Elza Soares parece realizar sonhos de toda uma vida nos álbuns que tem lançado nestes anos 2000, e o novo Planeta Fome não foge à regra. Livre definitivamente das amarras do samba, ela mais uma vez investe profundamente em repertório inédito e diversificado e em autores novos. Do outro lado da moeda, recupera canções que podia ter gravado há 30, 40 ou 50 anos atrás, mas nunca o havia feito – é o caso, aqui, de duas reinterpretações acachapantes de Gonzaguinha, Comportamento Geral (1973) e Pequena Memória pra um Tempo sem Memória (1980). Ambas foram emblemáticas do Estado de exceção de 1964-1984, e Elza as torna exemplares do Estado de exceção normalizado de 2019. “Você deve estampar sempre um ar de alegria/ e dizer: tudo tem melhorado/ você deve rezar pelo bem do patrão/ e esquecer que está desempregado”, explicita “Comportamento Geral”.
O protesto irado é o tom de Planeta Fome, num ano que já se faz notável por trabalhos musicais dessa natureza (casos de Escumalha, de Douglas Germano, e de Coruja Muda, de Siba, para ficar em apenas dois exemplos). Disposta a esse ato, Elza extrai o melhor de artistas como Pedro Luís (“Virei o Jogo”), Seu Jorge (“Brasis”) e Sérgio Britto e Paulo Miklos, dupla egressa dos Titãs (“Tradição”). “Já quebrei a cara/ enfrentei as feras/ nunca me rendi”, canta “Virei o Jogo”. “Desconsidere a razão/ desobedeça o coração/ nas voltas que vão dando os dias/ desparafuse a construção/ descontinue a tradição/ desaproprie esse galpão/ e por que não?/ nas horas simples de alegria/ desconfigure essa equação”, reforça, bela e fulminante, “Tradição”.
O vínculo passado-presente-futuro orienta “Brasis” e a suíte “Blá Blá Blá”, de Pedro Loureiro, entrelaçada com rap feroz de BNegão e com o refrão de “Me Dê Motivo”, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, lançada em 1983 por Tim Maia e infelizmente não retomada aqui na voz de Elza (é Loureiro que canta essa parte). Depois de clamar “vá pra frente, Brasil!” nos “Brasis” em tempo de funk-exaltação de Seu Jorge (e Gabriel Moura e Jovi Joviniano), Elza lança a isca em “Blá Blá Blá”: “Me dê motivo/ pra ir embora”. O soul vira rap: “Me dê motivo/ pra ir morar em outro lugar/ me dê motivo/ pra deixar meu país pra lá”. Seguem-se críticas ácidas ao “mito” (“é muito blá-blá-blá-blá-blá”), e o conjunto adquire pique de manifesto “Brasil, ame-o e fique”, lançado por quem tem autoridade para tal. O amor à terra natal retorna em “País do Sonho”, de Chapinha da Vela e Carlinhos Palhano. O discurso se completa em “Não Tá Mais de Graça”, de e com Rafael Mike, tributária de “A Carne” (1998), de Marcelo Yuka (e Seu Jorge): “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ o que não valia nada agora vale uma tonelada”.
O novo e o ancestral também gritam na faixa de abertura, “Libertação”, de Russo Passapusso, que finca bandeira na Bahia com participações da pop BaianaSystem, dos eruditos Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz e da transcendente Virgínia Rodrigues. “Amigo/ é agora/ segura a minha mão”, pede, sintonizada no teorema “ninguém solta a mão de ninguém”. “Venha cá, menino/ não faça isso, não,/ sei que é muito triste/ não ter casa, não ter pão”, emenda o candomblé “Menino”, composição jovem da própria Elza.
Complexo e faminto, Planeta Fome só se completa na última faixa. A regravação de Elza para “Não Recomendado”, de Caio Prado, consolida a aliança de orgulho gay-feminino iniciada em Deus É Mulher (2018): “Pervertido, mal-amado/ menino malvado/ cuidado!/ má influência, péssima aparência/ menino indecente/ viado!/ a placa de censura no meu rosto diz: não recomendado à sociedade”. “Maldita Geni!”, ironiza Elza já ao final da última canção, ecoando as mulheres e travestis de Chico Buarque, outro bardo da ditadura anterior.
Planeta Fome. De Elza Soares. Participações especiais de Virgínia Rodrigues, BaianaSystem, Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz, BNegão, Pedro Loureiro, Rafael Mike. Produção de Rafael Ramos. Deck.