dona Ivone Lara (1921-2018) – uma melodia inédita da sambista ganhou letra da dupla, em espécie de síntese do álbum póstumo e da grandeza de Elza Soares, viva para além do fim, por meio de sua obra, voz e mensagem: “a mente parece que sente a alma da gente na boca do povo/ nascer mulher só para nascer de novo”, diz o refrão.

A quem já tinha a eternidade garantida, “No Tempo da Intolerância” é mais um degrau subido por Elza Soares, artista que enfrentou e superou todos os desafios impostos, na arte e na vida. É hora de a sociedade superar o tempo que intitula o álbum, tornando a intolerância coisa do passado.

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Ouça “No Tempo da Intolerância”:

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