Jornalismo cultural em CoMa

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Chamou-se Convenção de Música e Arte, sigla CoMa. Aconteceu em Brasília, Capital do Golpe, entre 5 e 7 de agosto de 2017. Pareceu propício o nome, pelo número assombroso de instituições que, no Brasil pós-golpe, se encontram em estado de coma. De torpor. De anestesia. De ataque epiléptico. De catatonia.

Fui convidado para estar na mesa “Além da crítica cultural”, que trataria do jornalismo musical (um subgênero do jornalismo cultural, subgênero por sua vez do Jornalismo com jotalhão), uma dessas instituições que estão em estado de coma no Brasil pós-golpe – ou nesse caso específico estaria, se não tivesse morrido em algum episódio de uma das várias temporadas passadas. (Eu sei, quem agoniza-mas-não-morre é a indústria jornalística, e não propriamente o jornalismo musical, o jornalismo cultural ou o Jornalismo com jotalhão. Mas, ah, esse papo é tão Ecad 1999, e não é que, transcorrida uma geração inteira da trombeteada ~morte da música~, o Ecad segue tão vivo – embora caindo aos pedaços – quanto a Globo, a Folha, a Veja, o Estadão?)

Na parte festivalesca da programação, guerrearam por foco, atenção e respeitabilidade nomes que fogem à equação rica-mas-decadente do homem-branco-heterossexual-anglo-saxão: os uruguaios Cuatro Pesos de Propina, os paulistanos periféricos EmicidaFióti Rico Dalasam, o combo mexicano-sorocabano-campinense-matogrossense Francisco el Hombre, o paraense Jaloo, a baiana Larissa Luz, o colombiano Masilva, o capixaba Silva. Na parte palestrística, nossa mesa de debate foi antecedida por outra, denominada “Música como agente de transformação e inclusão social”, destinada a prosear sobre igualdade de gênero, racismo, desigualdade social, homofobia etc.

Uma das palestrantes dessa mesa, Marta Carvalho, responsável pelo festival brasiliense Satélite 061, denunciou que, pós-golpe de Estado no Brasil, o governo do Distrito Federal (a cargo de um partido que leva o termo “socialista” na nomenclatura) suspendeu fomentos a festivais e eventos direcionados majoritariamente à expressão das ditas minorias. Essa é a ética do golpe, e, salvaguardadas as melhores intenções do CoMa, são os rapazes da banda brasiliense Scalene, de perfil global-masculino-branco-(aparentemente)heterossexual, que organizaram e levaram os prêmios de edital do governador “socialista” Rodrigo Rollemberg.

A propósito: são três os empreendedores que ergueram a CoMa. Tomás Bertoni (assim como seu irmão Gustavo Bertoni) é, além de integrante da roqueira Scalene, filho de Torquato Jardim (aquele jurista que em 31 de maio foi empossado ministro da Justiça do peemedebista Michel Temer, depois de ter chefiado, para o mesmo Temer, o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle). Diego Marx é produtor da Scalene, integrante de outras bandas de rock e genro do senador também peemedebista Romero Jucá (aquele político que foi apanhado em grampo quando negociava, pré-golpe, “botar o Michel num grande acordo nacional” “com o Supremo, com tudo“). Completando o trio, André Noblat, também roqueiro na banda Trampa, é filho do jornalista da Globo Ricardo Noblat (aquele cronista político que após uma entrevista observou que o presidente postiço é “um senhor elegante“, e “a senhora dele, também“). Apadrinhada por Paulo Ricardo (intérprete desde 2002 do tema-chave do Big Brother Brasil), a Scalene tirou segundo lugar no reality show musical global  Superstar, em 2015., atrás da dupla baiana Lucas e Orelha.

No sábado, um jornalista fantasiado de Homem Invisível grava os shows do CoMa em Brasília para a Rede Globo.
No sábado 5, um jornalista fantasiado de Homem Invisível grava os shows do CoMa em Brasília para a Rede Globo.

Sobre a composição de custos da CoMa, os organizadores respondem à solicitação do repórter: “Captamos entre poder público e iniciativa privada R$ 1,34 milhão, e o evento custou R$ 1,8 milhão”.

Voltemos ao jornalismo musical. Com sete integrantes, a mesa sobre igualdade social reuniu uma representação simbólica de mulheres (quatro, uma delas transexual), negros (três: Marta, Rico Dalasam e a transexual brasiliense Rosa Luz) e gays (não me arrisco a cravar quantos). Em seguida, veio nossa mesa, a da crítica cultural. Éramos nove, entre nós duas mulheres, um gay declarado (eu), zero pretos, zero pretas.

O contraste gritante com a mesa anterior indica mais que detalhe, firula ou mimimi. A composição, muito mais fiel à tessitura do golpe e das redações do Partido da Imprensa Golpista (PIG) que à da sociedade brasileira real, explica em si o estado comatoso da indústria jornalística, seja ela musical, cultural ou geral com Jotalhão. Se algo está morrendo no jornalismo brasileiro, é a proximidade entre ele e a sociedade, a vida real, o chão, o gramado, o calor das ruas. Não à toa, alguém citou no mesmo debate que a faixa etária média atual dos leitores do jornal O Globo é de… 68 anos.

