No dia 21 de janeiro de 1971, o ex-deputado federal trabalhista Rubens Paiva foi sequestrado em sua casa por militares à paisana e levado ao quartel da Polícia do Exército, onde foi torturado e assassinado. Seu corpo jamais foi encontrado. O drama do desaparecimento de Rubens Paiva e a resistência de sua família são retratados no filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Apesar de alguns avanços na luta por memória e verdade, como a Lei dos Desaparecidos Políticos de 1995, que finalmente garantiu um atestado de óbito para a família de Rubens Paiva, e o reconhecimento pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014, da responsabilidade de agentes estatais pela morte do ex-deputado, nenhum de seus torturadores e assassinos foi punido.
O advento da democracia e da Constituição de 1988 não foram suficientes, portanto, para punir os agentes estatais perpetradores de violações de direitos humanos no período ditatorial, sob a justificativa da recepção da Lei da Anistia de 1979. Da mesma forma, a redemocratização incompleta ficou patente com a continuidade das Polícias Militares, criadas nos anos 1970 para auxiliar as Forças Armadas no combate à “subversão”. Com a derrota da guerrilha, a ideologia da segurança nacional transformou os criminosos “comuns”, principalmente traficantes, em inimigos internos da nação, a serem enfrentados em uma lógica militarizada. Por outro lado, os esquadrões da morte formados por policiais e militares nos anos da ditadura, de certa forma, antecederam as milícias que aterrorizam um vasto território do Rio de Janeiro e outras grandes cidades atualmente.
Mais do que afirmar que alguns quadros da Polícia Militar passaram a empregar com jovens negros pobres e periféricos os mesmos métodos de desaparecimento forçado, tortura e execuções extrajudiciais, com simulação de troca de tiros, que empregavam nos estudantes e guerrilheiros brancos universitários de classe média, seria preciso afirmar que, durante a ditadura militar, as Forças Armadas passaram a empregar na oposição política, de todas as classes sociais, os mesmos métodos que as forças policiais já aplicavam anteriormente apenas no “povão”. Se o fim da ditadura trouxe o abandono desses métodos truculentos em relação às classes médias, houve uma continuidade em relação às classes baixas.
Nesse sentido, cabe lembrar da “Operação Mata-Mendigos”, o extermínio de moradores de rua pela polícia carioca no início da década de 1960, antes do golpe militar, com corpos sendo jogados no Rio Guandu. O objetivo do governador Carlos Lacerda era “limpar” as zonas nobres do Rio de Janeiro, o que motivou também a remoção de favelas. É simbólico, assim, que o destino final do corpo de Rubens Paiva tenha sido também um rio, de acordo com depoimento do coronel reformado Paulo Malhães na Comissão da Verdade. Por outro lado, a descoberta, em 4 de setembro de 1990, da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, Sáo Paulo, onde foram enterrados desaparecidos políticos, se deu pela investigação do jornalista Caco Barcellos sobre as execuções extrajudiciais de jovens negros e pobres da periferia de São Paulo praticadas pela Rota, incluindo a do ator Fernando Ramos da Silva, que interpretou Pixote no cinema em 1980.
Se o ano de 1990, sob o espírito da Constituição de 1988, testemunhou a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) em 13 de julho, com a previsão de uma série de direitos democráticos, em 26 de julho ocorreu a Chacina de Acari, em que 11 jovens, sete deles menores, foram sequestrados por policiais e ex-policiais militares após serem extorquidos, estando desaparecidos até hoje. Assim como Zuzu Angel foi assassinada em 1976 por militares em decorrência de sua luta para esclarecer o desaparecimento de seu filho Stuart Angel Jones em 1971, Edmea da Silva Euzébio, uma das Mães de Acari, foi assassinada em janeiro de 1993, quando buscava informações sobre o paradeiro do filho Luiz Henrique da Silva.
Em 3 de outubro de 1990, Leonel Brizola, líder trabalhista e correligionário de Rubens Paiva, foi eleito governador do Rio de Janeiro pela segunda vez. Opositor da ditadura militar e defensor dos direitos humanos, Brizola foi acusado em seus governos de impedir que a Polícia Militar enfrentasse a criminalidade, ao tentar impor uma série de controles e restrições próprios do Estado de Direito à atuação policial. Setores conservadores cariocas também responsabilizaram politicamente o governador pelo suposto “arrastão” ocorrido na praia do Arpoador em 18 de outubro de 1992, quando galeras rivais de Vigário Geral e Parada de Lucas se encontraram na areia e começaram a brigar (ou a “brincar” de brigar). Brizola havia disponibilizado linhas de ônibus que traziam moradores dos subúrbios para as praias da Zona Sul, o que não era bem-visto por moradores elitistas e higienistas. A “decadência” das praias era contraposta aos “bons tempos” da ditadura e encarada como reflexo da crise política que resultaria, no mesmo ano, no impeachment do primeiro presidente eleito democraticamente na Nova República.
