Em um dia escaldante de janeiro de 1978, furioso, Chico Batera pediu para seu amigo Alfredão (maître português que baixara no Brasil clandestinamente) lhe arrumar um guarda-costas do tipo “armário” e os dois rumaram até um flat em Copacabana. Tocaram a campainha. Quando os inquilinos ingleses abriram a porta, Chico entrou, recolheu os restos de uma bateria que tinha alugado aos sujeitos no apartamento, e que estava quase completamente destruída, confiscou os passaportes dos quatro hóspedes e deu 48 horas para que lhe pagassem 2 mil dólares de indenização pela bateria, senão não devolveria os documentos. Os inquilinos eram os integrantes da banda punk britânica Sex Pistols, que tinham vindo ao Brasil para gravar um videoclipe na praia com o lendário ladrão inglês Ronald Biggs. Como precisassem de uma bateria para as filmagens, alugaram o instrumento de Chico Batera, um dos notáveis do instrumento no Brasil.

Essa e outras histórias recontam parte da trajetória fabulosa (e estrelada) do carioca Francisco José Tavares de Souza, o Chico Batera, 80 anos. Sua carreira praticamente coincide com uma data nefasta, a do golpe civil-militar no Brasil: em 1964, aos 21 anos, foi levado por Sergio Mendes para uma excursão pelos Estados Unidos – tocava lá num grupo que tinha Rosinha de Valença (violão), Jorge Ben e Wanda Sá (vocais) e Tião Neto (baixo). Chico Batera tocou em um disco dos Doors (Full Circle, 1972), comemorava seu aniversário na casa da cantora Carmen McRae, gravou com Frank Sinatra (Sinatra & Company, 1969), dividiu quarto com Jorge Benjor, foi a uma festa onde estavam Marlon Brando e Jane Fonda, viveu em chácara emprestada por Djavan. “Chico Batera é um dos meus amigos mais chegados no meio musical. Nesses cinquenta anos de parceiragem, bebemos muito, fumamos muito, cheiramos um pouco, demos muita risada e falamos de tudo, menos de música”, disse do músico o mais frequente parceiro, Chico Buarque de Hollanda, com quem toca há 49 anos e de quem Batera já “roubou” uma suíte em Montevidéu (após a congièrge ter se enganado de Franciscos).

Uma amostragem expressiva dessas histórias de Chico Batera em seus 60 anos de carreira está agora reunida em um livrinho autobiográfico do artista, Memórias de Um Músico Brasileiro (editado pelo autor, com apoio da Fundação de Arte de Niterói e da Prefeitura de Niterói, com 190 páginas), que ele resolveu escrever após se dar conta, lendo Chega de Saudade, de Ruy Castro, que o personagem mais ausente dos livros sobre a música brasileira é sempre o instrumentista. “Nós, músicos, muitas vezes caímos na armadilha da falsa modéstia. É um erro tão comum que até os músicos também não incluem colegas seus quando falam sobre com quem já tocaram. Só falam dos cantores e cantoras”.

Portanto, Memórias de Um Músico Brasileiro se esmera em realçar todos os instrumentistas que passaram pela vida de Chico Batera. De J.T. Meirelles a Mestre Marçal, de Roy Haynes até Ray Brown, Antonio Adolfo a Sérgio Barrozo, de Joe Porcaro até Túlio Mourão, passando por uma infinidade de amigos e parceiros, como o mestre Wilson das Neves. Aborda também as estratégias de um músico para financiar o próprio trabalho, das primeiras economias até a tentativa de tornar-se pequeno empresário, com a construção de um estúdio próprio, o Tok, em Botafogo, no Rio, a cuja inauguração Dorival Caymmi compareceu e onde a Legião Urbana ensaiava.

Não é nem de longe um relato de escoteiro. Chico Batera não sonega as histórias mais barra-pesada. Há uma episódio com o título de Cocaína, nome autoexplicativo. Narra um hábito que foi difícil de largar, adquirido em uma vida noturna frenética a partir da segunda metade dos anos 1970. O negócio cresceu de tal forma que começou a ficar perigoso. “Em plena ditadura militar, desembarquei no aeroporto de Brasília com 20 gramas costuradas na bainha da calça. Chegando ao hotel, pela reação do recepcionista ao me registrar, percebi que eu era mais esperado do que o próprio Luiz Gonzaga“, escreve. Parou quando percebeu que estava chegando perigosamente perto da sarjeta, após uma cafungada num banheiro imundo da concha acústica da UERJ no Maracanã.

Da maconha, entretanto, Batera tem boas lembranças. Fumou pela primeira vez na Ilha do Governador, aos 14 anos. Mais tarde, já na gravadora Continental, passou a fumar com mais assiduidade para se concentrar na música no potente equipamento da gravadora, uma viagem à parte. “Acho muito pouco provável que, sem ajuda da erva e com a inquietação própria da idade, eu tivesse a concentração necessária para passar horas, quieto, escutando tanta música. Me sentia dentro das orquestras, ouvindo cada instrumento nitidamente”. Só largou os baseados quando, certa vez, pegou o equipamento para tocar no Beco Mamãe Joga a Chave (entre a Duvivier e a Rodolfo Dantas) e o maître informou a ele que nunca houvera música ao vivo ali. Esqueceu onde iria tocar.

