Por que a plateia está cantarolando a trilha sonora de “Ainda Estou Aqui”?

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As pessoas saem das salas de cinema, nas quais o filme Ainda Estou Aqui caminha para seu segundo milhão de espectadores, cantarolando uma canção de 1971 de Erasmo Carlos, É preciso dar um jeito, meu amigo, a terceira faixa do já lendário disco Carlos, Erasmo (Philips), o sétimo disco do Tremendão. É uma protest song: Erasmo aborda na letra o desamparo, a angústia e a perplexidade causados pela repressão política, pelo jogo sujo dos militares e o exílio forçado. “As crianças são levadas pela mão de gente grande/Quem me trouxe até agora/Me deixou e foi embora como tantos por aí”. Alguns telespectadores, inebriados pelo efeito psicotrópico das guitarras, baixo e bateria, o arranjo visionário de Manoel Barenbein, sentenciam: “Erasmo sempre foi muito melhor do que Roberto!”. Infelizmente, é preciso dizer que a canção também é dos dois, Erasmo e Roberto Carlos.

A trilha sonora do filme do ano, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, como há muito tempo não acontecia, é de fato um dos grandes sustentáculos estéticos do filme. Sua presença tem um duplo sentido: primeiro, emoldurar cada cena, dar relevo e realçar a atmosfera cênica; e um segundo efeito, o de lembrar que, no nevoeiro escuro de um período tenebroso, havia uma arte sendo realizada com excelência e destemor. Enquanto a vida estava por um fio, quase paradoxalmente, a música seguia plena de excelência e criatividade ilimitada. Essa aparente contradição não é casual.

O desfile do repertório escolhido pode despertar, inicialmente, uma certa rinite alérgica ao hipsterismo. Afinal, colocar Caetano Veloso e Gal Costa em filme dos anos 1970 (Baby, de 1969, Um Índio, de 1976, já da fase Doces Bárbaros, e Falsa Baiana, de 1970, composição de Geraldo Pereira dos anos 1940) é praticamente um clichê. Mas não há o que fazer: Caetano e Gal estavam lá mesmo, protagonizando grande música, e fascinavam as cortes universitárias. Gil comparece com sua própria personalidade, na memória da garota que ele convidou para dançar durante o exílio em Londres.

Mas é quando o pai do filme, Rubens Paiva (Selton Melo), saca o rock da filha da vitrola e coloca Take Me Back to Piaui, do ídolo satírico Juca Chaves, de um compacto da RGE de 1970, que a coisa vai para outro patamar, como diria Bruno Henrique. Arranjo extraordinário do maestro Hector Logno Fietta, é o balanço de Take Me Back to Piauí que envolve o “baile” final do filme, um elogio da doce irresponsabilidade do gosto e da liberdade. Conta-se que a canção é uma resposta de Juca Chaves a Jorge Ben, com quem viveu uma quase treta. É uma divertida sátira a País Tropical (e também um aceno de pacificação, não uma provocação). “Adeus Paris tropical, adeus Brigitte Bardot/O champanhe me fez mal, caviar já me enjoou/Simonal que estava certo, na razão do patropi”. Mais adiante, Jorge Babulina responderia de novo a Juca com Aleluia, Aleluia (“Quem dera que Paris fosse tropical e tivesse uma nega chamada Tereza”).

A trilha prossegue por outras pérolas da MPB setentista. Jimmy Renda-se saiu em um compacto de Tom Zé em 1971, como Lado B de Irene. É uma composição de Tom Zé e Valdez. Usando palavras em português e inglês com solavancos de portuglish, Tom Zé cria uma blitz fonética frenética satirizando a reverência anglofônica, uma novilíngua de puro delírio e harmonia. No ritmo, ele também funde gêneros, adicionando fraseados de baião e xaxado ao triunfalismo de certa música estrangeira, e ainda fazendo referências aos Olimpo do rock, como Jimi Hendrix (Jimmy Renda-se), Janis Joplin (Jane Chope) e Bob Dylan (Bob Dica).

A Festa de Santo Reis saiu no disco de 1971 de Tim Maia. O compositor da canção, o paulistano Marcio Leonardo, escreveu a música quando tinha 15 anos de idade. Marcio e Tim se conheceram quando Tim Maia cantava na noite de São Paulo, na boate Cave. Marcio Leonardo era amigo dos donos da boate, e tornou-se também amigo de Tim Maia. Quando lhe mostrou suas composições, o tijucano não teve dúvidas. Virou um dos seus maiores sucessos.

Agoniza mas não morre, de Nelson Sargento, é de 1978, e sua presença no filme é totalmente metalínguista. “Samba/Agoniza mas não morre/Alguém sempre te socorre/Antes do suspiro derradeiro/Samba/Negro, forte, destemido/Foi duramente perseguido/Na esquina, no botequim, no terreiro”.

Roberto Carlos comparece no rádio da doméstica, o que não é totalmente absurdo – é e sempre será o cantor maior do coração do Brasil, a voz que estava embalando a vida cotidiana, trabalhadora e alheia, enquanto o pau comia nos porões. Mas não é uma composição qualquer que o filme pinça de Roberto. É As Curvas da Estrada de Santos (1969), que Roberto Carlos cantou para a família de Caetano Veloso durante uma visita a Londres, durante o exílio do baiano.

Os estrangeiros da trilha sonora não são menos simbólicos. Petit Pays, do caboverdiano Nando da Cruz e cantada por Cesária Évora, também caboverdiana, é uma canção que trata da inserção de um pequeno país insular em um mundo globalizado (“uma estrela que não brilha”, “um grão de areia que não se molha”), e de como a afirmação cultural é o elemento de força que dá régua e compasso ao seu povo. The Ghetto, do soulbrother cantor e tecladista Donny Hathaway, é uma pérola do R&B de 1970. O tema incidental, que permeia as cenas da personagem Eunice, é The Fight, de 2020, é um tema pungente do compositor cult islandês Jóhann Jóhannsson, com a Orquestra Filarmônica de Praga.

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3 COMENTÁRIOS

  1. Da mesma forma que as pessoas não leem que Rubens Paiva foi torturado ao som de “Jesus Cristo” E “Apesar de Você”, as pessoas também não leem que o próprio Erasmo assumiu em seu livro que “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” foi feita por Roberto sozinho, assim como outras que estão em “Carlos, Erasmo”.

    Todo mérito do mundo para o Erasmo. Roberto nunca teria em um disco seu um arranjos tão ousados e músicos tão arrojados, mas sejamos fiéis ao que o próprio Erasmo relatou, sem alimentar esses devaneios ligados ao Roberto e a esse período. Roberto já têm questões demais.

  2. Da mesma forma que as pessoas não leem que Rubens Paiva foi torturado ao som de “Jesus Cristo” E “Apesar de Você”, as pessoas também não leem que o próprio Erasmo assume em seu livro que “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” foi feita por Roberto sozinho, assim como outras que estão em “Carlos, Erasmo”.

    Todo mérito do mundo para o Erasmo. Roberto nunca teria em um disco seu arranjos tão ousados e músicos tão arrojados, mas sejamos fiéis ao que o próprio Erasmo relata, sem alimentar esses devaneios ligando Roberto a esse período. Roberto já têm questões polêmicas demais.

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