Gero Camilo (Mato Grosso), Paulo Miklos (Adoniran Barbosa) e Gustavo Machado (Joca) em cena de
Gero Camilo (Mato Grosso), Paulo Miklos (Adoniran Barbosa) e Gustavo Machado (Joca) em cena de "Saudosa Maloca" - frame/reprodução

Saudosa Maloca, de Pedro Serrano, não é uma cinebiografia de Adoniran Barbosa (1910-1982). O diretor, que assina o roteiro com Guilherme Quintela e Rubens Marinelli, se apropria de canções de João Rubinato, nome de batismo do homenageado, para contar uma história a partir de sua obra, com seu sotaque particularíssimo e, justamente por causa dele, olhada com desdém no início da carreira e mesmo depois do sucesso, por puristas e cultores das formalidades, permeada pelo bom humor e por dramas sociais, muitos deles ainda atuais, mesmo após mais de 40 anos de seu falecimento.

É a terceira vez que Pedro Serrano se debruça sobre o personagem: em 2015 ele havia lançado o curta-metragem Dá Licença de Contar (vencedor dos prêmios de melhor filme nos festivais de cinema de Gramado e de Bilbao), com o mesmo trio de protagonistas, entre os personagens e os atores que os interpretam; e em 2020 o documentário Adoniran, Meu Nome é João Rubinato (filme de abertura do Festival É Tudo Verdade em 2018).

Cantadas a plenos pulmões em qualquer roda de samba que se preze, as criações do sambista ítalo-paulista abordam questões como a especulação imobiliária (no clássico que empresta título ao filme e em “Despejo na Favela”, por exemplo), a exploração de trabalhadores, a precariedade do transporte público, a própria música e o próprio samba em si, além, é claro, do amor.

Habilidosamente Pedro Serrano desloca trechos da obra de Adoniran Barbosa para a vida de outros personagens de seu entorno – Mato Grosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado), personagens de Saudosa Maloca, o samba, e Iracema (Leilah Moreno), que dá título a uma de suas mais comoventes composições – para ir desfiando o rosário de clássicos absolutamente impregnados no inconsciente coletivo do brasileiro. Por vezes as músicas não são cantadas, mas seus versos viram falas nas bocas dos personagens, no roteiro bem urdido. Comovente também é a participação, que soa como merecida homenagem, dos Demônios da Garoa, um dos mais longevos grupos da música brasileira, pioneiro e dos que mais gravou o universo de Adoniran.

Adoniran Barbosa (Paulo Miklos) senta-se a uma mesa de botequim e enquanto é servido de uísque e cigarros (e um bolinho “desviado”), relembra o passado, contando ao garçom (e violonista) Cícero (Sidney Santiago Kuanza) aventuras entre sambas, as agruras de um passado de fome e a malandragem (que deriva daquela: “malandragem é fome”, diz), tudo isto com uma profunda consciência do valor de sua própria arte – o que daria pano para manga em uma discussão sobre, por exemplo, o repasse dos direitos autorais aos artistas pelas plataformas de streaming que o próprio Adoniran nem chegou a conhecer.

“Nóis viemo aqui pra beber ou pra conversar?”. Nem o conhecido bordão popularizado por Adoniran Barbosa em um comercial de cerveja escapou à lembrança de Pedro Serrano. Saudosa Maloca cumpre o importante papel de reverenciar a obra de um dos maiores sambistas que o Brasil já viu – também ator, roubo de seu personagem Professor Pancrácio, em Candinho (1954), de Abílio Pereira de Almeida, estrelado por Mazzaropi (1912-1981), a expressão que intitula este texto – e ouviu, além de debater temas que seguem atuais, não apenas na São Paulo que lhe serviu de inspiração e cenário para a maior parte de sua obra. As atuações muito competentes do elenco dão conta de uma história marcada pelo equilíbrio entre a alegria e as dificuldades, como a própria vida e obra de Adoniran Barbosa.

"Saudosa Maloca" - cartaz/reprodução
“Saudosa Maloca” – cartaz/reprodução

Veja o trailer:

Serviço: Saudosa Maloca (Brasil, 2023, drama/comédia, 108 minutos), de Pedro Serrano. Estreia dia 21 de março nos cinemas brasileiros.

O diretor Pedro Serrano será entrevistado por Gisa Franco e este resenhista no Balaio Cultural de amanhã (16), na Rádio Timbira. O programa vai ao ar às 13h e recebe também os violonistas Marco Pereira e Rogério Caetano.

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