Chico esteve no palco com Elis Regina no lendário show Phono 73, quando os militares cortaram o som dos microfones durante a hora em que Gil e Chico Buarque tentaram cantar Cálice. Com Elis, fez um show e um disco ao vivo que considera uma perfeição iluminada, Elis Regina – Montreux Jazz Festival 1979. Viveu anos em Los Angeles, e conta como tocou no disco secreto de Tom Jobim, o único em que o maestro brasileiro atuou como “sideman” (sem ser o astro principal), um álbum do pianista Jack Wilson denominado Jack Wilson Plays Brazilian Mancini (Pacific Jazz Records). Tom Jobim está creditado no álbum como Tony Brasil, por conta de um contrato em que a Warner o proibia de tocar em discos de outras companhias.

Batera nunca tocou com Tim Maia, mas cometeu a tolice de alugar um equipamento para um show a que Tim Maia deixou de comparecer. Como de hábito, o negócio virou confusão e acabou na polícia. O delegado da Leopoldina, Zona Norte do Rio, confiscou o equipamento do show (que não era de Tim, era de Batera). O baterista se viu obrigado, a contragosto, a ir até a casa de Tim, na ladeira do Sacopã, cobrar o aluguel do equipamento. Tim Maia reclamou que ele tinha ido acompanhado de um “jagunço”, mas propôs-se a negociar a dívida de boa. Tentou oferecer a receita de um show que ainda não tinha feito, em Niterói. No final, nunca pagou.

No livro, Chico Batera conta histórias com estilo, de um jeito envolvente e falsamente displicente, às vezes meio gonzo, escapando de batidas policiais, falando de personagens da noite, dos garçons e dos bares, das vedetes e das divas com fascínio, relembrando os casamentos e o difícil aprendizado da vida à margem do sucesso (como artista solo). “Depois disso, toda minha geração era João (…) Como ele cantava baixinho, todo mundo pensava que podia cantar também”. Ou então: “Fui convidado por Joãosinho Trinta para montar a banda da festa de réveillon no palácio do Rei Hassan II (do Marrocos). Até hoje não sei a razão desse convite, pois nunca fui próximo do carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis”.

Cidadão honorário de Niterói, onde vive, eventualmente lateral direito do time do Politheama, de Chico Buarque, Batera não tem papas na língua para descrever os velhos parceiros, mesmo declarando sua admiração. Fagner e João Bosco são vistos com olho crítico, não de baba-ovo. É um depoimento fundamental para compreender, de um outro ponto de vista, parte das trajetórias de artistas que admiramos, um leque amplíssimo, que vai de Djavan a Arthur Maia, Gilberto Gil a Cat Stevens, Clementina de Jesus a Fafá de Belém, entre dezenas de outros. Martinho da Vila lhe ensinou palavras dos dialetos umbundo e kumbundo para usar em um disco. Fausto Nilo escreveu seu prefácio, no qual lembra passagem do texto que João Gilberto escreveu para o disco João Gilberto en Mexico (1970): “Chico Batera desapareceu. Não tirou os sapatos e disse que não ia pendurar nada, não. Aí, fez os sons da percussão com José Luís Ferra ‘La Monja’. No fim, eu dei um pedaço de bolo a ele. Ele ficou calado, comeu e começou a engordar. Depois, ficou magro de novo. Aí, ficou assim o dia todo”.

Chico Batera lançou essas preciosas memórias no final do ano passado. Elas partem lá dos primórdios e chegam até momentos muito recentes, como a turnê Caravanas, de Chico Buarque. A percussão do autor se tornou a espinha dorsal de shows cruciais da nossa época. E agora, além de tudo, contamos também com seu testemunho pessoal. “Passando dos oitenta, ainda sinto a vontade de tocar pulsando nas veias com a mesma intensidade. A curiosidade com a música só aumenta, e mesmo com a coluna um pouco empenada, sento na minha bateria e toco o meu vibrafone praticamente todos os dias”, conta o Chico Batera. A sorte é nossa.

PS: Só para saciar uma eventual curiosidade natural dos leitores: sim, os Sex Pistols pagaram os 2 mil dólares da bateria que quebraram e Chico lhes devolveu os passaportes para que voltassem à Inglaterra.

SERVIÇO

Chico Batera e Amigos. No próximo mês de 18 de abril, às 19 horas, Chico Batera fará uma noite de autógrafos do seu livro em Fortaleza, e logo após haverá um show especial comemorativo de seus 80 anos em Fortaleza, no Cantinho do Frango (Rua Torres Câmara, 71, Aldeota), com participações do compositor e cantor Fausto Nilo (parceiro de Batera na canção A Água e o Vinho) e do contrabaixista Jorge Hélder. Seu livro estará à venda no local.

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