"Cantos de Origem". Capa. Reprodução

Que a música brasileira é uma das mais bonitas, ricas e diversas do planeta, nem se discute. E esta equação é fruto direto de sua descendência africana, no bojo da miscigenação que no formou, afinal, enquanto sociedade.

A música é talvez o nosso maior produto de exportação, sem prejuízo ao consumo interno, embora o racismo estrutural por vezes queira invisibilizar artistas negros e mesmo apagar a contribuição do negro em nossa paleta sonora, missão impossível.

Ainda que no Brasil se ouça mais música em língua inglesa que, por exemplo, em língua espanhola ou mesmo em português, oriunda de outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, estar com os olhares e ouvidos atentos nos revela gratas surpresas.

É o caso do ótimo “Cantos de Origem”, que une a voz da angolana Jéssica Areias (radicada no Brasil há 13 anos) e a percussão do brasileiro Cauê Silva. Quase completamente autoral, o álbum, que chegou hoje (23) às plataformas de streaming, é fincado, como aponta o título, nas raízes ancestrais das culturas afro, banto e indígena.

A ponte Angola-Brasil é cantada em diversas línguas – português, umbundo, yathê, lingala, quimbundo, kikongo, ioruba –, num convite também à dança, com os pés transitando entre o terreiro e a capoeira, a cultura popular e a ancestralidade latente que carrega em si.

É um disco celebrativo também: ao redor da dupla, desfilam mais de 30 artistas colaborando para a sonoridade de “Cantos de Origem”, com sua carga de festa e luta. “Toque é reza/ canto é dança/ reza é canto/ toque é dança/ dança é reza/ toque canta/ corpo conta/ reza encontra/ corpo encanta, se levanta a bailar”, cantam em “Àgò”, faixa que abre o álbum, cartão de visitas a anunciar a que vieram.

Entre os músicos convidados, destaques para Edy Trombone, Renatinho do Violino, Leonardo Mendes (violões e guitarras), Érick Kalonji (violões), Ldson Galter (baixo), Fábio Leandro (piano), Gabi Guedes (percussão), Maurício Badé (percussão) e o coro de Bia Goes, Jéssica Américo, Lilian Rocha e Nara Couto. Em “Féa Hia/ Saudações aos Povos Originários” (Jéssica Areias/ Cauê Silva/ Txalê Fowá/ Wadja/ Twlkya/ Doyá) os parceiros da dupla participam na faixa, no canto da etnia fulniô – a música traz ainda a voz da ialorixá Zefinha d’Yemoja.

Jéssica Areias e Cauê Silva conversaram com exclusividade com FAROFAFÁ.

Cauê Silva e Ana Areias. Foto: José de Holanda/Divulgação
Cauê Silva e Ana Areias. Foto: José de Holanda/Divulgação

QUATRO PERGUNTAS PARA CAUÊ SILVA E JÉSSICA AREIAS

ZEMA RIBEIRO: Como vocês se conheceram e como se estabeleceu essa relação de trabalho, amizade, amor e vida?
CAUÊ SILVA: Nos conhecemos no antigo jongo reverendo, numa roda de rumba. Meses depois passamos a integrar o bloco de carnaval Os Capoeira, onde eu sou professor do naipe de surdo, e ela, aluna do mesmo naipe. Nossos interesses em comum e os caminhos que a música foi nos proporcionando, fizeram com que surgisse a primeira parceria, inicialmente no trabalho autoral de Jéssica, e depois na vida pessoal. “Cantos de Origem” representa muito além da nossa união enquanto casal, nossas referências e raízes, mas sobretudo uma oferenda em forma de reverência à herança dos povos originários que permeia toda a nossa formação e a ancestralidade.

ZR: O repertório do álbum é majoritariamente autoral. Como foi o processo de composição?
CS: Muito particular em cada cantiga. Todas as composições, tirando “Onanga Ya Papai” [cantiga em umbundo, do folclore angolano oriundo dos ovimbundos], “Pensamento” [Professor Pernã] e “Féa Hia – Saudações aos Povos Originários” são composições que resultam da nossa parceria. Algumas vieram primeiro a letra, depois melodia e vice-versa, outras partiram do toque do atabaque ou de algum ritmo específico e depois veio a melodia e letra. Não aconteceu de forma linear e nunca teve uma forma fechada. No estúdio acabamos definindo a maioria das harmonias de acordo com os arranjos feitos de forma coletiva, salientando nossos parceiros Ldson Galter, Leonardo Mendes, Edy Trombone, Renatinho do Violino e Erick Kalonji.

ZR: “Cantos de Origem” é uma evocação às raízes ancestrais africanas e aos povos originários, num encontro de Brasil e Angola. A partir disso, gostaria de aprofundar o conceito por trás do álbum.
JÉSSICA AREIAS: Esse trabalho é uma oferenda, uma reverência ao movimento de resistência ancestral, da união das culturas afro, bantu e indígenas oriundas do encontro entre as sonoridades das regiões do Congo, Angola, Nigéria e Brasil, com o desejo de mostrar a força dos nossos antepassados através da música de terreiro, da capoeira, do folclore e das línguas tradicionais bantu e yoruba, trazendo suas representatividades de sabedoria, força, resistência, resiliência, beleza, afeto, saudade, orgulho, espiritualidade e continuidade. Uma forma singela da união próspera das nossas culturas.

ZR: Línguas como umbundo, lingala, quimbundo e kikongo são menos faladas que português, espanhol e inglês. A diversidade linguística é outra marca de “Cantos de origem”. A seu ver, explorar estas línguas no repertório é, também, uma forma de se contrapor ao racismo e qualquer forma de preconceito e discriminação?
JA: Sim, cantar nas línguas nacionais dos povos originários é reiterar a existência fundamental de cada uma das etnias africanas e indígenas que formaram o mundo que conhecemos hoje. É uma forma não só de antirracismo, mas também de decolonização. A concepção do mundo baseada nas regras que o ocidente impôs, além de não corresponder a uma verdade universal, exclui uma parcela fundamental que constrói a sabedoria, a filosofia, a sociologia e a política entre outros conceitos ancestrais afroindígenas que são a base da maioria dos estudos e pesquisas que o ocidente se apropriou e assumiu a autoria. “Cantos de Origem” é resistência.

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Ouça “Cantos de Origem”:

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