Na madrugada de 23 de julho de 1993, oito jovens que dormiam próximos à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, seis deles menores, foram executados por policiais militares à paisana, supostamente por vingança, após um dos meninos ter jogado uma pedra e quebrado o vidro de uma viatura policial. Em 29 de agosto do mesmo ano, policiais militares executaram 21 moradores da favela de Vigário Geral, também supostamente motivados por vingança pelo assassinato de quatro policiais por traficantes da região, embora as vítimas do massacre fossem inocentes. Em comum, nos dois episódios, assim como no massacre do Carandiru de 1992, está o fato de os chacinados serem “quase todos pretos” ou “quase pretos de tão pobres”, como cantaram Caetano Veloso e Gilberto Gil em Haiti, lançada justamente em 1993.
A chacina da Candelária inspirou a série Os Quatro da Candelária, criada por Luis Lomenha, e que estreou na Netflix no último 30 de outubro, uma semana antes da estreia de Ainda Estou Aqui nas salas de cinema. A coincidência não poderia ser mais feliz e infeliz. Denuncia que as violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais durante a ditadura militar ainda estão aqui. Mas não só. No filme de Salles, a família Paiva vive em uma casa linda de frente para o mar do Leblon, em uma das zonas mais nobres do Rio de Janeiro. Rubens é um homem branco, rico e pai amoroso. Após o seu desaparecimento, a viúva, Eunice Paiva, em uma postura heroica, assume as rédeas da situação, dando todo o amparo aos filhos. Já os meninos da Candelária vivem em situação de rua, em uma zona da cidade considerada degradada, sem pai nem mãe, encontrando o amor e a solidariedade entre si. A grande maioria dos sobreviventes da chacina foi assassinada, presa ou morreu de aids nos anos posteriores. Apesar das diferenças de perfis das personagens e de cenário, ambas as produções audiovisuais optam pela mesma estratégia para gerar empatia no público: contar as histórias das vítimas, humanizando-as, algo que o também recém-lançado filme O Maníaco do Parque não faz, apesar de uma de suas personagens protagonistas alardear fazer.
Da mesma forma como entramos na vida da família Paiva, angustiados pela consciência da iminência do mal que se aproxima dela, conhecemos em cada um dos quatro episódios de Os Quatro da Candelária as histórias e sonhos das personagens fictícias Douglas, Sete, Pipoca e Jesus nas 36 horas que antecederam a chacina. Em um formato também utilizado na excelente série Justiça, de Manuela Dias, os quatro pontos de vista se cruzam e o protagonista de um episódio se torna coadjuvante em outro. Sem apelar para maniqueísmos, compreendemos que os meninos da Candelária colecionam inimigos e praticam atos violentos como parte de uma sociabilidade violenta que precisaram aprender para sobreviver nas ruas. Se o fato de as personagens serem fictícias tira a individualidade e a particularidade de cada vítima real da chacina, o que poderia invisibilizá-las, por outro lado o recurso pode aumentar o alcance da identificação com o público, uma vez que permite projetar em cada criança e adolescente em situação de rua real as histórias contadas. Apesar de não ser personagem da série, entendemos assim melhor Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente da chacina e sequestrador do ônibus 174, que teve sua vida contada no documentário Ônibus 174, de José Padilha, e no filme ficcional Última Parada 174, de Bruno Barreto.
Assim como Ainda Estou Aqui, por meio da fotografia, direção de arte e trilha sonora, nos transporta para o Rio de Janeiro do início dos anos 1970, Os Quatro da Candelária é um retrato do Rio de Janeiro do início dos anos 1990, com suas referências ao funk, ao surf ferroviário, ao Profeta Gentileza e até à onipresente apresentadora Xuxa, que inspirou uma das personagens da série. Se o filme de Walter Salles serve de alerta para os perigos da naturalização de um discurso que exalta a ditadura militar e que ajudou a eleger em 2018 um presidente que sonha com a volta de 1968 e tem como ídolo um torturador notório, a série de Luis Lomenha joga luz sobre personagens ainda invisibilizadas que borram as fronteiras entre 1993 e 2024, pois ainda estão aqui. No filme, o desaparecimento do ex-deputado é o ponto de partida de uma história de luta protagonizada por Eunice Paiva. Na série, a chacina é o ponto de chegada dos quatro protagonistas. Ambas as produções artísticas, cada qual à sua maneira, são respostas a um país em que a política e o direito falharam miseravelmente.
Danilo Cymrot é doutor em direito pela USP e autor de O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2022), finalista do Prêmio Jabuti.