Mais grave que o descolamento entre o PIG e o país, as faixas etárias que ainda consomem eucalipto ou a problemática do “lugar de fala” é a relação direta entre esse distanciamento e o coma prolongado vivido pelo jornalismo cultural (e não só ele). Mesmo com todos os problemas colossais que se abatem sobre nós, o cinema brasileiro não para de produzir brilhantes cineastas mulheres, sob um substrato de discussão sobre representação e paridade feminina etc. A comunidade musical produz festas exclusivamente pretos, blocos de rua gays, festivais com 100% de mulheres na equipe técnica e, sobretudo, a mais vibrante, inteligente, engajada e politizada geração de artistas desde a tricotomia que repartiu os anos 1960 entre samba, tropicália e antitropicália e explodiu os anos 1970 em clube da esquina, black music, nação nordestina, samba-rock, secos & molhadas, Rita & Raul & Erasmo etc. etc. etc.

O jornalismo cultural (não só ele) que deveria dar conta de acompanhar e decifrar essa profunda transformação está comendo poeira, por mil razões, entre elas sua própria resistência em abdicar do racismo, da misoginia, da homofobia, do classismo e das mais variadas modalidades de golpismo que se entranham feito DNA à nossa genética. Vitaminado à inanição por versões ~ressignificadas~ de práticas milenares como compadrio, corporativismo, lobby, jabaculê, isolamento, discriminação, truculência, assédio, subserviência e autoritarismo, o jornalismo musical se posiciona como Carolina (mas não a de Jesus cantada magistralmente pela baiana Larissa Luz) na janela vendo a banda passar e não sabe o que dizer a respeito. Isso não é coma, isso é a personificação da morte por assassinato, chacina, massacre, genocídio, psicopatia fascista.

Se há um lado luminoso na desgraça (além do advento de uma geração formidável e talvez tão filhota da ditadura de 2016 quanto tropicalistas e seus inimigos o foram da ditadura de 1964), é que a guerra está às escâncaras, sendo travada ao ar livre e fora de (quase) todos os armários. Ocorre nos bastidores em CoMa, onde jornalistas e agentes produtores de festivais rasgavam coração por descobrir disparidades de gênero (etc.) nos minguados cachês oferecidos a mediadores e palestrantes. Não há possibilidade de mudez ou omissão quanto a isso, para um jornalismo (não apenas) cultural que se alongou na repulsa pelos hábitos escravagistas-com-glamour do sistema Fora do Eixo, já que os hábitos são radicalmente os mesmos. Não há hipótese de silêncio sobre “aparelhamento” via infraestrutura cultural e musical, e nesse quesito nos basta perguntar se a casa já não teria caído caso estivéssemos num festival de dinheiro público capitaneado por parentes do ministro da Justiça Aloízio Mercante, da senadora Gleisi Hoffman ou de algum medalhão do jornalismo ~petralha~ (existem? Luis Nassif?).

Bastidores à parte, a guerra ocorre também no alto do palco, no embate CoMatoso exemplar entre o rock’n’roll tributário de Legião Urbana Capital Inicial e o aplomb musical e comportamental da geração filhota dos paratropicalistas Ney Matogrosso e Elza Soares, composta com escândalo por Johnny Hooker e Larissa Luz, Rico Dalasam e Pabllo VittarAnitta Liniker, Francisco el Hombre y Cuatro Pesos de Propina etc. etc. etc. (É plausível gastar páginas de eucalipto teorizando sobre ditadura na Venezuela enquanto o Estado de exceção avança feito câncer de metástase aqui mesmo?) Até este momento, a extração branca-hétero-rica-masculina tem precisado dos dissidentes de toda natureza para se legitimar, inclusive (ou principalmente?) em termos mercadológicos, de vender até aquilo em que não se acredita porque há quem queira comprar, de (re)posicionamento de marcas, “branding”, “pitch”, “mentoring”, blábláblá. Onde a porca torce o rabo, as dissidentes sexuais, raciais, sociais etc. continuam a gritar em algazarra tudo aquilo que desesperou o fascismo a ponto de se apelar para a solução suicida de derrubar Dilma Rousseff, na tosca ilusão de que calaria tal sinfonia de vozes à base da força e da violência (não apenas) simbólica.

Demorou uma geração, mas os filhotes da ~morte da música~ são do balacobaco, para quem tiver ouvidos de escutar. Merecem produtores culturais, jornalistas, repórteres, críticos à altura. A guerra (também) cultural está desfraldada, e se não formos mais uma vez covardes e subservientes há de ser bonita a festa, pá.

P.S.:  Aceitei o convite da organização da CoMa para participar do debate sobre crítica cultural, aí inclusos os custos de viagem, hospedagem e alimentação (mas nenhum cachê). Vivo em regime de ~reforma trabalhista~ desde a era Lula, mas não há glamour festivalesco que faça sossegar meu coração. Ainda assim, apesar de montanhas de pesares, me recuso a acreditar na morte do jornalismo cultural, seja por susto, bala ou vício.

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